Erro de português



Não estava procurando, mas dia desses localizei, na internet, um poeminha do Oswald de Andrade (claro que o diminutivo se refere ao tamanho, não ao conteúdo). Se quiser pode conferi-lo em: .
Esse poema tem o singelo titulo de “Erro de Português”. Um título que pode nos trazer à memória as possíveis dificuldades que tivemos nas aulas de português, quando tínhamos que aprender como escrever evitando alguns erros grosseiros tanto na escrita como na fala. Principalmente porque já houve um tempo em que nas escolas havia a preocupação com a correção gramatical e ortográfica.
Mas a preocupação de Oswald de Andrade, um dos ícones do nosso modernismo, era outro. Não era ortogramatical, mas antropológico-cultural. Pretendia mostrar que se os portugueses colonizadores tivessem valorizado a cultura indígena em vez de europeizar o Brasil, eles teriam sido indianizados. Caso isso tivesse ocorrido, o Brasil seria menos europeu, menos latino, menos Greco-latino... para ser, talvez algo mais plural, ambiental, natural... e mais paradisíaco. Afinal, não adotaríamos as pesadas e quentes roupas européias para vestir as roupas usadas pelos nativos, completamente adaptadas ao clima tropical – e não me venha dizer que andavam pelados, porque eles andavam bem trajados com suas tangas e seus corpos coloridos com cores caprichadamente coerentes com o clima e ambiente. Pelo menos foi essa a interpretação que fiz desse poema. Confira: Erro de Português.
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio,
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Mas o que foi o “erro de português”? O fato de europeizar o índio e, mais tarde, todos os seus filhos, os negros sequestrados da África e todos os demais que aqui se instalaram. Todos foram envolvidos pela cultura européia: portuguesa, no Brasil; espanhola na América espanhola; inglesa e francesa nas outras colônias.
E o pior disso foi que tanto no Brasil como em toda a América se deu o desastre que hoje recebe o pomposo nome de genocídio: dizimação dos índios para implantação de todos os erros e acertos, virtudes e vícios dos colonizadores. Por isso foi que o português “vestiu o índio”, ou seja, lhe impôs sua cultura e seus valores.
“Que pena”, ainda diz o poeta. E complementa: “fosse um dia de sol, o índio teria despido o português”. Diante dessa hipótese nula – pois concretamente não ocorreu – alguns dizem que isso é o que deveria ter acontecido: não o índio se vestir com as roupas européias, mas fazer com que o europeu se vestisse com os trajes índios. E assim teríamos um continente em que teria prevalecido a cultura autóctone, ou seja, os valores nativos teriam sido preservados e não se teria formado o sincretismo cultural que efetivamente ocorreu.
Mas aí podemos nos perguntar: se foi erro de português vestir o índio, teria sido um acerto o índio despir o português? O correto teria sido o europeu se despir de sua cultura para se indianizar? Esse não teria sido o mesmo erro visto pelo seu lado avesso, a imposição da cultura indígena aos colonizadores?
Do ponto de vista antropológico podemos dizer que efetivamente errou o português. Houve uma imposição da cultura dominante sobre uma cultura dominada. E isso foi uma violência – que se concretizou não só no continente americano como em todo o planeta: na África, na Oceania... A prática etnocêntrica vem se repetindo pelo mundo afora ao longo dos séculos.
O fato é que não temos como sanar o “erro de português” nem como evitar que ele continue ocorrendo, mesmo que seja em sua versão avessa, transformando-se em erro de índio. O fato é que ao longo dos séculos, sempre ocorreram situações em que um grupo dominou a outro e lhe impôs sua cultura e seus valores. O fato é que a hipotética indianização do português seria, também uma violência.
Mas o principal fato, o qual não foi considerado pelo mestre Oswald e que nem sempre é percebido pelos que defendem os direitos dos oprimidos, é que não importa quem seja o dominado e quem seja o dominador: o contato entre mundos distintos produz um novo mundo. E, no nosso caso, o erro do português produziu um mundo cultural muito mais rico do que só o europeu ou só o do índio.
Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador
Rolim de Moura - RO


Autor: Neri P. Carneiro


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