A Musa Do Amor



Ronyvaldo Barros dos Santos


Nunca se viu criatura mais perfeita. Uma bela figura de olhos coruscantes, de lábios adocicados e carnudos. Era assim que eu a imaginava. Era assim que todos os cavalheiros a idealizavam. Não sabíamos o seu verdadeiro nome, instigados à sua formosura. Reuníamos-nos todas as noites, o clube da boa-venturança, a que se fora dada a sentença, e ao qual que se outorgaram condescendentemente a legislação ao bom flerte. O assunto que sempre discorria era a visita da donzela magnífica, os seus olhos, os seus lábios, as suas curvas, e tudo o mais relacionado com esta primorosa donzela de hálito cálido.

A pequenina e pacata cidade estava pulsante e turbulenta. Não se deveria prognosticar que amores haviam de existir em tais circunstancias ameaçadoras e buliçosas. Até o comissário, conjugado ao amor platônico com a magnânima senhora Helena, vivia aos suspiros, cogitando talvez tal beleza sublime em demasia. Ainda mesmo o vigário, cuja maior castidade não há, acorria ao acesso da paróquia quando se anunciava a chegada da espetacular donzela que uma vez em cada semana vinha à cidade tratar de negócios com o banqueiro ao lado de um homem vigoroso e atlético cognominado Assizinho.

As damas da cidade abominavam tais curvas engenhosas e tão hábil formosura. Os cavalheiros idolatravam e festejavam cada passo e movimento da senhoritazinha. Nada passava aos olhos dos senhores, e os mais moços avançavam uma vez ou outra para junto da donzela, findando um combate oculto ao fim da tumultuada visita. Às vezes a aparição da estimada figura durava alguns poucos minutos; contudo, o vigário sempre recebia visita da senhorita que confessava os seus pecados uma vez ou outra.

Certa vez, entrementes, estando eu a procura de meu estimado colega, o senhor Hamílio de Souza, na confraria, dei de cara com a donzela de fisionomia tão requintada. Ela tropeçou sobre mim, deixando que seus braços tão delgados e belos enlaçassem o meu pescoço com veemência. Senti o seu bálsamo de ninfa, toquei sua pele tenra e delicada. E nisso ficamos por cerca de quarenta segundos. Ao findar este momento singular ela proferiu aos sussurros:

— Desculpe-me, senhor. Eu apenas me perdi em pensamentos. Isso não mais sucederá, tens minha palavra.

Eu diria algo, porém o tal acompanhante da donzela, um homem tão mais velho do que eu arquitetara, surgira de súbito. A mais bela dama tornou ao senhor e disse:

— Mil perdões, senhor...

Avistei abruptamente uma fração das suas pernas angelicais.

Tartamudeei:

— Senhor Lopes, Emilio Lopes — seguiu-se um breve intervalo. — Por obséquio, dir-me-ia a sua tão singela graça, senhorita?

— És muito gentil, senhor. Sou a senhora Dalila Campos e este à minha esquerda é o senhor Jorge Campos, meu agradabilíssimo marido.

Vi-me dando mais de dois passos ao recuo, tornando-me simultaneamente.

Ela se foi voejando à minha visão. Uma canção lenta e apaixonante tocava ao fundo, sendo talvez a sinfonia Elise. Minha mente estava transtornada e desfigurada. E eu a via desfilar em meio ao público que avançava além.

— Que corpo formoso, que doces palavras disseste... Olhos azuis e chamejantes, pele ebúrnea e macia — pensei com os meus botões.

A Afrodite se foi deixando saudades. A Musa do Amor, a Vênus ainda mais bela e sedutora. Ironicamente eu me vi aos beijos com tão formosa figura, senhora do amor. Eu sorri, buscando conciliar-me com a realidade.

Procurei conhecer cada detalhe da vida daquela formosura. Sonhava com o dia da nossa união; procurava abrigo em meio às estrelas; compunha versos de amor, osculando-nos ao sonho de um campo verdejante; e ela sorria para mim, sussurrava em meus ouvidos coisas de amor, e nisso ficávamos, selando a nossa sublime união.

Dalila Campos... Um nome nada comum. Não haviam registros acerca desta informação. Havia contratado o melhor detetive dos arrabaldes. Há pelo menos cem mil quilômetros não se encontraria profissional melhor. E, acredite, Jorge Campos era um velho falido, morador de Constantinopla do Oeste, há cinqüenta milhas da nossa cidade. Comecei então a conjeturar quem seria a pessoa da jovem e encantadora Afrodite.

A Musa do Amor ingressara na cidade há pouco. Todos começaram a correr à janela. Toda a balbúrdia me advertiu, ela havia reaparecido após oito dias de grandes especulações. Quando a avistei, fitei-a por longos minutos, observando cada passo impetuoso da donzela. Ela estava muito mais formosa, muito mais estonteante. Esta senhora fez o meu coração pulsar mais veemente. Eu estava espasmódico, lírico. Arquitetei um milhão de versos ao avistá-la intencionalmente.

Ao vê-la caminhar sozinha acerca das edificações, deixei-me levar pela curiosidade que me tomava. Novamente me esbarrei no seu diretório de cor tão singela e leve, um belo vestuário que se assentava encantadoramente em seu perfeito corpo. Fazendo-me de arrependido, disse:

— Perdoe-me senhora. Estava afinco quanto ao seu extraordinário regresso, consumido de uma impetuosa sensação de desprezo, porque outrora se fora sem qualquer preocupação com minha sutil figura. Perguntaria o porquê de tantas visitas. Porém somente se essa indagação não representasse uma descortesia, é claro.

— Que tal a vossa senhoria cessar de inconseqüentes modos descorteses? — retrucou a mulher com cólera.

— Mil perdões, vossa alteza. Diria talvez que mereces mais que um bom tratamento. Precisas de alguém tão mais cortês... — repliquei.

— Pois tenho algo mais que isso, possuo um senhor que além de cortês é um excelente homem, modesto, possante e tudo o mais — articulou a senhora.

Eu completaria dizendo: e senil. Todavia cessei de conversar em grau tão libertino com uma dama. Foi neste momento que o velho senhor se aproximou de mim e me fitou aborrecido. Depois ele agarrou os braços delicados da senhora e se foi munido de sumo rancor. Então eu disse aos meus botões: — Talvez tal senhora esteja alucinada com este homem decrépito e nada carismático. Mas ela é a mais bela donzela que existe, mesmo sendo uma senhora folgazona.

Percebi que aquela jovem senhora era o todo mistério, envolvida num enredo muito suspeito.

O senhor Hamílio de Souza, por conseguinte, estava envolvido, tal como toda a cidade, num exorbitante romance. Ele morria de amores pela senhora Dalila, ou quem fosse esta farsante. Ninguém sabia como esta história iria findar. A estimada esposa do comissário soube dos seus suspiros à senhora e advertia separação. O vigário havia ganhado muitos abraços e honras. O prefeito e o banqueiro haviam travado um combate graças às graças desta Afrodite. Todas as mulheres da cidade, por exceção da viúva Mascarenhas, moribunda senhora, se reuniam todas as noites numa sociedade cognominada Convenção das Senhoras de Direito contra a sedutora Vênus.

Em meio a tantos alarmas, eu me via como o único homem fiel aos ideais conformistas. Porém, o desejo a Dalila crescia intrínseco, e também toda esta demasiada curiosidade. Todas as noites passei a sonhar com a querida Musa, oniricamente eu a tinha em meus braços tal como uma rosa suave e tenra. Então eu imaginava os seus cabelos negros e macios, o seu bálsamo encantado, os seus olhos brilhantes, o seu corpo formoso e esbelto... Eram breves utopias, modelos cruéis de um mundo atroz. Aquela Afrodite me causava frenesi. E todas as noites eu lamuriava a falta do seu sabor, do seu cheiro e da sua venturosa audacidade.

Uma semana se passou, o período mais rumoroso de nossas vidas se foi junto a uma tempestade que arrasara os nossos corações. A Musa do Amor, a doce Afrodite, com o seu amistoso poder, não reapareceu e a cidade dormia insone. Ninguém poderia confiar que triste fim poderia abalar toda a estrutura desta urbe importuna. O primeiro a agir em meio à tristeza que abalava os nossos corações foi o vigário, que celebrou uma vigília em prol às almas empobrecidas. Entretanto, quem apostara no fim melancólico deste enredo fora toda a Convenção das Senhoras de Direito, que solenizaram uma festa em prol às almas purificadas do pecado da carne.

Um mês se passou, a mais tenebrosa temporada de nossas vidas. Rimos nosso infortúnio e choramos o nosso riso. Todos os meus sonhos se tornaram pesadelo, e a minha Afrodite havia se tornado ainda mais delicada e cobiçada. Almejava, tal como todos os cavalheiros da cidade, uma estadia no céu da Musa do Amor.

Repentinamente, após o alvorecer, uma saraivada de risos seguido de brados me fez despertar de um pesadelo. À janela da mansarda pude desvendar que raro festejo seria merecido em nossos tempos. Era ela! Tão mais apreciável, uma deusa com fragrância encantada. Acorri em sua direção, tal como todos os outros o fizeram. Circundamo-la, deixando-a ao centro. Percebi neste ato uma lágrima provinda de seus delicados olhos que não mais flamejavam à nossa visão. Esta deusa nos observou intensa e impetuosamente. Logo se fez de duas adagas e fincou-as junto ao peito sem mais remorsos. Ela desmoronou aos meus braços ao socorrê-la e eu chorei as mais sombrias lágrimas. Senti o seu bálsamo misterioso, o seu ar cálido e vislumbrante. Ela então sussurrou uma canção, a mais melancólica, a mais sombria de todas:

— Palavra tão incompreendida/ palavra de dois gumes/ palavra, nem só palavra...

Meu coração pulsou ainda mais impetuoso. Todos os cavalheiros choraram o seu fim, até mesmo o vigário se entregou à emoção. A cidade dormiu ainda mais melancólica. Cogitava o que poderia ter ocasionado este suicídio, não chegando a nenhuma conclusão crível.

Muitos odiavam esta meiga donzela, nem todos a amavam. Todo o mundo a contemplava e a invejava. E por fim, todos choraram a sua morte, a morte da Musa do Amor, a morte que por si só conduz toda a paz do mundo, a morte do amor, do tão desejável amor...




Autor: Ronyvaldo Barros dos Santos


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