Guarda-costas



Guarda-costas

                   Era junho.  A madrugada estava em crepúsculos, solapada pelos primeiros clarões do dia. Um vento frio soprava. A família de Francisco, como tantas outras, cansada do trabalho estafante do dia anterior, ainda dormia. Os ratos faziam a festa... Eram livres como poucos... Derrubavam, roíam e destruíam, como se odiassem os humanos, por torná-los escravos do horário... Um deles, perseguido pelo gato sobejo, correu no caibro apressado e não desviou da lata de graxa que João, irmão de Francisco, guardava escondida no caibro. Francisco pagou o pato. A pancada foi forte e o galo subiu na fronte, antes adormecida, começando logo a sangrar. A testa limpa agora mais parecia um estranho arco-íris, consequência da mistura dos corpos e sangue dos carapanãs chacinados e da graxa marrom que se espalhara na testa de Francisco.

                   - Malditos ratos!

                   Àquilo aumentava ainda mais o seu drama. – E agora?...

                   A dor era intensa, mas muito maior era o aperto no coração e a necessidade de sair. Um homem fora ameaçado de morte e a justiça o escalara para protegê-lo, para mantê-lo vivo. Teria que ir! Aceitara ser policial e essa era uma condição imposta pelo ofício. Massageou o galo e com a ponta do lençol embebido em cuspe atalhou um filete de sangue que teimava em escorrer pela testa, enquanto ouvia o to fraco de um capote que retumbava ao longe. Maldita seja a geração dos roedores, parentes da peste, errônea criação divina.

                   Olhou para a esposa ressonando. Repassou um por um dos familiares adormecidos e, deixando-se absorver pelos pensamentos, condenou-se, vendo que em seu horizonte lar, pontilhados de sorrisos infantis, todos acreditava nele, dependiam dele. Poderia até se lascar daquela vez, mas, por eles, pela sua família e por amor a profissão que escolhera, aceitara defender um ser que sequer conhecia e agora a sua permanência neste mundo humano dependia do seu desempenho e da sorte do ameaçado... É a lei da vida... Banalizada e em baixa cotação neste tresloucado palco de consumo...

                   Não era burro, isso é verdade, mas aquela pequena cidade precisava mais era de mão de obra e não dos seus conhecimentos sobre as civilizações desaparecidas... Às vezes tinha vontade de dizer que se esforçava para ser ele. Que o sorriso morria nos dentes, tornando-se careta, toda vez que perscrutava a falsidade do momento, da profissão gaiola... Nas rodinhas de mexericos, tão comuns no meio das forças policiais, tornava o ambiente tenso, fazendo nascer a expectativa de quem tentaria soerguer o bate-papo. Ele ficava aniquilado, sem condições de disfarçar a sua revolta, pois a garganta embargava na frustração de ideais tolhidos, sentindo que não dava mais para representar... Nos últimos anos parecia que um malfado o acompanhava. Toda vez que tentava abrir a boca complicava-se todo, era um desastre!...

                   Os amigos de trabalho já nem conversavam com ele.

                   Era o careta, o chato, o quadradão antiquado.

                   Aceitava. Calmo e parcial. Preferindo ser assim, a macular sua própria personalidade, abrindo mão de princípios que para ele eram quase sagrados.

                   Foi tirado bruscamente das reflexões pela cacetada da ratoeira. Lá na cozinha, perto da pia, mais um rato perdia a vida. “Antes ele do que eu” balbuciou baixinho.

                   Resolve levantar-se. Avança pelo corredor, cruza a porta da cozinha e observa pensativo o quadro da última ceia, fixando o olhar em Cristo. - Por que teria que ser assim?... Afinal de conta sua vida valia tanto quanto a do homem que fora destacado para proteger. Tornando-o um guarda-costas.

                   Invoca o Creio em Deus Pai e, logo em seguida, lança mão do cinturão cartucheira, com um pau de fogo em cada bainha.

                   Se fosse preciso, faria tocar a música fúnebre de Samuel Colt...

                   Tudo pronto. Poderia sair. O velho relógio bitúnia acusava seis e meia, mas parece que pela primeira vez falhara, pois o véu da noite ainda pairava sobre aquela suava manhã de junho. Pisa os pedais da magrela, imprime velocidade, mas sente que havia esquecido alguma coisa. Ah, sim! Esquecera-se do costumeiro sinal da cruz, que se habituara a fazer na saída para o trabalho e na volta pra casa. Para ele aquilo era um ritual sagrado. Larga uma das mãos do guidom da bicicleta e gesticula baixinho: Em nome do Pai, do Filho e do... Filho da p! – Grita de repente com um motorista que o salpicara de lama. É desse jeito, exclamou olhando pra calça branca: “o pão do pobre só cai com a manteiga pra baixo”... Era um verdadeiro drama aquela travessia diária entre casa e delegacia. Em pleno inverno, se é que ainda existem estações, era quase impossível. Até perdera as contas das peças que improvisara na magrela. A coitada estava mais bagunçada do que penteadeira de puta! Sua previsão econômica para racionar o parco salário denotava um fracasso total, como muitas outras. Era melhor ser esfolado pelos taxistas do que manter a magrela rodando naqueles malditos buracos, cheio de ruas... Enfim desmonta da magrela em frente à delegacia, onde é saudado pelo delegado.

                   - Olá, Francisco. Continuas pontual como um paquerador.

                   - É à força do ofício, delegado.

                   Depois disso, tudo foi silêncio na pequena delegacia, só quebrado pela chegada de um carrão metálico, de onde um homem, barrigudo, bem trajado, baixa o vidro da porta e saúda o delegado, perguntando logo em seguida pelo seu guarda-costas, no que foi prontamente atendido por Francisco, que nem sequer recebeu um cumprimento amigável. Fruto, talvez, da tese da invisibilidade pública que triste e vergonhosamente acomete o comportamento social de muitas pessoas poderosas e ricas, levando-as a se sentirem seres superiores... Francisco, já meio que acostumado, não se deixava abater, focando a sua atenção e o melhor dos seus esforços no cumprimento da missão que lhe fora determinada.

                   O veículo então parte em média velocidade, ignorando que numa esquina próxima à delegacia um fusca também parte vagarosa e disfarçadamente.

                   Francisco, raposa velha, logo percebeu que estavam sendo seguidos, mantendo-se na espreita, preferindo não assustar o homão que guarnecia, longe de imaginar que eram alvos da mira de uma caçada criminosa...

                   Passou rua, cruzou rua e o tempo corria rápido, beirando quase às nove horas. Os ponteiros do velho bitúnia preparavam-se para se cruzar quando o possante Toyota em que viajavam parou em frente duma movimentada agência bancária.

                   Do outro lado da rua um homem alto, pardo, desembarcara de um fusca. Francisco pressentiu o inevitável. Relembrou a família e pela primeira vez sentiu medo. Seria melhor fumar um cigarro. Talvez o último. O ódio e a capacidade destrutiva da maldade humana são incomparáveis.

                   Pensativo, olhou de soslaio para o valor do salário que estava no contracheque que puxara junto com a carteira de cigarros e viu o quanto os policiais estavam desvalorizados, nascendo talvez daí o desinteresse de alguns dos membros dessa profissão difícil e penosa, que muitos odeiam. Devolve o contracheque ao bolso do jaquetão, concluindo que policial é igualzinho a salário... Cada dia que passa fica mais desvalorizado!

                   Meu Deus! – Quanto tempo ficara absorto em seus pensamentos?... Estava sozinho no carro. De dentro do Banco vinham sons de uma discussão acalorada. Correu para a porta do estabelecimento e viu o homão que guarnecia sendo ameaçado. Deu voz de alto e o ambiente foi imediatamente revestido por um silêncio sepulcral. Era como se todos estivessem congelados, surdos, insensíveis ou completamente dominados pela visão do dinheiro farto. Sentindo-se respeitado o guarda-costas deu um passo à frente e foi como se tivesse impulsionado à complementação do verdadeiro inferno. Tocou diabólica a música fúnebre de Samuel Colt, enquanto um corpo cheio de saúde e dívidas tombou sem vida, crivado por balas sequiosas de vingança. Francisco sentiu um beliscão quente na nuca. Os revólveres agressores eram demoníacos e implacáveis. De repente tudo foi ficando nublado, como se o véu da noite estivesse baixando naquele recinto de dinheiro, pólvora e sangue, onde os tempos primórdios voltavam a predominar.

                   Não havia mais ninguém para guarnecer. Fracassara na missão, apesar de está com a consciência do dever cumprido. Sua única preocupação agora era com a família. Aquela bala na nuca decerto não o deixaria voltar... Receberia ao menos medicação gratuita e proteção do Estado ou morreria à míngua com os seus? A única lembrança que tinha de dinheiro era aquele contracheque velho e amassado que guardava no bolso da jaqueta...

                   Foi invadido pela inconsciência, balbuciando o último pensamento entrecortado:

                   Cada dia que passa, fica mais desvalorizado...

 

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Autor: Francisco Antônio Saraiva De Farias


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