Boa Fé Objetiva Sob A Luz Do Direito Do Consumidor



  1. BOA FÉ OBJETIVA

No direito contratual contemporâneo, o princípio da boa fé objetiva talvez seja o seu principal pilar. De acordo com este princípio, as partes que contratam entre si têm um dever recíproco de agir com lealdade e cooperação, abstendo-se da prática de qualquer ato que possa esgotar as expectativas contratuais da outra parte.

Para Sílvio de Salvo Venosa, "(...) a boa fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos". (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p.379).

O art. 4º, III, do CDC tem a seguinte redação:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

(...)

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Dessa forma, a boa fé é elevada ao patamar de norma estruturante (princípio) do sistema de proteção consumerista, sustentada veementemente pela jurisprudência dos Tribunais Superiores:

Direito do Consumidor. Contrato de seguro de vida inserido em contrato de plano de saúde. Falecimento da segurada. Recebimento da quantia acordada. Operadora do plano de saúde. Legitimidade passiva para a causa. Princípio da boa fé objetiva. Quebra de confiança. Os princípios da boa fé e da confiança protegem as expectativas do consumidor a respeito do contrato de consumo "(STJ, Resp. 590.336, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j.07/12/04, p. DJ 21/02/05).

"O simples atraso de uma das parcelas do prêmio não se equipara ao inadimplemento total da obrigação do segurado, e, assim, não confere à seguradora o direito de descumprir sua obrigação principal, que, no plano de saúde, é indenizar pelos gastos despendidos com tratamento de saúde" (STJ, Resp. 293.722, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 26/03/01, p. 28/05/01).

  1. "NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM"

Trata-se, aqui, apenas de um desdobramento do princípio da boa fé objetiva. "Nemo potest venire contra factum proprium" significa a "proibição de comportamento contraditório". Quer dizer, ofende o princípio da boa fé objetiva aquele que se beneficia de alguma irregularidade contratual, apenas alegando tal irregularidade quando esta for prejudicá-lo. É um corolário da justiça moderna: "ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza".

Esta proibição fica plenamente visível nas relações de consumo nos casos em que os planos de saúde aceitam receber as contribuições do segurado, e no momento em que estes necessitam da cobertura do plano a seguradora aduz que a doença preexiste ao contrato, motivo pelo qual não cobrirá as despesas médicas do segurado. O STJ tem refutado tal alegação das seguradoras, justamente com base no princípio do "nemo potestvenire contra factum proprium" :

"Seguro saúde. Cobertura. Cirrose provocada por vírus 'C'. Exclusão. Precedentes. Adquirida a doença muito após a assinatura do contrato, desconhecida do autor, que, em outras oportunidades, obteve tratamento com reembolso, diante de situação semelhante, não há fundamento para a recusa da cobertura, ainda mais sendo de possível contaminação em decorrência de tratamento hospitalar, ocorrendo a internação diante de manifestação aguda, inesperada" (STJ, Resp. 255.065, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 05/04/01, p. DJ 04/06/01).

"Acidente de trabalho. Seguro de vida em grupo. Tenossivite. Doença preexistente. A seguradora que aceita o contrato e recebe durante anos as contribuições da beneficiária do seguro em grupo não pode recusar o pagamento da indenização, quando comprovada a invalidez, sob a alegação de que a tenossivite já se manifestara anteriormente (STJ, Resp. 258.805, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguir, 4ª T., j. 21/09/00, p. 18/01/01).

  1. A RESPONSABILIDADE OBJETIVA(?) DO PROFISSIONAL LIBERAL

Reza o art. 14, §4º do CDC: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa". Significa que para os casos em que profissionais liberais integrem o pólo passivo da demanda relativa a um serviço, supostamente mal prestado, não haverá a inversão do ônus da prova para o profissional (responsabilidade subjetiva). Para obter a indenização que considera devida, o consumidor lesado por um médico, dentista ou advogado, por exemplo, deverá provar a culpa desses profissionais, sob uma das seguintes modalidades: negligência, imprudência ou imperícia. Assim, o CDC excetua duas regrais gerais da proteção consumerista, inclusive da responsabilidade objetiva, insculpidas em seu texto nos seguintes dispositivos:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Dessa maneira, o simples nexo de causalidade entre a conduta do profissional liberal e o acidente de consumo não é capaz de gerar, por si só, a sua responsabilização. O STJ é contundente nesse aspecto:

"ERRO MÉDICO. CIRURGIÃO PLÁSTICO. PROFISSIONAL LIBERAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES. PRESCRIÇÃO CONSUMERISTA. I - Conforme precedentes firmados pelas turmas que compõem a Segunda Sessão, é de se aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos serviços prestados pelos profissionais liberais, com as ressalvas do § 4º do artigo 14. II - O fato de se exigir comprovação da culpa para poder responsabilizar o profissional liberal pelos serviços prestados de forma inadequada, não é motivo suficiente para afastar a regra de prescrição estabelecida no artigo 27 da legislação consumerista, que é especial em relação às normas contidas no Código Civil. Recurso especial não conhecido" (STJ, REsp 731078 / SP, Rel. Min. CASTRO FILHO, 3ª T., j. 13/12/2005 , p. DJ 13.02.2006).

"CIVIL. INDENIZAÇÃO. MORTE. CULPA. MÉDICOS. AFASTAMENTO. CONDENAÇÃO. HOSPITAL. RESPONSABILIDADE. OBJETIVA. IMPOSSIBILIDADE. 1- A responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação técnico-profissional dos médicos que neles atuam ou a eles sejam ligados por convênio, é subjetiva, ou seja, dependente da comprovação de culpa dos prepostos, presumindo-se a dos preponentes. Nesse sentido são as normas dos arts. 159, 1521, III, e 1545 do Código Civil de 1916 e, atualmente, as dos arts. 186 e 951 do novo Código Civil, bem com a súmula 341 - STF (É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.). 2 -Em razão disso, não se pode dar guarida à tese do acórdão de, arrimado nas provas colhidas, excluir, de modo expresso, a culpa dos médicos e, ao mesmo tempo, admitir a responsabilidade objetiva do hospital, para condená-lo a pagar indenização por morte de paciente. 3 - O art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia), etc e não aos serviços técnicos-profissionais dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa). 4 - Recurso especial conhecido e provido para julgar improcedente o pedido" (STJ, Resp. 258389 / SP, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, 4ª T., j. 16/06/2005, p. DJ 22.08.2005).

Regra geral, a responsabilidade dos profissionais liberais é de meio e não de resultado. Não se pode, p.ex., responsabilizar um advogado que atuou verificando as normas processuais e segundo os padrões permitidos pelo Estatuto da Advocacia, pela perda de uma causa. Da mesma forma, um médico que fez o possível para salvar a vida de um paciente não pode ser responsabilizado caso este sucumba. Pensar o contrário seria inviabilizar o exercício das funções praticadas pelos profissionais liberais. O CDC, acertadamente, exige a culpa dos referidos profissionais para que seja possível a conseqüente responsabilização:

"CIVIL. CIRURGIA. SEQÜELAS. REPARAÇÃO DE DANOS. INDENIZAÇÃO. CULPA. PRESUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1 -Segundo doutrina dominante, a relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio e não de resultado. 2 - Em razão disso, no caso de danos e seqüelas porventura decorrentes da ação do médico, imprescindível se apresenta a demonstração de culpa do profissional, sendo descabida presumi-la à guisa de responsabilidade objetiva. 3 - Inteligência dos arts. 159 e 1545 do Código Civil de 1916 e do art. 14, § 4º do Código de Defesa do Consumidor. 4 - Recurso especial conhecido e provido para restabelecer a sentença" (STJ, REsp. REsp 196306 / SP, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, 4ª T., j. 03/08/2004, p. DJ 16.08.2004).

  1. APLICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL DO CC/2002 EM DETRIMENTO DO PRAZO PRESCRICIONAL DO CDC

O CDC é aLei nº 8.078, DE 11 de setembro de 1990.O novo Código Civil é a Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. O antigo Código de Civil entrou em vigor em 1916, somente sendo revogado em 2002. Daí, pergunta-se: qual dos diplomas utilizar em um conflito aparente de normas?

O STJ pacificou o seguinte entendimento: o prazo prescricional será o mais favorável ao consumidor1. O CC/1916, p. ex., em seu art. 177, dizia que "As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos, (...), contados da data em que poderiam ter sido propostas". O CDC, em seu art. 27, estabeleceu novo prazo prescricional para as relações de consumo:

Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria ".

Aplicou-se, assim, o prazo prescricional de 20 (vinte) anos ao invés do prazo de 5 (cinco) anos, definido pelo CDC, beneficiando o consumidor.

Com a edição do Novo Código Civil, fica visível que se tratando de acidente de consumo, deverá ser aplicada sempre o prazo previsto no art. 27 do CDC, em virtude do teor do art. 205 do CC/02 2. Esse é o entendimento de Felipe Peixoto Braga Netto:

"Porém, atualmente, essa posição deverá ser revista, para aplicar, em qualquer caso, o art. 27, que prevê a prescrição em cinco anos para os acidentes de consumo.(...) Isso porque o Código Civil de 2002, além de reduzir o prazo geral de prescrição de vinte para dez anos: (...), previu no art. 206, §3º, V, a prescrição da pretensão de reparação civil em três anos, não distinguindo o dano moral do dano material" (NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Podivm, 2007, p.112). Como o prazo do art. 27 do CDC beneficia o consumidor (cinco anos ao invés dos três anos do CC/02), o prazo da legislação consumerista deverá ser preferido.

1 Direito Civil – Ação de reparação de danos em virtude de acidente ocorrido com passageira de ônibus – Responsabilidade contratual – Prescrição – Aplicação do art. 177 do Código Civil e não do art. 27 do CDC. I – A hipótese retratada nos autos, acidente com passageira de transporte coletivo, não diz com vício ou defeito de segurança do serviço. Não há como se possa enquadrar a imperícia, imprudência ou negligência do preposto da recorrida, fundamento da ação reparatória, nesse contexto. II – A responsabilidade do transportador é contratual e o direito que se persegue é de natureza pessoal, regido, portanto, pela norma do art. 177 do Código Civil, não se aplicando o art. 27 do CDC"(STJ, Resp. 234.725, Rel. Min. Waldemar Zveiter, 3ª T., j. 19/02/01, p. DJ 20/08/01).

2 205. "A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor". (grifos nossos).


Autor: Silvana Leal


Artigos Relacionados


Responsabilidade Civil (direito)

A Inadimplência E A Suspensão Do Fornecimento De Energia Elétrica

Quase 20 Anos Em Defesa Do Consumidor

Acidente De Consumo Durante O Trabalho: E Agora José, De Quem é A Competência?

Direito De Troca De Mercadorias

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri