A Tragédia Grega Ensina?



A antiguidade é fonte de grande riqueza cultural

A antiguidade é fonte de grande riqueza cultural. Talvez seja por isso o objeto de estudo de diversos pensadores, de filólogos a antropólogos, de arqueólogos a filósofos. Vamos tratar da tragédia grega enquanto elemento formador da polis. De maneira bem superficial usamos o nome polis como sinônimo de cidade. Não é apenas isso. Uma definição simples e geral para o termo Polis: a Polis é o lugar de todos. Polis, é, acima de tudo, uma construção de uma mentalidade cultural, isto é, a instituição da moral de uma determinada época. Quando digo instituição moral me refiro à formação de um padrão da idéia de “bem”. Quando tentamos responder perguntas como: o que devo fazer? Como devo agir? Estamos exercitando a moral. Desse modo, o grego daquela época constroi a sua conduta de vida, seu modo de ação no cotidiano. Nesse âmbito surge o conceito grego, “sophrosyne”, quer dizer, temperança, comedimento, em suma, uma reflexão sobre como agir diante das diversas circunstâncias. Em linhas gerais, tomamos como principal enfoque deste trabalho mostrar que a tragédia grega ajudou na formação da coesão social da polis, sua hamonia. Tendo em conta que a harmonia da polis dependia estreitamente de um sentimento de igualdade entre os cidadãos, ou seja, a consciência de que todos jazem sobre a mesma condição, a condição humana.

Não vamos nos deter nos detalhes artísticos da tragédia. Nosso objetivo é constatar qual é sua importância para a sociedade grega antiga.

A tragédia grega aparece após a epopéia – de Homero e Hesíodo - Por volta de 600 a.C,em Atenas, reunia grande parte da população grega num mesmo espetáculo, o teatro. A música junto aos diálogos curtos acendia o entusiasmo do público e arrastava os gregos ao delírio. Os diálogos das peças ocultavam alguns elementos, por exemplo, um personagem fala com sua própria irmã sem que esta saiba que esta falando com seu irmão. Desse modo a tragédia assume uma textura dramática.

O ator trágico faz o comum torna-se inaudito. Faz o comum torna-se novo, diferente, não habitual. Acontecimentos considerados normais da época, são questionados na tragédia. Trazem a baila um questionamento sobre a ação do homem. O que fazer perante a iminência da morte? A tragédia mostra os dilemas e as contradições nas quais envolvem-se os seres humanos, envolvidos em situações conflitantes que os impelem para a ação. Agir é perigoso. Mas é preciso agir, pois a ação exprime, em sua essência, a vida.

No começo as demonstrações artísticas eram privilégio apenas de membros da corte, portanto, exibidas em palácios, e nunca em lugares públicos. Com o advento da polis a arte, nos moldes da tragédia, deixa de ser privilégio de alguns para torna-se objeto de todos. Questões que antes eram discutidas apenas entre membros da alta hierarquia tornam-se parte dos debates públicos em praças públicas, a agora.

O grego que assistia a peça trágica estranhava algumas ações do ator. Esse estranhamento ocorre pelo ocultamento –desvelado no fim de cada diálogo – de informações. O caminho traçado pelo poeta dá uma sensação de espanto e medo. Provoca uma mudança abrupta de emoções no coração do expectador. Nesse jogo dialógico entre aquilo que se oculta e o que se estranha, o poeta traz a tona a idéia de “pathos” grega. O ‘pathos’ é a influência de forças externas sobre o pensamento e comportamento do homem. Assim, ao sair da peça o cidadão grego sente-se empelido a refletir sua própria ação, seu lugar no cosmo (ordem).

Assim como na epopéia a tragédia retrata o herói, situado entre os deuses (divindade) e o homem. “No novo quadro do jogo trágico,... o herói deixou de ser um modelo; tornou-se, para si mesmo e para os outros, um problema.” O herói alimenta sua força na hybris, isto é, ele se glorifica por meio do excesso e da desmedida. Ao expressar seu desejo, e tentar satisfazê-lo, o herói causa uma erupção de sentimentos na platéia – é justamente nesse momento que compreendemos a função da tragédia enquanto ensinamento cívico. Só para lembrar montaigne; o filósofo dizia: aquilo que irrita e desagrada desperta e atinge melhor do que aquilo que agrada. É sobre essa ótica de montaigne, que os gregos eram instigados a pensar. Pensar a morte é pensar a vida; pensar a fraqueza é pensar a grandeza. Reconhecer-se pequeno é tornar-se grande. Com pensamentos como esses , o gregos antigos tornaram-se expoentes para toda a civilização ocidental.

A tragédia não retrata a atualidade da Grécia antiga, mas fala a respeito de um aspecto universal, comum a todos os homens de todas as épocas, o destino de cada um enquanto indivíduo. Induz ao homem orientar sua ação num universo de valores ambíguos onde tudo é instável e perigoso. Aqui vem a pergunta que cada um pode fazer a si mesmo: O que devemos fazer para aceitar melhor as nossa limitações e incapacidades? Para os gregos as limitações da condição humana estão entranhadas com aquilo que eles entediam por destino. Deste modo, o cidadão grego se perguntará; o que posso fazer para evitar o mal que lhe sucedeu ao herói trágico? Ele, o homem grego, teme cair no mesmo erro que o herói trágico.

A paidéia – formação do homem grego de criança à idade adulta- se fortalece com a tragédia e permite ao grego conhecer melhor sua interioridade, o seu “daimon” – cabe dizer que o “daimon” não representa necessariamente a força negativa interna de cada um, assim como o herói, o “daimon” se localiza entre a divindade e o homem, portanto, ele pode ser hora algo positivo, hora algo negativo.

O herói trágico não é o mesmo que o herói da epopéia, ele não é um exemplo a ser seguido, não representa um ideal de homem –como o herói épico-. Ele representa a falta de comedimento e acaba em sofrimento. O homem grego vê no herói trágico sua própria desgraça.

A tragédia grega permitiu ao grego conhecer-se melhor sem colocar-se em oposição à vida púbica. O sujeito reconhece seus erros e seus limites e tenta superá-los por meio da catarse (purificação). Como se alcança a catarse? Através do domínio dos próprios desejos, dos prazeres, o controle da hybris. A catarse do ponto de vista antigo não é mesma catarse tratada pela Psicanálise. Não quer dizer liberação de desejos reprimidos. Representa a identificação do sujeito com os personagens das peças trágicas. Desse modo, o indivíduo atinge um grau de temperança, a “sophrosyne”, justa medida, o equilíbrio da ação. O sujeito temperante é aquele que domina seus próprios desejos. Os adversários que ele combate são parte dele mesmo. Com a “sophrosyne’ o sujeito torna-se objeto par si mesmo, uma subjetivação. A tragédia é um ritual que purifica o mal, expurga todo sentimento de superioridade que o indivíduo possui. Não há o mais forte ou o mais belo, mas é o reconhecimento das fraquezas humanas que permite ao sujeito sentir-se igual aos outros. Torna-te o que tu es. A solene frase escrita por Nietzsche, deve ser entendida aos moldes gregos, e, quer dizer, reconhece o quão o humano que eres, reconhece a tua condição, a tua espécie, saiba quais são os teus limites, e, só assim terás um campo aberto por desvendar.

No século da tragédia não havia a noção de “eu” tal como temos hoje, um “eu” individual, fragmentado, deslocado da vida pública. Inexistiam noções como livre arbítrio, autonomia, vontade. O grego não se considerava senhor de sua integridade, existem forças que agem no indivíduo que independem da vontade, por exemplo, a constituição biologia, a história vivida de cada um, o contexto social. São condicionamentos ao homem que independem dele. O grego aglutinava todos esses condicionamentos no conceito destino. Do destino nada se sabia, saber o destino é coisa para os deuses. Ninguém podia ser responsável pelo seu próprio ato, visto que aquilo fazia parte do destino. Sem a noção de um “eu” individual, não há idéia de culpa, e sem culpa não é possível pensar em punição. A idéia de culpa ligada à punição surgirá com o advento do cristianismo. Se não há punição alguém pode pensar, qual seria o instrumento regulador da ordem social? Uma resposta que satisfaça um questionamento como este exigiria um estudo filológico e histórico da Grécia antiga, aqui pretendemos apenas assinalar alguns elementos.

Quando o homem grego tenta agir com temperança -sophrosyne-, ele, de certa forma, age na polis. A preocupação consigo mesmo, do sujeito, culmina na harmonia da polis. É na polis que o homem grego se sente igual perante aos outros. Podemos perceber a importância da tragédia em fazer os gregos reconhecerem-se como iguais. Destarte, a polis se afinca numa base unitária. Nesse contexto, não há separação entre vida pública e vida privada, para o grego ele é parte de um todo. Um todo chamado de polis.

A purificação através do domínio de si é uma medida que abranda o grau de maldade de cada cidadão, e isso engendra a manutenção do cosmo grego, a ordem.

Não podemos conceber o conceito grego “sophrosyne” como instrumento de controle social, não como um olho que guarda e vigia seus cidadãos. A renuncia do homem grego não é a mesma que ocorria no cristianismo. Na época cristã a renuncia era realizada visando obter um fim, um lugar junto a Deus após a morte, uma recompensa. Para os gregos não há essa idéia de recompensa, de premiação. A renuncia feita a partir da temperança é apenas uma boa forma para aceitar a condição humana, é um modo de não entregar-se aos sentimentos que empobrece o homem, por exemplo, raiva, inveja, rancor. Não entregar-se não significa que o sujeito deixará de sentir raiva, mas ele impedirá que a raiva tenha um efeito negativo. Os sentimentos são involuntários, não podemos deixar de amar uma pessoa como quem desliga uma televisão ou não conseguimos abolir a tristeza, mas podemos aprender a lidar com esses sentimentos a fim de obter um efeito positivo. Era assim que funcionava a temperança para os gregos da polis. É necessário dizer aqui que, os gregos da época da tragédia só buscavam a “sophrosyne” por medo, medo que era provocado pelas peças trágicas. Portanto, a tragédia induz ao homem grego a ter uma vida temperante. É esse modo de vida que terá uma grande importância para a polis.

Para o grego antigo a “catarse” não é uma manifestação de sentimentos reprimidos. Trata-se de uma relação consigo mesmo, uma questão de auto-superação, vencer as próprias fraquezas.

Como já vimos, os gregos não possuíam o conceito de culpa do direito moderno, ninguém podia errar pela própria vontade, só se erra pela ignorância, como apontou Sócrates. O pensamento de Sócrates é herdeiro da tragédia e, portanto, toda sua filosofia perpassa os ensinamentos cívicos que encontram-se no substrato das peças trágicas.

O daimon do qual se diz que acompanhava Sócrates é a cristalização do “pathos”. Ele não expressa uma qualidade especial que o filósofo da moral tinha. Não é um distintivo que nomeia a superioridade intelectual de Sócrates, apenas sugere que todos estão sujeitos a praticar um ato contra a vida de outro, portanto, é necessário cuidar as próprias paixões, para que estas não levem ao homem a cometer uma crueldade. Mais uma vez, vemos como a tragédia ensina que todos os homens são iguais em termos de humanidade. Todos sofrem, amam, odeiam, etc.

A consciência de um destino, do qual nada se sabe, é uma evidência que não se consideravam donos dos próprios passos. O homem grego, daquela época, se sente integrado a “physis”. Comumente entende-se por “physis” natureza, mas como sabemos da vantagem da língua grega arcaica em condensar vários significados numa mesma palavra, deixamos ao leitor uma citação:

“physis é o nome correspondente aos verbos produzir, fazer crescer, formar-se,crescer asas.” (Ferrater Mora, 2271)

“Physis significa , pois, originalmente, o céu e a terra, as pedras e as plantas, os animais e o homem e a história humana como obra dos homens e dos deuses” (Ferrater Mora, 2271)

O homem grego se concebe como parte integrante da “physis”, nunca acredita ter uma postura objetiva (O olhar de fora do cosmo) – alusão para a dicotomia sujeito-objeto – Ele é apenas mais um dentro do cosmo e por isso não pode decidir a respeito da própria natureza humana. Alguns anos mais tarde essa visão perde lugar, a saber, com o advento do humanismo a cisão entre homem e natureza ocorre, do ponto de vista cientifico iluminista, encontra sua maior expressão na física de Newton e no pensamento de Galileu. Nessa visão o homem acredita ser capaz de conhecer as complexidades do universo com uma olhar externo, objetivo, sem juízos de valores. Tanto Galileu como Newtom e Descartes compartilhavam da mesma idéia; pode-se enxergar a natureza com um olhar destituído de emoção, com a razão pura.

É enfadonho e complicado imaginar como um homem reconhece a si mesmo como um grão de milho no milharal. Um lugar onde o indivíduo nunca é melhor em relação a seus semelhantes, mas em relação a si mesmo. Eles se espelham nos deuses, não há espaço para competição individual, não vemos uma exaltação do “ego”. Se o sujeito não pode ser culpado por males feitos, também não pode ser premiado por puro mérito próprio. Parte do mérito é de fonte divina. Aqui vemos uma nítida semelhança da cultura grega e cultura oriental, do ponto de vista mitológico.

Contudo, percebemos a dívida da cultura ocidental para com a cultura oriental. Os mitos religiosos manifestados em tom de rituais, devolvem ao grego a harmonia. É justamente dessa relação de tragédia e polis que nasce o equilíbrio dos desejos, pelo exercício do preceito delfico, “nada em demasia”. O sujeito tenta fazer aquilo que o herói trágico não foi capaz de fazer, guiar suas paixões.

Cada homem participa de uma queda de cabo de força com seus próprios desejos, com seus próprios demônios, com sua própria razão.

Deixo a voçês uma última frase:

o homem não pode ser definido, o homem não tem essência, o homem é um monstro, um enigma que não tem resposta.


RELATÓRIO ACADÊMICO ESTÁGIO
Autor: Thiago Rodrigues Braga


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