Infeliz



Solitário, é verdade. Mas aparentava sobriedade em relação ao fato. Entretanto, em um dos seus obscuros pensamentos, possuía a vontade de dilacerar o infeliz que criara o termo "antes só do que mau acompanhado". Preferira muito mais estar pessimamente acompanhado a continuar só. Possuíra benesse alguma continuando com a vida desse modo. Odiara tanto o criador da determinada oração quanto o canino da 51, infeliz que o perseguia todas as manhãs na ida para o trabalho.

Após o batente como maquinista de uma antiga e quebrada locomotiva de exposição, sempre passava algumas horas de todas as tardes para espezinhar sua angústia. Ficara em seu reduto de 4 metros por 3, localizado abaixo da escadaria da herege pensão em que morava. Lá se encontrava sua medíocre cama, paraíso de suas confissões mais espúrias, e uma mesa de madeira com luminária de querosene e uma quantidade desbragada de papéis, tintas, livros, traças e falta de propensão. Dizia a si mesmo que não era uma malversação de seu escasso tempo, mas sim uma moderada tentativa de elasticidade mental, sem utilizar as incultas equalizações financeiras.

Considerava-se leitor nato, mas apesar das dezenas de livros amontoados, nunca lera nem uma única sílaba gramatical em toda sua existência. Astuto e intelectual escritor, nunca escrevera nem sequer frases genéricas desprovidas de cabal substância objetiva. Mas contava em centenas a quantidade de esferográficas azuis e pretas Concomitante a esses talentos, é apropriado anunciar, então, a sua habilidade mais do que extraordinária para com as pinturas: nenhuma até hoje. Porém possuíra amontoados de lixas que utilizara para raspar a única tela que possuía, quase transparente já, para o caso de uma surta eclosão de inventividade.

Passara toda a sua vida sozinho e sem saber como era a maneira correta de administrar o tempo: em horas comuns, em rostos que deslizavam diante de si sem o perceberem, em intensidade de corrida quando fugia do canino da 51, ou, ainda, na contagem regressiva que realizara para conclusão de sua colossal obra prima. Talvez a única, é verdade, mas isso não lhe causava míngua alguma quando ponderava sobre seu júbilo arquitetônico.

Pensara, algumas vezes, em gravar como os grandes mestres da retórica, utilizando nomenclaturas e pseudônimos únicos. Mas não suportava seu infeliz nome e não era dono de nenhum apelido ou codinome. Ao olhar para a tela em branco, o escritor se deu conta de que não tinha mais nada a dizer. Deixava, assim, de ser tão infeliz.


Autor: Ton Torres


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