Aforismo Na Obra De Machado De Assis: Uma Análise Em A Igreja Do Diabo



1 INTRODUÇÃO

"O prazer de dizer e refazer provérbios por seus avessos, de suspender a declaração sincera, para aí incluir o jogo de palavras" (WERNECK, 2008). É essa prazerosa forma de linguagem machadiana já considerada por muitos leitores que iremos analisar através do mais conciso dos gêneros literários, o aforismo.

A literatura nos permite atuar nas diversas áreas: a linguagem, na maneira de se expressar do autor e de seus personagens; a história, pois são aparentes na obra as peculiaridades de cada época; a sociologia, refletida nas relações humanas; a filosofia, quanto o autor deixa transparecer uma busca do conhecimento, do sentido da existência.

E ao analisarmos a obra de Machado de Assis criticamente, sem nos sentirmos tolhidos diante dos recursos retóricos, contextualizadamente perceberemos que o que está sendo dito pode nos representar algo muito mais do que encontrado explicitamente.

Tendo o objetivo de verificar a compreensão de textos clássicos, partiremos a análise de seu estilo, iremos repensar o enquadramento do autor em uma única Escola literária ou Estilo de época. A partir do conhecimento sobre o conceito e aplicação dos aforismos, veremos o aforismo à luz do conto machadiano e, especificamente, em A Igreja do Diabo.

2 MACHADO DE ASSIS: VIDA E OBRA

Conforme encontrado em Franco et allii (2003), em 21 de junho de 1839, no Rio de Janeiro, nasce Joaquim Maria Machado de Assis, neto de escravos, filho de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado, ambos muito pobre com um diferencial dos vizinhos: sabiam ler. Viviam em volta da chácara do morro do Livramento; prestavam serviços a D. Maria José, viúva do senador e madrinha de Machado de Assis.

Ainda criança Machado perdeu a irmã, a madrinha e a sua mãe. O menino que queira ser poeta começou a ganhar dinheiro tocando o sino da Igreja; por volta dos 15 anos, até então simples coroinha, conquistou a amizade de Paula Brito, que fazia de sua casa, ao mesmo tempo, tipografia, editora, livraria, mestiço como ele, Machado ganhou mais um protetor. Trabalhando como aprendiz de tipógrafo,em 12 de janeiro de 1855, na terceira página do jornal Marmota Fluminense é pela primeira vez publicado um poema de Machado de Assis, intitulado Ela.

A literatura diz que estes primeiros versos de Machado de Assis não diferiam muito dos outros publicados na mesma época pela Marmota, o que não impediu de outras publicações. Em 1857, tornou-se revisor de uma editora e em seguida do Correio Mercantil. Três anos depois, o escritor passou a trabalhar na redação do Diário do Rio de Janeiro, colaborando na seção Semana Ilustrada. Autodidata, foi conquistando: crônicas, artigos políticos, contos, peças de teatro e começou a ganhar nome como poeta.

Em 1867, aos 27 anos, começou uma nova seção, Cartas Fluminenses, no Diário,

um mês após o início da nova seção foi nomeado para o cargo de ajudante do diretor do Diário Oficial. Para conseguir dinheiro para se casar, vendeu a Editora Garnier as edições de três livros que queria escrever e os direitos de publicação dos livros Ressurreição, História da meia-noite e O manuscrito do licenciado Gaspar. Assim, no dia 12 de novembro de 1869 se casaram Joaquim Maria Machado de Assis e Carolina Augusta Xavier de Novais.

Em janeiro de 1970 saiu Falenas, quinze dias depois, Contos Fluminenses. O primeiro era uma coletânea de seus poemas, o segundo uma coletânea de contos publicados no Jornal das Famílias, mais um, inédito. Segundo a literatura afirma, Falenas não foi bem recebido e até decepcionante para os amigos do autor, que esperavam o livro de um grande poeta. Costa (2001): "Eram fracos, românticos demais, longos... Eram os contos exatos para o Jornal das Famílias"; dando a entender que não seriam ideais para publicação de um livro.

Ressurreição foi publicada em 1872, de acordo com os críticos da época, ainda era um livro cheio de defeitos, que Machado cuidadosamente fez questão de advertir no próprio livro.

Foi nomeado primeiro - oficial da Secretaria do Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1873, funcionário exemplar, pontual, eficiente, continuou a exercer as suas funções no Jornal do governo. Machado era responsável por acompanhar a aplicação da Lei do Ventre Livre e a política de terras. Após decreto assinado pela princesa Isabel, foi efetivado chefe de seção; era a completa estabilidade: poderia exercer sua função de escritor, sem a preocupação do sustento de cada dia.

Machado publicou mais quatro livros: Histórias da Meia – Noite (1873), livro que assemelhava com o tão criticado: Contos Fluminenses; A Mão e a Luva (1874); Americanas (1875) e Helena (1876).

No ano de 1878 foi publicada a obra Iaiá Garcia e o começo, a ditar à Carolina quando estava doente de retinite e outras complicações que o impediam de escrever e obrigaram o afastamento do Diário Oficial, o livro era Memórias Póstumas de Brás Cubas editado pela Garnier em 1881. Em 1882 publicou Papéis Avulsos, em 1884, Histórias sem Data.

Quincas Borba foi publicado em 1891, em 1896 publicou outro livro de contos: Várias Histórias. Na sala da Revista Brasileira,em 12 de dezembro de 1896, foi criada a Academia Brasileira de Letras, conta a história da ABL que a 4 de janeiro de 1897, com catorze presentes, Machado foi eleito presidente. O único voto que não recebeu foi o seu próprio. A sessão inaugural ocorreu em 20 de julho de 1897.

Em 1898 foi publicado Dom Casmurro, citado pela crítica como "o livro de Capitu e Bentinho, nada mais nada menos que o maior livro de Machado." Em 1904 foi o ano do grande golpe para Machado de Assis: "foi-se a melhor parte de minha vida, e aqui estou só no mundo", a morte de Carolina foi uma enorme perda para o autor que no mesmo publica Esaú e Jacó. Em fevereiro de 1906, publicou Relíquias da Casa Velha, dedicando um soneto a Carolina. Em 1908 foi a vez do livro Memorial de Aires, sem deixar de sofrer com a morte de sua esposa, a recorda na figura de sua personagem D. Carmo.

Como narra a literatura desde junho de 1908, Machado estava de licença no Ministério. "Licença forçada, ele queria trabalhar até o fim. Já não era possível, porém começa uma grangena na língua, e, quase sem poder se alimentar, perdia rapidamente as forças." (COSTA, 2001).

Os amigos que estiveram sempre presentes a casa de Machado, durante o período que ficou impossibilitado de trabalhar até sua morte; presenciaram a uma cena marcante, narrada por Euclides da Cunha, de acordo com Costa (2001):

... ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente de dezesseis a dezoito anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome, declara ser desnecessário dizê-lo ninguém ali o conhecia, não conheci por sua vez ninguém: não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura dos livros que o encantavam... Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo dessem-lhe ao menos notícia certa do seu estado. E o anônimo juvenil foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre: beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois por momentos ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

Segundo encontrado na Vida dos Grandes Brasileiros, foi à última visita que recebeu Joaquim Maria Machado de Assis, às 3h20 do dia 29 de setembro 1908, morreu com úlcera cancerosa na língua, provavelmente causada pelos ataques epiléticos, e problemas intestinais; o primeiro dono da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Assim, o que podemos concluir é que a vida desse autor foi "uma vida modesta, penosa, mas bem sucedida." (BOSI, 2005).

2.1 O ESTILO DE MACHADO

Para os estudiosos da obra machadiana, as obras do escritor em tela, assim como toda a literatura brasileira é dividida, por motivos meramente didáticos, em períodos ou o que alguns autores preferem chamar de estilo de época. Assim seu legado se divide em duas fases. A primeira considerada romântica iniciada em 1872 com a publicação de Ressurreição, livro que segundo a crítica literária foi bem recebido pelo público e também pela crítica da época, de enredo simples o livro já deixa claro características marcantes do autor, como a intimidade com o leitor.

A sua fase romântica é compreendida pela literatura por mais três romances: A mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia; romances criados em torno de situações complicadas, mas de soluções simples e previsível como em A mão e a Luva, trágico como em Helena ou o final feliz tão esperado impedido pela diferença social entre os amantes como Iaiá Garcia, o que exemplifica as características de Machado a ser enquadrado como romântico.

Também atestam os literatos que em 1881 Machado de Assis publica Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance considerado realista. De maneira totalmente inovadora começa o livro, a ser narrado por um defunto, a dedicar suas memórias ao primeiro verme que roer suas carnes, narra sua história do sepultamento ao nascimento. Machado transgride qualquer modelo convencional de narrativa. Em 1891 continuando nas escritas das memórias, publica Quincas Borba que narra à caminhada do personagem principal, Rubião a loucura e demonstra o lado crítico do autor em relação à sociedade da época, satirizando o positivismo de Comte, Machado indaga: "Ao vencedor, as batatas!".Machado de Assis aplica a lei da seleção natural - na época recém formulada por Darwin - às relações sociais. Na sociedade, assim como na natureza, a luta pela sobrevivência é voraz. Interligando-se assim ao romance anterior em relação ao humanitismo, como definiria Teixeira (s.d.): "uma ironia das relações humanas".

Em Dom Casmurro, publicado em 1899, Machado mostra a realidade matrimonial da sociedade burguesa da época, que em muitos casos viviam apenas de aparência. Por trás do casal bem sucedido, havia problemas, divergências e desconfianças. Levantando a questão do adultério nunca confirmado sempre insinuada, o autor continua a apresentar seu domínio de manipular o leitor, de levá-lo a crer no que o narrador lhe apresenta.

Os dois últimos romances machadianos encontram-se interligados assim como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba; Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), no entanto, unidos pela figura sábia e diplomática do Conselheiro José da Costa Marcondes Aires, "observador fino das sutilezas da psicologia humana" (BARBOSA, s.d.).

Esaú e Jacó conta a história dos irmãos gêmeos: Pedro e Paulo, que na linguagem sem precedentes de Machado iniciam suas brigas ainda no útero materno, título segundo narra a literatura inspirada na história bíblica de Rebeca que privilegia o filho Jacó em detrimento de Esaú. Nesse livro o autor deixa clara a sua preocupação e critica a situação política do país, no papel dos irmãos: um republicano e outro monarquista.

O diário de um diplomata é o último livro de Machado de Assis, Memorial de Aires de acordo com alguns críticos literários, o personagem principal seria o próprio autor por trás da máscara do Conselheiro. Deixando ao leitor, discretamente, opiniões e emoções sentidas como a Abolição da Escravatura.

Autores justificam essa divisão da obra machadiana em romântica / realista, de acordo com o seu amadurecimento pessoal, compreendendo a primeira fase obras de sua juventude e a segunda fase, adulta. No entanto, concordando com Senna (2008):

Depois de conhecidos os noves romances, porém, o leitor que voltar aos do início será capaz de neles identificar procedimentos e estratégias textuais que, embora se façam notar com maior nitidez em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), já se desenham com alguma sofisticação nos quatro primeiros.

A segunda fase de Machado de Assis compreende além dos cinco romances já citados, os livros de contos: Papéis Avulsos (1882) Segundo a literatura apregoa os contos de Papéis avulsos se arma em cima doaparecer, mostrar aquilo que se quer ser.

Em 1884, Machado publica Histórias sem Data. Ao explicar o título desse livro, o escritor justifica o fato de dois dos contos recolhidos não marcarem a data expressa. Nos contos demonstra o desejo de desmascarar a sociedade e a hipocrisia do ser humano.

Várias Histórias reúne os contos mais curtos do autor, os textos foram selecionados pelo autor, entre os que ele publicava nos jornais.

2.2 UMA ESCOLA LITERÁRIA, UM ESTILO A DEFINIR

 

 

Classificar Machado através das escolas literárias do Romantismo ou Realismo parece não ser tão simples. Segundo Chalhoub (2005):

Machado não aceitava rótulos e não se sentia confortável em uma ou outra Escola. (...) Para Machado, na arte literária existe uma verdade essencial e necessária que as escolas do Romantismo e Realismo são insuficientes para decifrá-las 'as teorias passam, mas as verdades necessárias devem substituir' citando Renan em companhia de Flaubert para quem o que importa na literatura é a Verdade.

O estilo de Machado sempre percorreu as escolas literárias de sua época. No entanto, não se pode caracterizá-lo em apenas uma, afinal não é difícil encontrar traços do Romantismo e do Realismo em uma mesma obra, assim como traços de escolas que estariam por vir.

Contemplando agora o estilo crítico, a obra de Machado é quase toda feita de pedaços de recordações e como resultado do estudo, da reflexão, da leitura de clássicos ele conseguiu chegar à plenitude de seu estilo; que seria uma maneira de escrever pessoal, própria, inconfundível, com características únicas, só dele.

Em 1873, Machado de Assis analisa a literatura brasileira e define o que pretende dela, no ensaio Instinto de Nacionalidade "desejo de criar uma literatura independente (...) O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço".

É relevante mencionar que o estilo de Machado abrange vários gêneros literários. Não existe dois 'Machados', um romântico, outro realista; existe um só, acima dos modismos dessas duas e de outras escolas.

Vários teóricos em suas pesquisas literárias chegam a afirmar que o autor extrapola qualquer tentativa de enquadramento rígido dentro de qualquer modelo convencional, como Matias (2007): "Machado de Assis é impar na literatura brasileira, pois ele não pertenceu a nenhuma escola literária, mesmo tendo contato com O Romantismo, Realismo e Naturalismo. Seu estilo é único e inclassificável".

Diante desse prisma, o escritor se tornou à luz do que se tem publicado a seu respeito, grande e renomado romancista:

  • Pela originalidade e agudeza na concepção da vida;
  • Pela profunda análise dos sentimentos;
  • Pela extraordinária capacidade em caracterizar as personagens;
  • Pelo estilo sóbrio e conciso;
  • Pela linguagem adequada a cada gênero literário.

Daí é possível encontrar em sua obra elementos clássicos, resíduos românticos, aproximações realistas, procedimentos impressionistas e antecipações modernas.

 

 

3 AFORISMO, CONCEITO E APLICAÇÃO

 

 

O termo "aforismo", de acordo com o Dicionário de termos de literários (s.d.), tem sua origem do grego aphorismós, pelo latim aphorismu e como afirma Bragança Júnior (s.d.), é possível conceituá-lo como uma sentença breve e doutrinal, que em poucas palavras explica e compreende a essência das coisas. Como diria Carpinejar (2004), "não é uma sentença que condena, mas que liberta. Exorciza a verdade em golpes súbitos, em períodos mínimos. Ponto de encontro entre a idéia e a intuição".

Podendo aparecer como afirmação política, filosófica, moral, apresentando um ideal de sabedoria. O aforismo é caracterizado como filosófico tendo uma pretensão de verdade, enquanto o aforismo puramente literário tem uma potência de expressão inesgotável.

"O aforismo apresenta uma natureza híbrida entre a poesia e a filosofia. Tem da poesia o ritmo e a captação dos contrários, enxergando relações entre objetos e seus díspares. Da filosofia guarda o alentado poder de interrogar e definir o espanto." (CARPINEJAR, 2004).

Tido como o mais conciso dos gêneros literários, o aforismo é visto na história desde o tempo de Heráclito (aproximadamente 540 a.C. – 470 a.C.) que é considerado por muitos o mais eminente pensador pré-socrático, autor que tem a fama de 'obscuro', de sua obra se conhece pouco mais de uma centena de frases, os aforismos.

No entanto, como defende Chaves (2004), "o pensamento aforismático não oculta nem revela a plenitude do saber do pensador. Limita-se a indicá-lo e cabe a quem interpreta buscar a compreensão." Já Guilherme (2006) contra ataca este pensamento afirmando que:" O uso do aforismo é instrutivo nele mesmo. Um aforismo não é um argumento Deleuze (s.d.) o chama de "um jogo de forças", algo através do qual energia é transmitida, e não através do qual conclusões são alcançadas.

Além de Heráclito e outros filósofos gregos, os chineses também já se ocupavam dos aforismos há mais de cinco mil anos. Há quem diga ainda que autores do Antigo testamento foram também praticantes inicias; tornando assim o aforismo a mais antiga forma de arte escrita do mundo.

A partir dessa breve forma de pensamento, os moralistas clássicos como Pascal e La Rochefoucald fizeram toda a tradição do pessimismo, expandida a Nietzsche, slogismo de Cioran, fábulas concisas de Kafka e críticas de Karl Kraus.

No Brasil, destacam-se na arte aforística Antonio Maria, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Murilo Mendes, Mário Quintana, Millôr Fernandes. Conforme Gullar (2008), "Não posso negar que sou dado aos aforismos, mania que, creio eu, peguei dos surrealistas". Machado de Assis e Clarice Lispector também são adeptos notáveis entre os brasileiros, como brincava a própria Clarice: "Em cada frase um clímax".

Para Fuerstenthal (2005) "os aforismos são filosofias light sobre assuntos de destaque, que na visão convencional são pensamentos de pernas para cima. Demonstram um mundo que todos conhecem, mas de uma maneira que ninguém pensou. Algumas vezes são chocantes, e são sempre surpreendentes".

Como concorda Pinto (2008), "o que interessa no aforismo, justamente não é a verdade revelada, mas a forma como ela abala as certezas estabelecidas e nos convida a olhar as coisas sob ângulos inusitados".

De acordo com a história literária, o período áureo das máximas e reflexões foi o século XVII francês, quando livres – pensadores e libertinos desafiavam os dogmas da Igreja por meio de frases cortantes, mas os aforismos permanecem contemporâneos nos estudos dos críticos literários. Goto apud Sugimoto (1995) que caracteriza os aforismos como "a ponta que denuncia o iceberg, a letra que faz adivinhar o discurso". Nessa perspectiva, os desaforismos seriam para o autor as sentenças de entendimento direto:

Não se trata de aforismo desaforado. É uma espécie de não - aforismo: algo que não se cristaliza nem precipita na mente, que não pretende sair pretensioso nem representar a suma ou súmula de alguém saber. Ele pouco ou nada sabe: é algo mais interrogativo que afirmativo, como um verdadeiro socrático.

"Assim como o poema, o aforismo, não depende de uma busca deliberada, embora seja a precipitação de algo que é fruto de uma meditação, atual ou anterior".(GOTO, op cit).

 

4 AFORISMO À LUZ DO CONTO MACHADIANA

 

 

"Um dos aspectos mais intrigantes da leitura de um texto é a verificação de que ele pode dizer coisas que parece não estar dizendo. Além das informações explicitamente enunciadas, existem outras que ficam subentendidas ou pressupostas." [1]Para realizar uma leitura eficiente, os autores sugerem que o leitor deve captar tanto os dados explícitos quanto os implícitos.

Machado de Assis e sua personalidade literária multifacetada, como analisam a crítica, propõe narrativas, que nos fazem refletir sobre o que está sendo dito. Sabendo que os subentendidos são as insinuações de uma afirmação, podemos insinuar que os textos de Machado estão repletos de subentendidos, conforme exemplo de Gledson (2007):

"Digamos assim se ele não houvesse encontrado meios de se expressar a respeito de coisas sobre as quais só podia se referir de soslaio, tais histórias jamais teria existido: podemos sentir sua satisfação quando se aproxima de outra questão espinhosa e acaba encontrando novas maneiras de falar sobre coisas demasiado embaraçosas para mencionar diretamente."

A literatura afirma que o modo pelo qual o contista Machado representa a realidade traz consigo a sutileza em relação ao não dito, que abre caminho para ambigüidades, em que vários sentidos dialogam entre si. Assim, na leitura de seus contos há sempre outra significação sugerida pela ironia fina e implacável, característica recorrente também nos romances machadianos.

Machado de Assis, que publicou diversos contos, cerca de duzentos, não nega a sua preferência aos contos, afirmando que: "Há sempre uma qualidade nos contos que torna superiores aos grandes romances, se uns ou outros são medíocres: é serem curtos". (ASSIS, 1886). E foram os contos machadianos, no século XIX, que fizeram o gênero literário atingir seu ponto culminante, como analisam os críticos, e os colocam entre os melhores de toda literatura em língua portuguesa e mesmo estrangeira.

Os seus melhores contos, afirma Bosi (2005), "são os que foram escritos durante a construção de Memórias póstumas de Brás Cubas".

Papéis Avulsos, publicado em 1882 é considerado inovador, a partir do grande aperfeiçoamento da linguagem machadiana que em seus contos estuda os pequenos problemas do ser humano. "Através de apólogos, diálogos. Existem também, muitos aforismos, e nisso Machado é mestre." (SILVA, 2003).

Mas não é apenas nos contos que Machado se apresenta adepto dos aforismos, em seus romances também os encontramos, em Memórias Póstumas de Brás Cubas podemos citar alguns como:

·Não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.

·A velhice ridícula é porventura a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana.

·Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

·A estima que passa de chapéu na cabeça não diz nada à alma; mas a indiferença que corteja deixa-lhe uma deleitosa impressão.

4.1 UMA ANÁLISE DO AFORISMO EM A IGREJA DO DIABO

O conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis, integra o livro Histórias sem data (1884). Esse conto narra à história do dia em que o Diabo, cansado de ser desorganizado, de ficar com as sobras das diferentes manifestações de fé resolve fundar uma Igreja, prometendo torná-la, hegemônica.

Por se tratar de um dialogo entre divindades: Deus e o Diabo, os críticos literários costumam classificá-lo como uma espécie de fabula ou sátira menipéia. "A sátira menipéia traz uma situação fantasiosa ou descabida, mas seu registro é ponderado, com o distanciamento e os elementos de realismo que tornam uma situação grotescamente plausível" (JÚNIOR, 2008).

Na linguagem machadiana a construção de seus enredos são baseados na simbologia de uma forma geral, no conto A Igreja do Diabo essa característica se apresenta com enorme relevância e também como um 'verdadeiro labirinto da cultura clássica' como evidencia Silva (2003): "Nada da literatura machadiana acontece por acaso. As várias referências de autores, histórias bíblicas, mitos e símbolos; tudo faz parte de um macrocosmo complexo de labirintos, por onde deve percorrer a imaginação do leitor ávido por novidades".

Com o uso do aforismo "Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo" (pág. 183)[2], Machado faz com o leitor reflita e encontre conclusões, como a própria definição de aforismo dada por Chaves (2004) nos favorece.

Nessa sentença o autor resume à intenção do conto, representando nas figuras de Deus e do Diabo a dicotomia da negação e afirmação. A verdade de Deus encontrada nas mais diversas visões religiosas e a sua negação na figura única do Diabo, que em muito se assemelha às mulheres machadianas combinando dissimulação, interesse, desejo e ascensão social, no caso, o desejo de ser maior que Deus.

O conto apresenta a personalidade cética machadiana de ver o mundo. Em sua visão, que "nunca fora um ateu, verdadeiramente. O repugnava era a Igreja oficial, com seus padres defeituosos, seus cinismos e hipocrisias" (COSTA, 2001), as religiões vendem ideologia, comercializão a fé.

A presença do Diabo no conto nos mostra o contrário da propagação religiosa, o que seria uma doutrina muito semelhante a de Deus pode ser valha, dando margem a várias interpretações. Assim seu Espírito de negação seria suficiente, que a negação seria sublime e singular.

Machado faz uma paródia com os cânones da Igreja Católica assemelhando a Igreja do Diabo: "Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas predicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha Igreja uma tenda de Abraão" (pág. 183), com a diferença que acaba sendo sua mais profunda negação.

De acordo com os estudos de Bersan (s.d.) sobre a sátira menipéia, afirma que:

O universalismo filosófico da menipéia abrange três planos: a terra, o céu (Olimpo) e o inferno. Procura apresentar as palavras derradeiras, decisivas e os atos do homem, retratando em cada um deles o homem e toda a vida humana em sua totalidade, caracterizando-se pela síncrise (ou confronto).

Confirmando a perfeita caracterização do conto em sátira menipéia no confronto eterno de Deus e o Diabo e, principalmente, o confronto do ser humano consigo mesmo. Nesse ponto vemos no conto a alegria e a satisfação do homem ao seguir a Igreja idealizada pelo Diabo, que ao descrever de Machado: "Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos" (pág. 186) . O que fez o homem crer no existir em um livre arbítrio divergente ao de Deus, no entanto, ao remeter aos sete pecados como principais virtudes, justificadas por exemplos literários, os homens teriam que desmentir as histórias a respeito do Diabo.

Como vários exemplos de personagens de Machado de Assis entre a eterna dúvida, as figuras de Deus e o Diabo, simultaneamente, um se torna a negação recíproca do outro e sua fiel tradução.

No capítulo IV Franjas e franjas o Diabo que se referiu ao céu como uma hospedaria de alto preço. Comparando a um negociador a figura divina, o diabo verifica seu êxito inicialmente e logo em seguida sua derrocada, no momento em que descobre os fiéis praticando às escondidas as antigas virtudes. Inconformado e repleto de ira o Diabo procura novamente Deus, que objetivamente e compreensivo a causa define "é a eterna contradição humana" (pág.190).

Como visto que o aforismo pode seguir implicitamente diversos princípios sejam filosóficos, políticos, morais, podemos definir então o aforismo "Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo" nesses diversos planos, além do analisado no contexto do conto.

O momento histórico da publicação de Histórias sem Data, a política brasileira atravessava a questão abolicionista no país. Aos poucos a escravidão era extinta, mas de acordo com a visão de diversos historiadores, o que ocorreria em 1888, com a assinatura da Lei Áurea, seria uma manobra política, ou seja, uma tentativa da Princesa Isabel de salvar o trono. No entanto, a escravidão continuaria disfarçadamente. O que levou Machado de Assis a apresentar por diversas vezes sua visão cética de mundo também em relação a política, em não acreditar no Progresso do país, em que já dizia com outro aforismo em seu ensaio Instinto de Nacionalidade (1873) "as pessoas podem mudar de roupa sem mudar de pele".

Os muitos modos de afirmar e apenas um negar tudo descritos por Machado também nos faz pensar quanto o seu princípio sobre a escrita literária, em não se enquadrar unicamente em determinado estilo. Os estilos literários e seus respectivos escritores representam os muitos modos de afirmar e apenas uma de negar tudo seria a verdade essencial e necessária, da arte literária apregoada por Machado.

O que nos faz concorda com Silva (2003) ao analisar o conto A Igreja do Diabo: "Com a 'carnavalização' de doutrinas, milagres, moralidades e mistérios divinos, Machado de Assis é que nega tudo".

As diversas interpretações favorecidas pelo aforismo de Machado, confirmam sua polimatia, que segundo explica Brandão (2008): "dá para tanta diversidade deve ser tornadas não só como casual, mas sintoma de algo que estará no cerne de seu programa de escritor, de leitor e pensador".

5 CONCLUSÃO

Este artigo procurou refletir nos textos de Machado de Assis a existência de aforismo, considerado o mais conciso dos gêneros literários, em virtude da pluralidade vista em suas obras. A consistência também se deve à apresentação das opiniões do autor, uma vez que, ao analisar sua obra criticamente constatamos a existência desentido nas entrelinhas, a despeito do que é encontrado explicitamente.

A descoberta de informações implícitas na análise do aforismo na obra machadiana contribui para uma reflexão sobre as divergências de alguns teóricos face ao conceito de aforismo, o que nos remete a várias interpretações dos fragmentos da obra.

A escolha do estilo de Machado se deve ao fato de ele perpassar pelas escolas literárias de sua época, sem, contudo, caracterizar-se unicamente em qualquer escola que seja. Essa preocupação nos apontou a necessidade de analisar o momento histórico inserido no contexto, as características da personalidade dos personagens, geralmente, reflexo do próprio autor, além dos recursos retóricos.

Partindo desse pressuposto, vemos que as críticas direcionadas a Machado em relação a sua suposta omissão de fatos importantes da vida de seu país, como questões raciais, interdependência de classes, hipocrisia de burgueses e religiosos estão presentes em sua produção escrita, em especial no conto A Igreja do Diabo.

As diversas perspectivas podem ser compiladas em um único aforismo: "Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo". Com isso, podemos concluir que nada na obra de Machado de Assis é meramente acaso.

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Autor: Ana Luíza Valentim Rocha Lucena


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