Noblesse oblige



Resumo: Uma frustração consciente e exemplar ajuda a fortalecer o caráter.   

Noblesse oblige

 

Um rapaz de vinte e cinco anos chamado Antonio escreveu um conto e pediu a opinião de Luca Matéria.

O rapaz é um dos que frequentam a casa de LM e participam dos saraus literários.

- Dou minha opinião, mas quero antes ouvir o que tem a dizer os demais membros deste grupo. Você concorda, Antonio?

- Concordo.

Dito e feito.

A reunião foi interrompida e convocada outra para a semana seguinte. A idéia era que todos pudessem ler o conto de Antonio com calma e opinar com segurança.

Antonio, depois de LM, foi o primeiro a tomar assento à mesa do sarau, na noite aprazada.

Em seguida chegaram Ritinha, Calixto, Leandro, Gaspar e Serafim.

Com exceção de Gaspar, os presentes eram frequentadores assíduos. Gaspar, o mais velho de todos, comparecia pela primeira vez, levado por Leandro, seu sobrinho, e acostado na fama de beletrista, autor de vários livros.    

- Serafim, o que achou do conto de Antonio? – perguntou LM.

- Prendeu a minha atenção. Flui com desembaraço e arremata com elegância.

- Você, Calixto, o que nos diz?

- Excelente. Gostei de ver como o autor explora a cena de ciúme do caixeiro-viajante, extraindo dela uma ressonância cômica de rara sutileza.      

- Leandro, por favor.

- Não gostei. Me pareceu  muito erudito além de longo e démodé.

Antes que lhe perguntassem, Ritinha  declarou haver percebido no ciúme do caixeiro-viajante uma derivação mais trágica do que cômica. De todos os modos, via na ambiguidade o mérito maior do conto. 

- Senhor Gaspar, agora é a sua vez. Gostaria de dizer o que achou do conto de Antonio?

- Achei-o banal.

- Banal? Certamente nos dirá por quê?

- Por causa do tema.

- Que tema?

- O ciúme, ora essa. Nada mais banal que o ciúme.

Luca Matéria (caramba!) não estava preparado para ouvir tamanha imprudência. Sorriu  constrangido e calou, olhando para o teto. Constrangido, nem tanto pelo parecer apresentado, quanto pelo argumento oferecido para justificá-lo.

O tempo passava, o silêncio doía, o sorriso congelara. Instantes perplexos. A sala pedia a mediação do mestre.   

- Professor! Professor! – Ritinha sacudiu LM pelo braço.

Refeito, ele prosseguiu.

- Um só reparo ocorre-me fazer ao conto de Antonio. De fato, como observou  Leandro, o texto poderia ser mais conciso. De resto, louvo a imaginação do autor, a prévia e minuciosa caracterização dos personagens, o zelo melódico da prosa, a adjetivação aguda e penetrante.

Luca Matéria deu às suas  palavras a entonação característica dos discursos conclusivos, insinuando que nada mais tinha a dizer.

Em vão o fez, porquanto Ritinha levantou o braço e foi logo dizendo que não entendera o argumento de Gaspar. Não via como a banalidade do ciúme podia contaminar o conto. Cabia ao professor elucidar a dissensão.

Com efeito, o confronto parecia inevitável. A cortesia devida ao visitante –noblesse oblige - ameaçava sucumbir ao aparte de Ritinha, cuja curiosidade, lúcida e legítima, não podia ser ignorada. O fato de Ritinha estar noiva de Antonio de modo algum enfraquecia a arguição   da moça.  

A questão era saber se valia a pena deflagrar  uma contenda nascida de um pensamento notoriamente truncado.

LM sabia que Gaspar cometera uma gafe imperdoável, tanto do ponto de vista social, quanto intelectual. A gafe social até que podia ser facilmente perdoada, à conta, talvez, de um temperamento rude, ou de uma enxaqueca mal curada. Difícil de contornar, no entanto, representava ser a falha intelectual. Não era admissível que um homem de letras, famoso, autor de diversos livros, não soubesse distinguir o plano das formas literárias – o plano onde se situa o conto de Antonio -  do plano da vida mundana – o plano onde viceja o ciúme com toda a sua proverbial vulgaridade. O ciúme aparece no conto de Antonio, assim como, guardadas as devidas proporções, o adultério no Dom Casmurro, isto é, como matéria a serviço de uma intenção criadora.

Se banalidade houvesse no conto de Antonio, estaria ali, na arte de reconstruir a matéria da vida ordinária, nunca na matéria mesma.

Não, não valia a pena.      

Enquanto LM chegava a esta conclusão, Antonio pediu licença para se retirar, alegando cansaço. Ritinha o acompanhou. Os demais foram saindo um após o outro, exceto Gaspar, que permaneceu palestrando com o anfitrião até altas horas da madrugada. Noblesse oblige.


Autor: Osorio De Vasconcellos


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