Dos princípios gerais da atividade econômica e o tratamento protecionista estatal



Dos princípios gerais da atividade econômica e o tratamento protecionista estatal

Nathália Nascimento Girardi[1]

 

 

            A Constituição Federal de 1988 é entendida como Constituição Econômica e tal enquadramento se dá em virtude desta trazer em seu corpo a forma pela qual o direito e a economia se relacionarão. Sendo assim, tem-se que as constituições brasileiras, desde a de 1934 em diante, são constituições econômicas, justamente por abordarem a interação entre direito e economia (FONSECA, p.66). No atual texto constitucional, no que tange à ordem econômica e financeira, os artigos carregam forte conteúdo programático, e em decorrência da ruptura com o momento político anterior, é sensível o destaque dado ao aspecto social. Nessa linha, a Constituição de 1988 no capítulo sobre a ordem econômica e financeira, mais especificamente no artigo 170, traça os princípios básicos que orientarão a ordem econômica brasileira.

            São vários os princípios consagrados, e o primeiro a ser elencado é o da valorização do trabalho humano. O trabalho não tem só função econômica, também tem função social, e o seu conceito pode ser jurídico, social ou econômico. O conceito dado pela economia se volta basicamente para aquele dado por Karl Marx, onde trabalho consiste na transformação da natureza. A dicotomia surge com o conceito jurídico de trabalho, onde trabalho somente pode ser prestado por seres humanos, sendo, ao contrário, para o economista, possível de ser realizado por uma máquina. A Constituição ao sagrar este princípio acolheu o conceito jurídico de trabalho, valorizando o trabalho prestado não por uma máquina, mas sim por um humano.

Em seguida, também orientando a ordem econômica brasileira, a Constituição traz uma das bases do capitalismo: a livre iniciativa. Seu objetivo básico é afastar a criação das chamadas cláusulas de barreira, que são impedimentos diretos ou indiretos feitos pelo governo ou pela iniciativa privada com o intuito de impedir a entrada de novos concorrentes no mercado. De fato, algumas medidas para barrar a livre iniciativa são legais, mas quem deve criá-las é o próprio Governo (por exemplo, no caso do artigo 177 da Constituição, em que são enumeradas atividades que constituem monopólio da União, como a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro), entretanto tal postura é excepcional, sendo a livre iniciativa a regra.

Os princípios da justiça social e soberania também estão presentes no artigo 170. O primeiro, bastante subjetivo, contesta decisões que não são socialmente aceitáveis. Programas de transferência de renda primária, como por exemplo, o bolsa-família, apóiam-se claramente neste princípio. O segundo, o princípio da soberania integra os chamados princípios fundamentais do direito internacional do desenvolvimento, e demonstra que o Brasil se relaciona em situação igualitária face outras nações soberanas no plano econômico. Sendo assim, o Brasil não entrega seu mercado interno a empresas estrangeiras sem autorização legal, afinal o mercado nacional requer proteção.

Adiante, há o princípio da propriedade privada e da função social da propriedade. O direito à propriedade está garantido pela Constituição em seu artigo 5º inciso XXII e é um pressuposto da liberdade de iniciativa, sendo a existência desta conseqüência e afirmação daquele, conforme ensina João Bosco L. da Fonseca (p. 94). A propriedade privada é um princípio, não pode ser atacado pelo governo – salvo em casos excepcionais. O Brasil cultua a propriedade privada como valor, que é a base do capitalismo. Já a função social da propriedade é mais recente, e se volta para o fato de que as propriedades tem que ter seus benefícios revertidos não apenas para seu proprietário, mas para a sociedade em geral.

Outro princípio que norteia a ordem econômica nacional é o princípio da livre concorrência, que indica uma situação onde todos os agentes econômicos podem entrar e sair do mercado ou alterar a locação de recursos sem existência de barreiras legais ou econômicas. O preço é fixado pelo mercado, não existindo então agentes formadores de preços. A livre concorrência perfeita não é possível, pois esta leva à seguinte situação: custo igual a receita, o lucro marginal é igual a zero (o menor preço possível é aquele em que a receita se iguala ao custo, levando a lucro zero). Naturalmente, mercado sem lucro não é atraente.

O princípio de defesa do meio ambiente, por sua vez, traz a tona o fato de que o desenvolvimento, o progresso econômico muitas vezes está em rota de colisão com a proteção ao meio ambiente, logo, deve-se buscar uma relação equilibrada, o que denota o caráter subjetivo de sua aplicação. Já quanto à defesa do consumidor, destaca-se aqui o interesse do constituinte em, atendendo às modernas correntes do direito, proteger o consumidor que atua como um dos elos da economia de mercado. Além destes, o princípio da busca pelo pleno emprego persegue a ampliação de oportunidades de empregos produtivos às pessoas, buscando o desenvolvimento e aproveitamento das potencialidades do país em geral, também encontra-se expresso no artigo 170 da Carta Magna.

Redução das desigualdades regionais e sociais também figura como um dos princípios da ordem econômica e fomenta decisões que são economicamente irracionais. De fato, a economia goza de racionalidade lógica, buscando lucro. O capitalismo é um sistema que tende a concentração de renda e também concentração geográfica. Se não houver uma força externa que tome decisões irracionais, o capital irá necessariamente se concentrar, não só financeiramente, mas geograficamente também. O objetivo é então reduzir as desigualdades regionais e sociais. No Brasil, órgãos como SUDAM e SUDENE foram criados com base neste princípio, para alavancar o desenvolvimento regional.

Por fim, o último princípio expressamente consagrado pela Constituição Federal, em seu artigo 170, é o de garantir tratamento favorecido a empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis pátrias e que tenham sede e administração no Brasil. E conforme ensina João Bosco L. da Fonseca (p. 97), “aqui já se adentra a questão proposta pela pergunta a respeito da conveniência de o Estado assumir, nos dias de hoje, um tratamento a título de favorecimento.”.

O capítulo da Constituição que cuida dos princípios que guiam a atividade econômica brasileira, no texto original, voltava-se para três assuntos básicos: primeiramente a questão principiológica, segundo, o tratamento protecionista para a empresa brasileira de capital nacional e, em terceiro, estabelecimento do papel do Estado dentro da ordem econômica (FONSECA, p. 92). Quanto aos princípios, estes já foram devidamente abordados no presente artigo, servem de base para toda a visão e compreensão da atividade econômica nacional. Com relação ao papel do Estado na ordem econômica, os artigos 173, que trata da limitada exploração direta da atividade econômica pelo Estado, com vistas para a adoção constitucional pelo modelo neoliberal de Estado, e 174, que define o papel do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica. Entretanto, o foco do presente artigo agora se volta para o tratamento protecionista para a empresa brasileira de capital nacional, assunto este que será alvo de maior atenção a partir de então.

O artigo 171 da Constituição Federal, antes de ser revogado inteiramente pela Emenda Constitucional nº 6 de 1995 dispunha que:

 

Art. 171. São consideradas:

 I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades. 

§ 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional: 

 I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;

b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.

§ 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.

 

A carga protecionista para as empresas brasileiras de capital nacional constante neste artigo é evidente, de tal forma a, inclusive, afrontar princípios constitucionalmente consagrados, como o da livre concorrência. Desta forma, de acordo com João Bosco L. da Fonseca:

 

"Indagava-se se tal protecionismo se coadunava com o direcionamento moderno da economia de mercado. Enquanto declinava o nacionalismo e se impunha a transnacionalização da economia, a Constituição brasileira adotava um direcionamento elevadamente conservador. Instituía-se um forte cartorialismo como forma de proteger paternalistamente a empresa brasileira dos riscos da concorrência, ignorando que somente esta faz crescer e desenvolver." (p.98).

 

 

            Seguindo os ensinamentos deste autor, o artigo 171 levava, a partir de sua análise e por ocasião da revisão constitucional, a duas vertentes de pensamento confrontantes (p. 98). A primeira vertente se posiciona em defesa da abertura da economia, enquanto que a segunda, afirmava a necessidade de estabelecer possibilidades protetivas à economia nacional. A partir deste confronto, surgiu outra interpretação, que de acordo com João Bosco L. da Fonseca “se expressa em termos de liberalismo social” (p. 99). Esta interpretação foi sustentada pelo presidente mexicano Carlos Salinas de Gortari, e consiste, essencialmente, em defender o liberalismo social como fortalecedor da soberania nacional, sendo esta a razão de sua sobrevivência e seu objetivo único. Busca-se, nesta linha interpretativa, derivar a fortaleza econômica interna da ativa participação nas regiões que concentram a dinâmica do crescimento mundial.

            Diante disso, João Bosco L. da Fonseca conclui, a respeito da revisão constitucional que culminou na revogação integral do artigo 171 da Constituição Federal:

 

"Não pode uma sede revisionista imprensada partir do pressuposto da necessidade de modernização para adotar decisões que ponham em cheque a soberania nacional e que, sob pretexto de abrir a economia aos investimentos estrangeiros, chegue na verdade a entregar o mercado nacional ao poder econômico internacional. Mas também não se podia manter um posicionamento contrário ao moderno direcionamento da economia. Assim é que a Emenda Constitucional n. 6, de 15 de agosto de 1995, revogou a disposição contida no artigo 171 da Constituição Federal." (p. 99)

 

 

            De fato, o mercado nacional requer proteção, não pode ser simplesmente entregue ao poder econômico estrangeiro. Ainda permanecem outras medidas que dão certa proteção ao mercado interno, como o princípio que determina a garantia de tratamento favorecido a empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis pátrias e que tenham sede e administração no Brasil, a consagração do princípio da soberania como um dos princípios norteadores da ordem econômica pátria, além da disposição do artigo 172 da Carta Magna, que diz que com base no interesse nacional, a lei disciplinará sobre os investimentos de capital estrangeiro, além de incentivar os reinvestimentos e regular a remessa de lucros. Naturalmente, o Brasil não pode simplesmente se abrir para o mercado estrangeiro sem qualquer medida que resguarde seu mercado nacional, entretanto se fechar completamente também acarretaria prejuízos.

A Constituição brasileira é considerada uma constituição social, se pautando em dar alto relevo ao cidadão, o que levou o deputado Ulisses Guimarães a apelidar o texto constitucional de 1988 de Constituição cidadã (FONSECA, p.90). Na parte econômica, a adoção pelo neoliberalismo se evidencia uma vez que a intervenção estatal existe, mas de forma comedida, sendo funções precípuas do Estado na ordem econômica, atualmente, normatizar, regulamentar, fiscalizar, planejar e incentivar. Nesse sentido, e à luz do acolhimento do neoliberalismo e dos princípios gerais da atividade econômica, o capital estrangeiro deve ser tratado de forma igualitária ao nacional, e isso significa ter uma economia aberta, uma economia de mercado. É claro que o capital estrangeiro é importante, é necessário para o país, todavia extremar a entrada de capital estrangeiro no país geraria danos consideráveis à economia nacional, da mesma forma ocorreria se o outro extremo fosse adotado, de fechamento do país para o mercado estrangeiro (a Lei 4.131/62 cuida da regulamentação da aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior).

Com base em todas as diretrizes passadas pelos princípios adotados para a ordem econômica, e o destaque ao aspecto social dado pela Constituição, mesmo que em alguns casos esta atuação possa criar exceções à aplicação de algum ou alguns destes princípios orientadores, medidas protetivas devem existir no ordenamento pátrio, de forma a permitir um equilíbrio entre o mercado interno e estrangeiro, com vistas a permitir um desenvolvimento econômico cada vez mais substancioso para o país, incentivando seu mercado interno, mas apoiando-se também no poder econômico internacional, visando sempre promover o sadio desenvolvimento da economia nacional, para então equilibrar a interação entre mercados internacionais e nacionais.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. CLT Saraiva e Constituição Federal. 37. ed. atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2010. xxxii, 697, 166 p. (Legislação brasileira)

 

FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 6. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010. xvi, 344 p.

 


[1] Estudante da graduação do curso de Direito, 10º período, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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