O Beijo Da Meia-Noite



Ele gostava de dizer que era vendedor ambulante, passava todos os dias em frente ao hotel da cidade e recordava com certa melancolia os dias de engraxate, a roupa engomada, os suspensórios novos, a boina xadrez que ganhara do avô Benedito. Não fazia muito tempo o gerente comunicou sem muita cortesia:

- Você passou da idade, vá procurar outra função na vida, engraxar sapatos não é coisa de homem feito!

Completara catorze em março e sua voz estava em transição assim como o corpo franzino e esguio, por isso falava muito pouco e preferia anunciar sua mercadoria com um assovio forte. O pai arranjara o novo ofício: vender as lingüiças que eram feitas na fazenda, coisa que detestava embora ciente da responsabilidade que pesava por ser o filho mais velho. O sol da tarde era ameno e preferia entregar as lingüiças nos bairros mais abastados e, vez ou outra alguém lhe servia um refresco e um pão de queijo saído do forno. Naquela semana decidiu passar mais uma vez em frente ao casarão dos Oliveiras, onde uma certa moça debruçava-se na enorme janela, com o olhar lânguido e os cabelos ondulados mais negros que já vira. Não sabia seu nome, mas certa vez ouviu a Dona Alzira chama-la "Neném". Era um nome perfeito para alguém de tez tão alva e rosada. Nesse dia, o céu estava coberto de uma cor púrpura e de longe avistou a pequena na janela e o pai sentado à soleira da porta cortando o fumo para enrolar um cigarro de palha.

– ...tarde, Seu Modesto, trouxe a lingüiça.

- Rapaz, eu já lhe disse que não compro lingüiça na semana, estou aqui matutando que você vem aqui para outra coisa.

Sentiu o rubor no rosto e não conseguiu conter o olhar para a menina na janela.

- Não, Siô, meu pai disse que é dono da pensão e que precisa comprar mantimentos, por isso venho aqui oferecer.

- Pois bem, eu faço gosto do interesse, vamos fazer assim: comprarei todas as quintas, mas quero bem cedo, sem a poeira acumulada da estrada.

- Obrigado, Seu Modesto, estarei aqui seis em ponto.

Cumprimentou com a cabeça e virou-se novamente à janela para lançar um último olhar para a moça.

Todas as quintas, a partir daquela data, ele levantava antes do nascente e tomava banho na bica de água gelada, preparava o carrinho de mão e armazenava as lingüiças na panela amarrada com o pano de prato enfeitado com biquinho de crochê feito pela mãe. Chegava antes das seis em frente o casarão e esperava pacientemente Seu Modesto abrir a porta.

- ...dia!

- ...dia Seu Modesto! aqui está sua encomenda.

- Moço, tenho um serviço pra você, se aceitar, claro.

- Tenho outras encomendas pra entregar, se não for demorar, ajudo o senhor.

- Eu falei serviço, não ajuda.

- Pois estou à disposição.

- É a cerca lá do fundo que caiu, soube que você trabalhou na marcenaria do seu avô.

- Sim senhor, aprendi algumas coisas.

Não deixava de ser verdade, mas aprendera apenas a fazer uns carrinhos e piões para os irmãos menores.

Era a primeira vez que entrava no casarão e sentiu um cheiro de madeira e canela por todo o corredor até a cozinha. A porta da cozinha saía no quintal, onde umas galinhas d'angola ciscavam restos de comida do dia anterior. Viu a cerca interrompida por tábuas apodrecidas e avisou que precisava de madeira.

- Ó, Seu Modesto, precisarei de umas tábuas e vai levar mais de um dia para consertar a cerca.

Pensou quase instantaneamente na proximidade que isso traria até a misteriosa amiga da janela. Nos dias seguintes passou a observar atentamente a movimentação da casa, os afazeres das filhas mais velhas, os hóspedes da pensão fazendo o desjejum na grande mesa de madeira. Raramente conseguia vislumbrar a moça dos seus sonhos passando pelo corredor, sempre com o bordado à mão, bem arrumada e com um laço prendendo os cabelos longos em forma de cachos perfeitos. Logo percebeu que ela andava descalça quase todo o tempo e que por isso sua mãe chamava a atenção na frente de todos e mesmo assim jamais ouviu a menina retrucar ou levantar a voz para confrontar D. Alzira.

Já fazia uma semana que consertava a cerca e não trocara uma palavra com a dita moça e começava a sentir quão inútil e cansativo seria esperar que ela viesse ao seu encontro. Foi então que decidiu fazer a proeza de entrar escondido na casa para procurá-la e confessar o amor, pois como todo perdidamente apaixonado pensava na morte como única saída para o esquecimento.

Não havia mais ninguém na casa, além de dois hóspedes que liam e fumavam cachimbo na sala de estar. Seu Modesto, D. Alzira e as filhas mais velhas saíram para a feira dominical e uma senhora chamada Santana cuidava da pequena e preparava o almoço.

Ele esperou o momento oportuno, notou que a cozinheira corria atrás de uma galinha no quintal e calculou o tempo que ela levaria para esganar a ave torcendo-lhe o pescoço e girando-a no ar e em seguida escorrer o sangue para fazer o costumeiro molho pardo. Entrou na casa com passos silenciosos e percorreu os corredores tentando adivinhar em qual quarto ela estaria. Ouviu a cadeira de balanço e moveu cuidadosamente a porta para que não se assustasse com sua presença.

Ela estava de costas e de frente para a janela, tão distraída no vai-e-vem da agulha do bordado que não notara sua intrusão.

Aproximou-se com cuidado e estava tão perto que sentia o cheiro da lavanda e um cantarolar baixinho como um murmúrio saindo de seus lábios.

- Licença, Moça.

Ela levantou num susto e parecia tão pálida quanto um cadáver.

- Não quis assustá-la, não grite, por favor!

Ela fez um gesto negativo, ainda segurando o bordado contra o peito ofegante.

- O senhor é louco vindo aqui desse jeito, se meu pai descobre manda lhe "capar".

Ficou assustado com o termo usado pela jovem, mas não conseguiu disfarçar o sorriso no canto esquerdo dos seus lábios.

- Estamos sozinhos e quero lhe confessar uma coisa.

- Mas é mesmo muita ousadia da sua parte vir aqui me cortejar na ausência de meu pai.

- Uai, ele nunca permitiria que eu, o "linguiceiro", tirasse um dedo de prosa com a filha caçula.

- Então diga o que a dizer antes que eles cheguem.

- Eu a amo, quero casar com a senhorita.

Ela segurou o riso e soltou o bordado na cadeira de balanço.

- Mas você é muito novo para pensar em casamento e eu pretendo estudar para ser normalista.

- Eu não disse que quero casar agora não, sô, só disse que é minha intenção casar com a senhorita.

- Pois bem, e o senhor espera que eu responda...

- Sim, diga que é possível que sinta algo parecido.

- Você é mesmo muito pretensioso.

Ele baixou o olhar para esconder o rosto vermelho e a vergonha que lhe ocorrera ao fitar os olhos amendoados da moça.

- Desculpe tomar o seu tempo, tem razão, não sei sequer o seu nome e estou aqui sonhando em casamento.

Ela esperou um minuto.

- É Maria, como as outras.

Disse ela desviando os olhos para não entregar os sentimentos.

- Pode ter o mesmo nome, mas é de longe a mais bonita.

E um silêncio que durou a eternidade foi interrompido pelo burburinho da chegada dos pais e das irmãs.

- Esconda-se!

- Não vai dar tempo.

Ela o empurrou para debaixo da cama e sentou na cadeira de balanço retomando o bordado.

- Nenéeem...

- Sim, mamãe, estou aqui no quarto.

- Venha ajudar com as compras.

- Estou indo.

Encostou a porta e agachou próximo à cama.

- Saia quando eu assoviar, corra pela porta da frente.

- Certo.

Ela estendeu as mãos para que ele pudesse tocar e completou:

- Escute, por trás da fenda que ainda resta na cerca há uma saída para o outro quarteirão, encontre-me lá à meia noite.

Ele assentiu com a cabeça e ela saiu do quarto levando consigo o sorriso que ele entregara depois do toque de suas mãos.

Vinte e duas horas. O enorme relógio da sala badalava a cada hora como se fosse o aviso da morte de aproximando. Que passara por sua cabeça de vento ao concordar com a pequena?Um encontro à meia-noite, embaixo das vistas do pai, um homem turrão e grosseiro que prometia capar qualquer varão que se aproximasse de suas filhas. Por outro lado, suspirava com a idéia de tocar aquele rosto delicado, a pele suave e cheirosa da menina mais bonita que já conhecera.

Absorto em seus pensamentos, ele nem percebeu a presença de Dona Joana, que chamava para ajudar a fechar os potes de doce de leite. Na cozinha, ela, a matriarca da família, continuava mexendo o enorme tacho com o leite fervilhando e respigando em seus braços já salpicados de pequenas queimaduras.

Dona Joana percebeu a agonia do filho desde que ele chegara da rua sem a caixa de ferramenta que levava todos os dias para consertar a cerca do Seu Modesto. Não concordava com a idéia de seu filho trabalhar como marceneiro muito menos vendedor de lingüiças, mas sabia que ela e Ademar não tinham outra opção senão aceitar aquele auxílio. Naquele ano de 1937, a lavoura ficou completamente perdida e as reservas não foram suficientes para manter os onze filhos e os dois adultos. Dona Joana, habilidosa cozinheira e sempre otimista, recomendou que fizessem as lingüiças e doces em compota para vender na cidade.

- Filho, o que aconteceu hoje? Se não estiver gostando do serviço lá no Seu Modesto, eu peço seu pai para terminar a cerca.

Ele pensou em contar a mãe sua aventura com a caçula dos Oliveiras, mas desistiu porque sabia que ela nunca permitira que ele saísse de casa no meio da noite.

- Não aconteceu nada, fiquei foi cansado.

- Tão cansado que esqueceu sua caixa de ferramentas?

- Eu...

Não notou a ausência da caixa até sua mãe falar e ficou pensando em uma desculpa para que ela não desconfiasse de alguma coisa.

- Pedi ao Seu Modesto para guardar.

- Então vai deitar que já está muito tarde.

Dona Joana beijou a teste do filho, que sentiu o cheiro do suor misturado aos condimentos que ela usava na comida e o calor escaldante vindo do fogão à lenha.

Ele dividia o quarto com os irmãos mais novos e sabia que àquela hora todos já estavam dormindo. Pegou com cuidado a roupa que costumava usar nas missas de domingo e passou a mão para desamarrotar. Abriu com cuidado o trinco da janela de madeira e saltou para o quintal espantando algumas galinhas e o vira-lata "xampu", seu companheiro inseparável de grandes caçadas.

- Psiiiiu...quietinho xampu.

O cachorro acompanhou o dono até a cocheira da Fazenda Veralinda e ele jogou algumas pedras para que ele voltasse aos arredores da casa.

- Volta, xampu, volta, não posso levar você.

No caminho até a cidade, pensou na moça, no pai dela com a espingarda em punho, de prontidão para lhe dar um tiro nas partes íntimas.

Aproximava-se da encruzilhada quando viu o despacho que alguém deixara como oferenda.

- Virge Cruz!

Apressou o passo fazendo o sinal da cruz e passou sem olhar o banquete de galinha, farofa, charutos e pinga, rodeado de velas de todas as cores e tamanhos.

A cidade estava dormindo. As ruas estavam completamente vazias e o silêncio quebrado pelos cachorros que latiam a uma distância ignorada. Passou em frente ao Colégio e a Matriz e aproximou-se do local combinado. Não sabia a hora exata, mas jurou esperar até a moça aparecer.

No casarão dos Oliveiras, Neném girava a maçaneta da porta do quarto com tanto cuidado que sentiu uma gota de suor escorrer na testa. Ela sabia que ninguém a seguiria porque de vez em quando saía às escondidas para o quintal e ficava admirando as estrelas, horas seguidas, até voltar sem suspeitas antes do amanhecer. Passou pelo corredor e ouviu o ronco alto, vindo do quarto do pai.

A porta da cozinha era fechada apenas no trinco e ela tinha que levantar a porta para conseguir abri-lo sem fazer barulho.

A lua cheia clareava como dia e ela viu todo o quintal em um tom azulado e por um segundo pensou que estava sonhando.

Não teve tempo para vestir um vestido e sua camisola fina mostrava a silhueta de um corpo já formado.

Passou pela abertura na cerca tentando escapar das ferpas da madeira destruída e procurou apoiar-se em um galho de árvore e sentiu uma mão por baixo da sua:

- Eu ajudo você.

- Obrigada.

Seguiram até uma árvore que ficava no terreno baldio da rua de trás e sentaram no chão, encostados no tronco.

- Você veio...

- Eu não prometi?

- A senhorita não tem juízo.

- E você tem?

Ele não respondeu.

Segurou-lhe as mãos e chegando próximo ao seu ouvido e sussurrou algo que ela não compreendeu.

- O que disse?

Ele riu e se aproximou tão perto do rosto dela que sentia o hálito doce encontrando seus lábios.

- Eu disse..

- O que?

Perguntou impaciente.

Então ele afastou uma mecha de cabelo dela que balançava com a brisa e seus lábios se tocaram.

Eles ouviram de longe todos os relógios badalarem o sinal da meia noite e riram do presságio popular de que era uma hora macabra.

- Eu disse..

- Fale logo!

- Você quer casar comigo?

Ela riu de novo e ele ficou sério.

- Agora é minha vez de saber seu nome, já que vai ser meu futuro marido.

Ele riu.

- Meu nome é Wagner.

Encontram-se, então, desde aquela madrugada de 1937, até que Seu Modesto consentiu no namoro. Ela terminou o curso normal e ele iniciou com o pai uma nova lavoura. Ela não queria dar aulas e conseguiu um emprego na companhia telefônica, adorava ser telefonista, devia ser a internet da época. A lavoura fracassou de novo e ele jurou que jamais trabalharia com algo tão imprevisível e foi ser mecânico.

Em 1943 casaram e mudaram para São Paulo onde ele montou um posto de combustível. Tiveram três filhos homens e ela passou a ser "do lar".

Ele soube que muita gente estava enriquecendo fazendo vôos nos garimpos da Amazônia e decidiu ser piloto. O filho mais velho resolveu fazer Direito e os mais novos resolveram seguir a aviação.

Em 1972 chegaram ao Pará e aqui fincaram as raízes mineiras e goianas do casal. Ele contou essa história tantas vezes que já perdeu a conta e não há como descobrir se o exagero ou a licença poética permitiu que a história fosse tão romântica, mas faz jus ao encontro maravilhoso de duas almas que se amaram por mais de sessenta anos.

Ele diz que chorou em raras ocasiões dos seus 86 anos, mas agora, nos últimos cinco anos sem o seu amor, ele chora em silêncio e recluso. Ao perguntarem a razão de tal mudança, ele responde prontamente:

- Tenho saudades dela.


Autor: Nayá Fonseca


Artigos Relacionados


''desejo'' (poesia)

Amor NÃo DÁ Em Árvore

O Doutor E O Caboclo

Emoção Partida

Revelação Do Ter

Para O Dia Das MÃes - Ser MÃe

Livre ArbÍtrio.