Clarice: Do Silêncio à Melancolia



Clarice: do silêncio à melancolia

Ulisses Macêdo Júnior

Resumo:

O presente artigo possui como objetivo principal, a análise de algumas importantes nuanças na narrativa de Clarice Lispector, sobretudo através do conto, O Jantar, inserido na coletânea Laços de Família. Observando de sobremaneira, a viagem introspectiva através da ação das personagens, conduzida por situações cotidianas e aparentemente banais. Analisando ainda, como ocorre a representação do inaudível, visto através dos silêncios, vazios e dores que tocam as personagens e, também, os próprios leitores.

Palavra - chave: Silêncio, introspecção, melancolia, relações humanas e reflexão.

Introdução:

Pensar na construção e evolução do ser humano hoje em dia é, ainda, vislumbrar e refletir sobre o seu passado histórico, suas possíveis origens, sua intensa relação com o meio, seu modo de lidar com o desconhecido. Percebendo as situações e fatos que mudaram os rumos da civilização; os benefícios ou prejuízos das tecnologias; a descoberta consciente da existência do inconsciente.

Nesse contexto, notório é o fato de que a linguagem é modo mais utilizado, pelo ser humano, para retratar acontecimentos, o ambiente que o cerca, ou o próprio ser. Desde as pinturas rupestres no princípio, até o momento atual na era da imagem, a linguagem não somente descreve o que o homem deseja explicitar, como também, cria facetas de um real, por vezes, somente edificado através dessa expressão. A Linguagem verbal, nesse meio, assume um papel preponderante, sobretudo levando-se em conta a sua larga utilização ao longo de todo o processo evolutivo da humanidade.

No entanto, no mundo dos sentidos humanos nem tudo pode ser definido ou explicado. Determinados fatos ou ocorrências somente podem ser sentidas. Como por exemplo, explicar a formosura singela de um pôr-do-sol mesmo através das mais belas palavras ou pinturas ? Ou como definir um poema que toca e sensibiliza ? Como explicitar aquilo que fica escondido através no silêncio ?

Diante disso, resta-nos reconhecer a existência de um vazio factual e intrínseco. Indefinível. Sentido apenas. Aquele que se esconde à sombra de um meio sorriso ou pela fresta de um olhar distante.

Silêncio que se constrói através da sua maior antítese: o ruído e o som. Os opostos que se integram e se complementam. Como assim afirmava o músico norte americano John Cage, um dos símbolos do experimentalismo musical, "nenhum som teme o silêncio que o extingue e não há silêncio que não esteja grávido de som" (CAGE, 1985, p. 98). Dito também pelo cantor e compositor brasileiro, Lulu Santos, em uma de suas mais belas canções quando também professa: "Não existiria som se não houvesse o silêncio, não haveria luz se não fosse a escuridão. A vida é mesmo assim dia e noite, não e sim..."

Na literatura, essa também forma de expressão ou recurso estilístico, o silêncio, é um mecanismo habilmente utilizado por alguns célebres escritores e escritoras, dentre eles, Clarice Lispector. Por ela, nos debruçamos nos vazios mais sórdidos e mudos do "não-dizível", das mais íntimas e difusas sensações humanas. Através da sua narrativa, acabamos conduzidos verticalmente para o sótão da nossa alma, local onde se escondem as mais duras verdades. E tudo, em um ambiente cotidiano, comum, apresentando, aparentemente, apenas uma história banal.

Clarice faz jus à definição de conto dada pelo escritor argentino, Júlio Cortázar, quando afirma que a fotografia seria um modelo comparativo para esse estilo de prosa, pois a partir dela veríamos um recorte "limitado" da realidade e, logo, mais profundo. Mas, em si tratando de Clarice, essa visão estática da fotografia, recheada de silêncios e vazios adquiriria uma profundidade muito mais densa.

Segundo Adriana Carina Camacho Álvarez, doutora e tradutora de Português pela Universidade da República – Uruguai, os contos de Clarice fazem parte de uma definição atribuída por alguns autores como "conto de atmosfera", modalidade que apresenta a profundidade psicológica de uma "viagem" introspectiva, conduzida por ocorrências do ambiente externo. Uma leitura e reflexão maior, provocada pela narrativa, a partir dos discorreres "banais", com a ação das personagens. Em seu artigo, O olhar multifacetado dos Laços de Família, Adriana Carina ratifica essa abordagem:

O conto de atmosfera seria, assim, uma narrativa na qual a ênfase não estaria colocada no desenrolar de determinadas circunstâncias ou acontecimentos externos que dariam forma a uma situação específica, mas sim na repercussão que esses fatos suscitam nas personagens que os percebem e, a partir dessa percepção, neles se envolvem.

(ÁLVAREZ, 2006 P. 201)

Em um de seus primorosos contos, O Jantar, inserido na coletânea Laços de Família, perscrutamos, através do olhar masculino de um narrador em primeira pessoa, na ascensão e queda de um tradicional representante da não tão antiga sociedade brasileira. Trata-se de um senhor de avançada idade que está a comer em um restaurante, e, oscila em momentos de equilíbrio e força, em outros instantes, fragilidade e desmoronamento. Mastiga, vislumbra, come e se edifica, depois pára e mergulha no ermo, no agônico.Na realidade, o "velho", como é assim tratado, aparenta ser um descendente do antiquado sistema de patriarcado em que homens e mulheres ocupavam lugares distintos. O narrador, além de problematizar a questão da identidade masculina, questiona as funções de centro que são atribuídas à personagem em questão. Logo, a crise e oscilação de postura do "velho", vêm a representar toda a artificialidade em que foram criados os alicerces de um mundo machista e opressor. E esse narrador, como representante do novo, da "moderna" geração, vivendo em sociedade de múltiplos valores ou quebra de todos eles, já não possui os arcaísmos do passado, e assim, sente-se mais dilacerado pela visão antagônica do velho.

Através da visão do angustiado narrador, ao mesmo tempo fascinado e repugnado, tais questões sociais são postas em cheque e questionadas. Em um fragmento da obra essa simbiose é bastante evidente.

Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensamento. Diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como se não suportasse mais – larga o garfo no prato. Desta vez foste bem agarrado, velho. Fica respirando, acabado, ruidoso. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea.

(LISPECTOR, 1998 P. 79)

Por essa diretriz, torna-se perceptível o nauseado estado do intermediador, ampliado e reforçado pelos silêncios e "brancos" presentes, e, sobretudo, sentidos nas "sombras" de cada ação da narrativa.

Outro aspecto de relativa importância merece ser analisado nas obras de Clarice. Trata-se de um recurso da escritora para evidenciar a falência das verdades absolutas, edificadas, e ou falência do próprio ser humano. Refiro-me a certos estados emocionais, em que se encontram na maioria das vezes, algumas das suas personagens. Levadas por situações na ação da narrativa, adentrando por ambientes intimamente sombrios onde os "vazios" tornam-se representativos, tais personagens chegam a uma situação de dilaceramento interior, atestado por alguns teóricos como melancolia. Não exatamente no sentido de tristeza somente, mas como estado necessário à reflexão e choque com a "realidade" e vida existente. Sobre o foco adotado de melancolia nas obras de Clarice, Jeana Laura da Cunha, em seu trabalho: A estética da melancolia em Clarice Lispector, aborda:

A melancolia desde o princípio, não será meramente abordada como parte de uma categoria da tristeza passiva, mas, sobretudo como resistência diante da crise que se processa na atualidade, seja por ameaças em relação a linguagem, ao contato com o outro ou como o próprio eu. Sendo a melancolia um sintoma crucial de desconforto, ela é, ao mesmo tempo, a única via possível para se dramatizar escolhas e rupturas e apontar possíveis caminhos.

(SANTOS, 2000 P. 28)

Nesse mesmo contexto e em semelhante significação, Arthur Schopenhauer afirma somente a dor ser positiva. Pois através dela emergirão muitas reflexões que irão a servir para evolução da humanidade.

Crescimento se tratada através, logicamente, dessa perspectiva acima mencionada.

Dor, melancolia, estranhamento, repugnância são, concretamente, elementos que contrastam com o tranqüilo, o simples, o trivial de uma vida aparentemente normal e comum. Nada melhor do que o choque de antagonismos para se chegar a uma situação de avanço, evolução ou, aniquilamento.

No conto O Jantar, de Clarice, esse paradoxo é bem visível. A princípio na figura do "velho" que esta a comer, como já dito anteriormente, oscilando em momentos de edificação e queda. Ruína logicamente marcada por uma dor e melancolia intrínsecas. Demonstrada, por vezes, por reações violentas; em outras, por silêncio sepulcral. Uma tentativa de mudança para outra situação, pós-crise, se assim podemos chamar, na vida da personagem. Com o narrador-personagem há somente o aniquilamento lento e gradual. Influenciado pela observação do "velho", sente-se fascinado e ao mesmo tempo dilacerado, mas não consegue se soerguer como ele. Ao final da observação e do ato não consegue nem ao menos terminar o almoço. Nesse instante o estado de clarividência, denominado também por epifania toma conta da personagem.

Mas eu sou homem ainda.

Quando me traíram ou me assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda essa potência, esta construção, esta ruína.

Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.

(LISPECTOR, 1998 P. 81)

O mais interessante de tudo isso, é que esses sentimentos são transportados para o leitor e, tais visões intimistas passam a figurar também nesse diálogo com o público. Uma verdadeira catarse sinestésica.

Por esse viés retornamos ao princípio. Clarice consegue através de sua eficaz técnica, nos dizer o "indizível", ou melhor, através dos seus roteiros "triviais", das suas aparentes histórias comuns, dos silêncios e choques, nos fazer sentir o que não pode ser dito somente através de palavras.

Referências:

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cutrix, 1994.

CAGE, J. De segunda a um ano: novas conferências e escritos de John Cage. Tradução de Rogério Duprat. São Paulo: Hucitec, 1985.

CARINA, Adriana Camacho Alvarez. O olhar multifacetado dos Laços de Família, de Clarice Lispector. Nau Literária. Porto Alegre: UFSM, 2006.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Debates, 1974.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família: Contos. Rio de Janeiro:Rocco, 1998.

SANTOS, Jeana Laura da Cunha. A estética da melancolia em Clarice Lispector. Florianópolis: UFSC, 2000.

Outras referências:

SANTOS, Lulu. Certas coisas. Último Romântico. São Paulo: Warner, 1987.

SCHOPENHAUER, Arthur.Viver é sofrer. São Paulo: www.culturabrasil.org/schopenhauer.htm. 2007


Autor: Ulisses Macêdo Júnior


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