Pássaros
"Quando não há mais motivos para sorrir, pode ter certeza que não existe mais motivos para viver. Se o sorriso é a fonte da vida, por que mentimos tanto? Por que fingimos estar felizes quando queremos apenas ficar sós. Será que de fato vivemos em uma mentira?" - Foi isso que pensou Ana antes de se deitar, agora escorria lagrima de seus olhos e sangue de seus pulsos, desesperada só restava à solidão de mais uma noite escura em seu quarto, chorando baixinho para ninguém escuta-la, ela odiava ter que se explicar, já era bem difícil esconder as marcas em seu braço.
No dia seguinte pela manhã, ela foi acordada por um passarinho em sua janela, ele estava lá bicando sua janela, fazendo-a acordar. Então ela sorriu. Os olhos inchados de uma noite mal dormida, ignorados por um sorriso inocente. Sua mãe já havia saído de casa, eram apenas elas duas na casa. Quer dizer, às vezes seu irmão mais velho dava as caras. Ele se chamava Felipe, tinha 23 anos e havia saído de casa aos 17, dizia que seria musico e ficaria famoso um dia. Desde então ela nunca soube ao certo o que ele andava fazendo, devia estar morando no fundo de algum bar, tocando em troca de abrigo, vai saber.
Ana adorava ficar sozinha em casa, gostava de ver como o sol batia na janela, o silencio a fascinava, era o melhor momento para se ler, mas naquele dia ela não queria ler. Queria apenas se sentar na grama suja de seu quintal e ficar olhando para o céu. Talvez imaginasse desenhos nas nuvens, talvez apenas ficasse esperando a hora passar.
Ela não tinha muitos amigos, na verdade havia apenas um. David era um menino desajeitado, com um sorriso puro, o único que fazia ela se acalmar quando estava tendo pesadelos. Eles passavam horas juntos, sem trocar uma palavra. Era impressionante como eles se conheciam, um sempre sabia o que o outro estava passando, ela olhava para ele com sorriso e lagrimas nos olhos, ele vinha e lhe abraçava, era como se fosse mágico e tudo ficava bem, o mundo se acalmava. Eles se conheceram na escola, foi quando ela estava correndo para não perder a aula de matemática, ela diminuiu os passos e viu um menino na quadra, estava sozinho jogando basquete e ao lado havia livros e cadernos espalhados, até parecia que tinha passado um furação por lá. Ele olhou para ela e sorriu, ela retribuiu o sorriso e voltou a correr, ela vestia all star preto, uma moletom desbotado e seu jeans surrado. David vestia um tênis que imitava tênis de jogador de basquete, uma bermuda larga, também de jogador e uma regata com o número 23 nas costas. Na pressa e na correria, Ana deixou cair um poema que havia escrito noites atrás, então o vento soprou e levou aquele pequeno papel um pouco amassado até os pés de David, que leu com brilho nos olhos. Demorou semanas até que eles se encontrassem novamente. Desde aquele dia, eles sabiam que seriam grandes amigos. Todos os dias ele a acompanhava até sua casa e depois seguia seu caminho como se o dia fosse durar para sempre, o que ela mais gostava nele é que ele nunca perguntara sobre seu braço, o porquê vivia de munhequeira ou por que às vezes vestia agasalho em dia de calor. Ele sempre respeitou seu espaço, embora mesmo sem saber o que acontecia ele sabia o momento certo de abraçá-la.
Houve um dia, em que eles estavam voltando para casa, era uma tarde gostosa de outono, então decidiram passar pelo parque e por lá ficaram, ele jogando basquete e ela lendo seu livro, assim ficaram por horas, as folhas secas caiando e o barulho da bola, era encantador.
- David, o que é ser feliz para você? - disse Ana, com uma expressão de criança.
- Estar com quem gostamos, mesmo quando não estamos com ela.
- Mas isso é impossível, se não estamos com a pessoa, como podemos estar?
David sorriu e não respondeu, apenas lançou novamente a bola.
"Saudades de alguém que o vento levou, no inverno o frio toma conta de meu coração e você não está mais aqui para me aquecer."
David sabia que Ana não estava bem nos últimos dias, ela estava tendo uma crise de pesadelos, ela se sentia cada vez mais sozinha, passava horas trancada em seu quarto sem falar com ninguém. Sua mãe, nunca se preocupou com ela, passava mais tempo no trabalho do que em casa, e quando estava lá se dizia cansada demais para saber se a filha estava bem. Melhor assim, ela se acostumara a viver sozinha, a fazer suas coisas sem ajuda de ninguém, David foi à primeira pessoa a conseguir se aproximar de Ana, o único a conseguir colocar um sorriso em seu rosto. Mesmo não conseguindo saber o que a deixava tão triste, ele não perguntava.
Certo dia, ele chegou na casa de Ana, e a encontrou no banheiro, desmaiada. Ele lembra como se fosse hoje.
"Eu apenas queria fazê-la sorrir, tinha comprado um livro novo para ela. Senti um cheiro gostoso de café na cozinha, mas não havia ninguém. Cheguei a pensar que ela já sabia que eu viria e que tinha saído para comprar alguma coisa, decidi procura-la em seu quarto. Chamei, mas ninguém respondeu. Foi como se o mundo tivesse parado, e o céu perdido a cor. Por um momento pensei que o sol tivesse parado de brilhar. Foi a pior sensação que tive, pensei que a tinha perdido. Lá estava ela, desmaiada no banheiro. Ela tremia e suava frio. Tirei-a de lá e a levei para sua cama, levei um pouco de café quente, para que ela conseguisse descansar. Ela dormiu o dia inteiro. Antes de sua mãe chegar, tive que deixa-la. Fui embora com um aperto no coração, nunca tocamos no assunto, ela nunca quis contar o que houve”.
As aulas estavam chegando ao fim, faltavam menos de três meses para eles se formarem. Mesmo David sendo um ano mais velho do que Ana, eles estavam no mesmo ano do colégio. Enfim iriam se formar, David estava ansioso pelo fim das aulas, havia estudado muito naquele ano e dizia que iria passar na faculdade e se tornar um físico famoso. Ana vivia dizendo a ele "você mal consegue fritar um hambúrguer, imagina ser físico, você será um desastre ambiental! Acho que você devia fazer filosofia!". Ele a ignorava e continuava a sonhar com o dia em que veria seu nome da lista para faculdade.
- Ana, e você o que vai fazer quando terminar o colégio?
- Eu? Vou viajar e sair desse mundo!
- Vai para onde? - disse David.
- Vou para o céu talvez!
Ele nunca entendeu o que ela quis dizer com isso. Assim como ela nunca entendera o que ele dizia. Apesar das conversas deles não fazerem o menor sentido um para o outro, era no silencio que eles se entendiam.
No começo do ano seguinte, o sonho de David se realizou, ele passou na faculdade e teria que se mudar. Ana, mesmo tentando demonstrar sua alegria pelo amigo, não conseguiu disfarçar a tristeza nos olhos. Mas ela sabia que seria melhor para ele, já que, mesmo ela dizendo o contrario, ela sabia que ele seria o melhor! Ele era brilhante!
Antes de partir, David deixou uma foto com ela, uma foto que ela nem sabia que existia. Foi tirada naquele dia no parque, estavam os dois no balanço, de lado estava à bola e o livro, havia um pôr-do-sol lindo e atrás estava escrito "Para sempre no pôr-do-sol". Aquele foi o ultimo dia que eles se viram.
Quatro anos depois David voltou àquela pequena cidadezinha, chegou e foi logo correndo a casa de sua velha amiga, estava com uma saudade que não cabia no peito, não via a hora de abraçá-la e dizer o quanto sentiu sua falta. Queria contar tudo o que aconteceu. Ao chegar lá, deparou-se com uma casa vazia, parecia que ninguém morava lá há anos.
Ele voltou para sua casa desesperado perguntando se alguém tinha noticias de Ana, foi então que sua mãe com lagrimas nos olhos lhe contou tudo o que acontecera desde que ele partiu.
Ana havia falecido fazia três anos, ela já estava muito doente quando ele foi para cidade estudar.
- Filho, sua amiga faleceu um anos após sua viagem. Ela tinha câncer fazia muito tempo. Uns dois meses depois que você foi embora ela veio aqui e lhe deixou essa carta.
"David, acho que agora já esta na hora de você saber alguns segredos sobre mim. Mas antes, quero te agradecer por ter sido o meu único melhor amigo nesse mundo inteiro. Ah e eu sempre soube que você iria se tornar um grande físico, apesar de desastrado! Eu fui diagnosticada com uma doença muito séria há um ano antes de nos conhecermos na escola, naquele dia em que você me fez ter vontade de viver. Claro que você já tinha reparado as marcas em meu braço, antes de te conhecer eu me cortava todas as noites, não queria viver, não sentia vontade de sair da cama eu queria apenas morrer de uma vez para todas e livrar minha mãe do peso que era me ter como filha. Ela gritava todos os dias comigo, fazia que devia ter me abortado, que eu de fato não merecia viver e que nunca ninguém se importaria comigo. Hoje vejo que ela mentia, sei que você se importava comigo. No dia em que você me encontrou desmaiada, foi uma das várias vezes que tive uma crise, minha doença estava me debilitando, estava cada vez mais fraca, mas quando via seu sorriso eu criava forças para continuar. Quando você foi embora, fiquei tão feliz por você, sabia que agora você seria alguém importante, teria uma vida e sabia que a minha vida tinha valido a pena e que agora eu poderia ir em paz. Eu conheci meu anjo da guarda e agora eu serei seu anjo.
Faz dois meses que me internaram e não sabem quanto tempo ainda me resta, estou cada dia mais fraca, eu crio forças só de pensar em você. Mas não queria que você me visse assim, então foi melhor lhe contar por carta. Talvez não vamos mais nos ver, mas pode ter certeza que estaremos sempre juntos... Para sempre no por do sol”.
David terminou de ler a carta com lagrima nos olhos, saiu e foi para o parque onde aquela foto tinha sido tirada. Sentou-se no mesmo balanço que Ana havia se sentado naquele dia em que eles passaram uma linda tarde de outono. Ele chorou. Queria ter tido a chance de dizer que a amava.
No fim do dia antes do sol se por, ele foi ao cemitério onde ela havia sido enterrada e lá estava seu nome esculpido em letra de mão e no cantinho havia uma frase "Felicidade é estar junto de quem gostamos, mesmo quando não estamos com ela". David sorriu e teve certeza de que ela estava ali, olhando por ele, e que agora nada poderia ser capaz de machucá-lo, ele sabia que cada segundo ao seu lado tinha sido único e muito importante para os dois.
David foi embora e nunca se esqueceu da sua única melhor amiga, aquela que ele olhou e cuidou e que agora ela estaria olhando por ele. Amigo é aquele que esta com a gente, mesmo quando está longe.
Autor: Bia Sueiro
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