Sobre o gênero tragédia



Quando Hans U. Gumbrecht se refere aos “Lugares da Tragédia”, esse se refere à presença ou ausência desse gênero (tragédia) nas diversas épocas e culturas. Dentro de nossas tradições emergentes, a tragédia viveu um tempo de apogeu durante o século XVII, época marcada por nomes como Shakespeare, Corneille, Racine, Andreas Gryphius etc. Até que entregou o espaço cultural a um tom mais sentimental que trágico do drama burguês, na época chamada de época das luzes. Já o século XIX foi uma era que pode-se chamar de tragicofílica, pois, com os complexos interesses de Hölderlin, ela desembocou em nosso presente, na nossa linguagem cotidiana e do acentuado uso dos conceitos de “tragédia” e “trágico”.

            Bernard Willians, na tentativa de que fossem compreendidas as condições contextuais elementares que o gênero da tragédia parece supor, fez uma reconstrução da concepção de agência (condições recorrentes ao gênero – imaginar diferentes cenários culturais; agir) pertencente aos poemas homéricos. E uma provável condição para que a tragédia viesse à tona em Atenas durante o século V a.C. foi a tensão entre um esfera de agência desenvolvida e a existência de uma ordem objetiva, no que diz respeito a ser isento do alcance transformador da agência.

            Quando agência e ordem objetiva entram em contato, é produzida uma esfera de paradoxos, na qual princípios e valores, antes divergentes, podem estar simultaneamente presentes e pertinentes, fazendo com que os agentes se sintam confusos, propensos a cometerem erros (miasmas). Com exemplo, o autor do texto em estudo nos dá a história de Édipo Rei. Porém, a tensão entre agência e estruturas objetivas, como situação central, não é o suficiente para a tragédia.

            A tragédia só pode existir se o herói trágico não tiver nenhuma possibilidade de desculpar-se por seu erro, ou seja, tornar-se um salvador. Não há tragédia sem a presença ameaçadora da morte.

            Resumindo o que foi dito, para que se tenha um contexto considerado tragicofílico, deve-se ter: um tipo específico de agência; um potencial para o conflito entre agência e a ordem objetiva; a exclusão de possibilidades dos agentes “limparem”sua auto-imagem. Ações estas que se referem à encenação no palco, estando os espectadores em estado de espírito compatível ao que ocorre com o gênero encenado.

            Segundo Aristóteles, catarse é uma palavra que significa a purificação emocional, física, mental e religiosa. Através da experiência de compaixão e medo, o espectador da tragédia seria confrontado com a purificação da alma dessas paixões, vendo-as projetadas sobre os personagens da peça, permitem-se ver o castigo merecido e inevitável; mas sem experimentar punição disse ele mesmo. Muitos de nós, que somos esses espectadores, embora estejamos longe de entender os meios e os motivos de aguçarmos nosso olhar e imaginação, sabemos quão importante esses elementos são para conquistar um lugar para esse gênero em situações culturais específicas.

            Em contrapartida, a tragédia floresceu no século dezessete porque aquela era uma época de máximo equilíbrio na transição entre uma visão objetiva do mundo (cristão) e por uma cultura centrada na subjetividade.

A era das Luzes, que representava as tragédias de Voltaire, ofereceu à cena teatral do final do século XVII, vítimas heróicas, ao passo que seus dramaturgos fracassavam em produzir heróis trágicos verdadeiros. Do início do século XIX em diante, a palavra “objetividade” passou a ser algo que fosse sentido como obstáculo e resistência à realização de belos projetos e desejos. Hoje, o horizonte marxista de redenção parece ter se perdido para sempre.

Desde o século XX, filósofos e demais intelectuais tentam estabelecer discussões sobre as palavras “tragédia” e “trágico”. Relação que não pode ser tomada pela simples categorização gramatical, já que a relação semântica entre os dois conceitos é bem mais complexa do que parece na busca de uma resposta superficial. Um inovador sentido do termo tragédia foi estabelecido.

A tragédia, no seu sentido literal, é um gênero dramático específico da literatura na Grécia, influenciando profundamente a Roma antiga. Quase sempre são peças nas quais os personagens chamados heróicos desenvolvem uma ação que envolve terror/piedade, cercada por acontecimento fúnebre.

Na Antiguidade, nenhum gênero foi tão teorizado tão intensamente. Esperamos que uma “tragédia” seja “trágica”. Isto pode soar evidente, mas, na realidade, o trágico é uma construção moderna, cujos laços com o antigo gênero grego são muito menores do que suas conexões com desenvolvimentos filosóficos e sociais dos últimos séculos.

O trágico, termo mais comum no nosso cotidiano, remete-se ao que sugere morte, desespero, sinistro. Literalmente significa esplêndido, grandioso, negativo. O seu uso coloquial na modernidade está em oposição ao significado desenvolvido entre filósofos e intelectuais dos dois últimos séculos, que ligam-no à tragédia (gênero que engloba um conjunto específico de textos), um tem uso coloquial, o outro, filosófico. O trágico dia respeito a experiências ou marcas da existência humana. O termo é metafísico e antropológico, e não estético; não se trata de uma definição de gênero da literatura, mas o sumo da condição humana, que se manifesta em episódios catastróficos.

Em se tratando desses dois termos, Most pergunta: "Qual é a relação precisa entre aquela dimensão da existência humana que se manifesta em eventos trágicos e os textos literários que chamamos de tragédias?”. Parece ser uma ilusão pensar que todas as tragédias sejam trágicas, ou seja, que há uma crítica que poderá reconhecê-las ou não trágicas, segundo algum critério de "tragicidade". Dessa forma, nos aproximamos de uma questão muito complexa sobre o conceito de trágico e se ele englobaria o que traz as tragédias, ou a tragédia sendo uma criação literária, estaria sujeita à habilidade do seu autor. O crítico literário/filósofo ou até mesmo o próprio leitor seriam os últimos a diagnosticarem o trágico em uma tragédia. Essa aproximação de conceitos entre tragédia e trágico nos deixa compreender que na tragédia deverá conter o trágico.

Para Most, não é acidental que o termo trágico é libertado de sua ligação com uma forma literária e generalizada para se aplicar à condição humana no exato momento da história, na virada do século XIX, quando o gênero da tragédia deixa de ser um modo literário dominante. Atualmente, quase não são encenadas tragédias nos teatros, mas, em nossas estradas, elas são produzidas sempre. Já a palavra trágico tenta definir o estado/caráter imutável do homem.

Na filosofia e na crítica literária antigas parece não ter havido nada correspondente à noção filosófica moderna do “trágico” como uma dimensão fundamental da experiência humana, mas em seu lugar apenas teorias da “tragédia” como um gênero específico.

Talvez seja por isso que o relato de Aristóteles sobre a evolução histórica da tragédia se recuse a mencionar o inventor tradicional do gênero: Téspis, pois, ao tentar suprimi-lo, Aristóteles faz o gênero parecer menos ocidental e ateniense, mais inevitável e humano.

Foi Friedrich Schiller que formulou idéias sobre a teoria da tragédia, enfatizando a edificação moral através da qual a tragédia deveria melhorar suas platéias, mas, diante da crítica de Kant, um forte impacto o influenciou a escrever ensaios, nos quais concedeu o trágico de acordo com o modelo do sublime e interpretou o gênero como o veículo para a expressão. Formulou a visão do trágico como um aspecto fundamental da existência humana, indicativo da incompatibilidade entre o homem e o mundo que se encontra. Um segundo passo que foi designado por ele ao gênero tragédia foi a missão de incorporar este insight (ato ou resultado de aprender a verdadeira natureza das coisas, enxergar intuitivamente), tornando-o um gênero particular.

Historicamente, a tragédia pode ser pensada no que foi discutido anteriormente por Gumbrecht, o que se faz necessário discutir para que se entenda os apontamentos agora feitos e analisados por Most.

As atrações que foram a partir daí criadas no período moderno para a leitura da tragédia grega e as dificuldades para entendê-las são óbvias. A história do desenvolvimento que leva ao uso recente deste antigo termo tem uma importância maior, pois não apenas ilustra a maneira pela qual elementos da tradição clássica foram tirados de contexto, mas também fornece um notável exemplo da tendência dos leitores de usarem, muitas vezes de maneira totalmente errônea, os gêneros para interpretarem os livros e suas realidades.

 

REFERÊNCIA

 

GUMBRECHT, H. U. (2001) - Os lugares da tragédia - In Filosofia e Literatura: o trágico, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001.

 

MOST, Glenn (2001) - Da tragédia ao trágico - In: Filosofia e Literatura: o trágico, Jorge Zahar Editor, Rio de janeiro, 2001.


Autor: Mara Rogelma Soares Torres Frazão


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