A união estável e a cultura do não casamento gay



A consolidação de alguns direitos civis dos homossexuais mediante acórdão da mais alta instância do Poder Judiciário Brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico, fez emergir uma série de discussões que demonstram o quanto o próprio segmento não havia ainda amadurecido algumas questões, sequer alguns pressupostos.

Vemos agora, e somente agora, após o fato consumado, aparecerem algumas falas – especialmente nas redes sociais – sobre o caráter jurídico da relação homoafetiva monogâmica, a construção histórica do conceito da União Estável (e mesmo do casamento) e suas repercussões na vida cotidiana de cada um.

 

Em geral, as observações que tenho visto postadas nas redes sociais e comentários de artigos publicados, e com as quais contribui, versam sobre alguns eixos temáticos:

 

1. Pessoas mais pragmáticas, localizam o “perigo” latente para alguns homossexuais já que “dois anos passam muito rapidamente e que, se houver sido constituída uma relação de fato neste intercurso, então, algum aventureiro poderia querer se apropriar da metade dos bens de algum desavisado”.

 

2. Questões ideológicas, que localizam o perigo de “sucumbir à normatização hetero” e do “casamento burguês”, ou seja o casamento enquanto uma instituição burguesa.

 

3. Encontro também a observação de que o direito foi concedido, mas que a maioria dos homossexuais (até pelo seu caráter “fútil” e “volúvel”) não estaria preparada para usufruir, de maneira equilibrada, deste direito.

 

Em relação à primeira fala, eu colocaria que não acredito que os homossexuais sejam “mais fracos”, “menos inteligentes” ou “menos preparados” que os heterossexuais, os quais tem passado pela mesma situação, há décadas (desde 1988, com certeza, quando a Constituição introduziu o conceito da União Estável), e tem aprendido a conviver com ela: procuram conhecer melhor a pessoa que colocam dentro de casa, não se envolvem tão rapidamente com tanta profundidade (não se “jogam de cabeça” na relação) e, em geral, os namoros costumam ser mais longos.

 

Em relação às questões ideológicas, eu irei colar aqui a observação exata que postei no Facebook em resposta: “...não creio que reinvindicar IGUALDADE/IGUALITARISMO seja "sucumbir à norma hetero"... Também não creio que se trate apenas do "casamento burguês heterossexual", até porque, historicamente como você muito bem sabe, o casamento enquanto instituição civil, portanto CIDADÃ, nasce em Roma, MUITO antes (séculos antes) da burguesia ter surgido e, na sua gênese, foi uma instituição igualitarista, já que, pela primeira vez, conferia direitos civis às mulheres (vide Paul Veyne, num inspirado artigo "A homossexualidade em Roma", in: Amor e Sexualidade no Ocidente, ed. especial da Revista L'Histoire/Seuil). Devo também alertar para os perigos de tomarmos a análise estreita do marxismo ortodoxo, o qual pouco ou nada fez, na prática, em prol dos direitos humanos. De minha parte, prefiro o culturalismo marxista.”

 

 

Finalmente, em relação ao “despreparo” dos homossexuais para usufruírem este direito, eu diria que é uma questão história, social e antropologicamente não construída. Falta a nós homossexuais, enquanto segmento, uma “cultura do casamento”, ou seja, um pensar a longo prazo em relação a constituir uma família e construir um patrimônio juntos. Até há bem pouco tempo, apenas os casais heterossexuais tinham como líquida e certa a partilha equânime dos bens, em caso de separação, e a sucessão, caso um dos conviventes fosse a óbito. Normalmente, no caso dos casais homossexuais, ocorrendo o falecimento de um dos conviventes, a família do mesmo (ou seja, pais, irmãos ou outros) se sentia no direito de reclamar o direito à sua herança, o que, não raro, envolvia até mesmo os móveis ou eletrodomésticos, fazendo com que o sobrevivente, além de enlutado, tivesse gastos imensos tentando reaver judicialmente parte do que havia lhe sido lesado. Muitos, mediante vários problemas que perpassam o preconceito, a discriminação e mesmo o medo de “ser prejudicado” profissionalmente, abriam mão de tudo e “recolhiam-se à sua insignificância”.

 

Diante deste triste prognóstico, a esmagadora maioria se resignava e partia mesmo para a mera satisfação da sua libido, o “viver o momento”, usufruir o hoje e o agora, sem pensar no amanhã, sem planejar, e até mesmo sem poder sonhar ou imaginar no seu dia a dia, ficando toda a possibilidade de sonho guardada para as noites, nos finais de semana.

 

Existiu sim o namoro, mas com foco quase que exclusivo no sexo, voltado para o gozo imediato e, portanto, volátil e passageiro, sem nenhuma possibilidade real de futuro.

 

Proliferaram as “fábricas de sonhos”, na forma das casas noturnas, com os seus ritmos frenéticos, cores, odores e paladares, a pródiga exibição de corpos jovens, cada vez mais desnudos e mais “malhados”, e o gozo imediato dos sentidos. A mensagem é clara: viva o hoje, porque amanhã ninguém garante.

 

A cultura homossexual em nosso país se construiu desta maneira, mediante uma divisão clara do sujeito: o “eu” produtivo, um anônimo na multidão, do universo do trabalho, que existe de segunda à sexta-feira, durante o dia, e o “eu gay”, onde eu encontro alguma humanização e realização, que existe da sexta-feira à noite ao domingo.

 

Agora, o reconhecimento do fato de que o casal homossexual é uma unidade familiar, que constitui vínculo, muda diametralmente esta triste realidade, nos reconduzindo ao caminho rumo à cidadania plena. Estamos, paulatinamente, mediante estas pequenas conquistas, deixando de ser “cidadãos de segunda classe” e, até mais importante do que isso, está nos sendo restituído o direito de sonhar e de planejar um futuro, menos solitário, e com a possibilidade de vida em comum.


Autor: Luiz Carlos Cappellano


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