Direito e Literatura: falibilidade em investigação criminal, em conto de Monteiro Lobato



Direito e Literatura: falibilidade da investigação criminal, em  conto de Monteiro Lobato

Márcia Belzareno dos Santos                                                                                         [email protected]                                                        

             
               Durante 32 anos de minha vida, dos 21  ao 53 anos de idade, trabalhei nas penitenciárias do Complexo prisional de Charqueadas/RS, a maior parte do tempo no Setor Jurídico. Na PASC – Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas – fui eu, inclusive, que organizei o  setor. Quando lá fui lotada, em 1992, transferida da PEJ – Penitenciária Estadual do Jacuí – , a PASC recém estava sendo ocupada, ainda extraoficialmente e em condições administrativas precárias, pois nem mesmo móveis existiam em algumas das salas do Pavilhão administrativo; o setor jurídico era um deles, sem um único móvel.

               Meu pai também dedicou boa parte de sua vida profissional ao sistema penitenciário gaúcho, tendo estado à frente da Direção em todas as casas prisionais de grande porte existentes no RS entre o início da década de 1960 e o final da década de 1980, tendo sido Diretor, inclusive, da emblemática Ilha-Presídio, em Porto Alegre.

               Assim, com a experiência profissional que me foi conferida, nas penitenciárias em que trabalhei,  pela leitura de milhares de processos e pelo atendimento a milhares de apenados e seus familiares, que  ansiavam por notícias de suas respectivas situações jurídicas; e, com o mesmo interesse, analisando as histórias que meu pai nos contava a respeito do universo prisional que ele dirigiu por várias décadas, aprendi que, para o exame da culpabilidade de alguém não bastam fortes indícios, provas robustas, antecedentes, agravantes, etc. Existe, sim, o imponderável, que é componente de qualquer empreendimento ou situação humana, inclusive da análise da culpabilidade, em uma investigação criminal e consequente processo judicial.

              Aliado a todos esses dados e, na condição de professora e estudiosa de literatura, tive a oportunidade de buscar exemplos jurídicos consistentes na ficção literária, que passou a me interessar ainda mais, após o advento dessa nova área específica da ciência jurídica, que é a do Direito e Literatura.

              Por óbvio, que a maioria dos apenados que dávamos atendimento jurídico em nosso setor, estava já em fase de execução de sentença e, por esse motivo, não era mais o caso de se provar culpa ou inocência. E, sim, aguardar os prazos de benefícios da execução da pena, como progressão de regime, remição de pena e livramento condicional. Destarte, sempre tínhamos a possibilidade de lermos os processos, de ouvir suas histórias,etc. E, assim, aos poucos, fui entendendo que, à semelhança da literatura-arte, na vida real um fato pode ter muitas verdades, e uma fisionomia confiável pode esconder uma personalidade monstruosa, assim como um rosto rude e agressivo, pode ocultar uma alma frágil e inofensiva. Enfim, nas relações humanas nada é absolutamente lógico e incontestável.

             E é com esta afirmação, de que nada é lógico e incontestável, que começo o meu comentário sobre um conto de Monteiro Lobato, a respeito de um suposto assassino cruel.

             O conto, intitulado “Meu conto de Maupassant”, escrito por Monteiro Lobato em 1915, conta a história de um condenado pela justiça, em virtude do cometimento de um assassinato hediondo. O suposto assassino, tempos depois,  acaba se suicidando próximo a mesma árvore que, antanho, teria sido o cenário do crime execrável por ele cometido.

             A narrativa se passa com o narrador relatando uma conversa ouvida por ele, durante uma  viagem de trem, entre dois passageiros. Um deles, comparando a vida com os contos de Maupassant, dá introito para a história que está ansioso para contar:

 

             “ - Anda a vida cheia de contos de Maupassant...

                - Por que Maupassant …?

                - Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é nove em dez um enquandramento engenhoso do amor e da morte.[...] A morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da vida  arranca a máscara e freme num delírio trágico.”

 

              O interlocutor, entendendo que o outro só precisa de um pretexto para desabafar alguma coisa, contar alguma história, resolve servir de ouvinte e indaga o motivo de tanta filosofia naquele momento:

 

               - A propósito de que tanta filosofia, com este  calor de janeiro?

               […]

               - Já te digo a propósito de quê vem tanta filosofia.”

 

              E é a partir desse início de diálogo que o narrador passa a contar a história de um bábaro crime:

             

             […] E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito, apontando um velho saguaraji avultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:

              - A propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no 'meu conto de Maupassant'.

              - Conta lá, se é curto.

              O primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição foi logo narrando.

             - havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo mal encarado e ruim. Bebia, jogava, e por várias vezes  andou às voltas com as autoridades. Certo dia – eu era delegado de polícia – uns piraquaras vieram dizer-me que em tal parte jazia o 'corpo morto' de uma velha, picado à foice.

                

              Nessa parte do conto, a observação que faço é a de que não devemos nos esquecer de que o Delegado de Polícia deve ser o primeiro garantidor da legalidade do procedimento de investigação preliminar, para não ser o coator da liberdade alheia. E, assim, ele fez:

                 “Organizei a diligência e acompanhei-os.”

 

                Ainda em relação à atuação do Delegado de Polícia, podemos afirmar que caso deixe de de atuar, por sentimento pessoal, o delegado pode incorrer em prevaricação (art. 319 do CP). Atuando em excesso, com manifesta má-fé, em busca de proveito pessoal, pode haver a figura do abuso de poder da Lei nº. 4.898/65.

                 Sendo assim,  nessa parte do conto, cabe uma pausa para algumas questões de ordem prática e jurídica.

                 Ficou visto que o crime cometido foi bárbaro, eis que o assassino, fosse quem fosse, havia picado  à foice uma senhora idosa. Também ficou claro que um dos viajantes, dos quais o narrador escutava clandestinamente a conversa, havia sido  delegado de polícia naquela época e naquele local, portanto, possuía seus deveres e prerrogativas na investigação do crime, como veremos a seguir.

                  Vamos recordar, então, ainda que suscitamente, o instituto jurídico do inquérito policial, que, na verdade, é a peça que dá início à qualquer investigação criminal.

                 A propósito, cabe salientar, antes de dar prosseguimento aos comentários sobre o conto e sobre a investigação desencadeada, que o resumido tratamento doutrinário dado ao inquérito policial deixa nítida a impressão de que  os profissionais de Direito saem da faculdade com vagos conhecimentos sobre o trâmite desse instituto e que muitos deles têm a falsa impressão de que o inquérito é uma mera peça informativa. Muitos, inclusive, desconhecem o fato de, conforme dados  encontrados em artigo de Rodrigo Carneiro Gomes, cerca de 90% das ações penais em curso foram precedidas de inquérito policial e que na ação penal são repetidas, praticamente, todas as provas do inquérito policial, à exceção daquelas tidas como irrepetíveis, a exemplo de exames periciais.

                 Enfim,  o inquérito policial é a gênese de qualquer procedimento de investigação e destina-se à apuração de infrações penais e sua autoria, sendo de responsabilidade  da polícia judiciária, que  só é exercida por autoridades policiais, conforme encontramos no art. 4º,  do CPP:

               Art. 4º- A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

 

                É desta forma que o primeiro instituto de processo penal, referido no Código de Processo Penal , a partir do art. 4º, é o inquérito policial.

               O direito, todavia, não exclui da investigação criminal,  a participação de outras autoridades administrativas, se for o caso, como, por exemplo, o INSS quando instrui processos administrativos para apuração de irregularidades internas relacionadas às suas atribuições, tais como fraudes previdenciárias em agências e postos, etc. É o que temos no parágrafo único do art. 4º do CPP:

 

                Parágrafo único -A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.

 

                  Enfim, a autoridade policial para fins de exercício da polícia judiciária é o delegado de polícia de carreira, conforme preceitua  o art. 144, § 4º da Constituição Federal/1988.

 

         Art. 144- A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

           [...]

    § 4º-Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

 

             Por esse motivo, o viajante (ex-delegado) passou a contar, com toda a propriedade e conhecimento da história do crime, adquiridos em virtude da titularidade da investigação em decorrência do cargo que exercia na época, a triste história do assassinato e do suposto assassino. O viajante aponta, então, para a árvore que foi, segundo ele, comparsa no crime, como  que querendo dizer ao seu interlocutor que tudo havia acontecido com a saguajari de testemunha.

            

              “[...] É lá naquele saguajari, disseram ao aproximarem-se da árvore que passou.”

             

               E passa a descrever o horrendo local encontrado como cena do crime:

 

               “Espetáculo repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que me correu pelo corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da velha semi-oculta sob folhas secas. Porque o malvado a decepara no tronco, lançando-a a alguns metros de distância.”

              

              Em seguida, o viajante relata para seu ouvinte as providências que tomou na condição de delegado e as razões que lhe convenceram a decisão, além dos desdobramentos jurídicos em relação à prisão do suspeito:

 

                Como por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o. Havia contra ele indícios fortes. Viram-no sair com a foice, a lenhar, na tarde do crime.

                 Entretanto, por falta de provas foi restituído à liberdade, mau grado meu, pois cada vez mais me capacitava  da sua culpabilidade. Eu pressentia  naquele sórdido tipo – e negue-se valor ao pressentimento! - o miserável matador da pobre velha.”                

              Como se vê, o suposto assassino, contrariamente à vontade do delegado, saiu livre para ir viver a vida como bem lhe aprouvesse. Nesse sentido, sabe-se que, desde o nascedouro da investigação policial, com a necessária instauração de um inquérito policial , abrem-se várias oportunidades para o advogado do suspeito impetrar "habeas corpus".

            A propósito, no que se refere aos remédios constitucionais relativos a esses casos, cabe lembrar que  a doutrina brasileira do habeas corpus , cujo principal expoente foi Rui Barbosa, conferiu grande amplitude a esse writ, que podia ser utilizado, inclusive, para situações em que não houvesse risco à liberdade de locomoção.

           Além disso, é interessante observar que o ex-delegado faz questão de frisar ao seu interlocutor que se deve negar valor ao pressentimento, evidenciando que, provavelmente segundo ele,  a investigação deveria ser pautada em fatos e provas concretas, o que, via de regra, acontece e deve acontecer. Entretanto:

 

      “-Que interesse tinha no crime?

      - Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda gente. Não obstante, eu o trazia de olho; certo de que era o homicida.

       O patife, não demorou muito, traspassou o negócio e sumiu-se. Eu do meu lado deixei a polícia e do crime só me ficou, nítida, a sensação da topada mole na cabeça da velha.

       Anos depois o caso reviveu. A polícia obeteve indícios veementes contra o italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá, onde o júri iria decidir sua sorte.”

 

      Parece-nos, nessa parte do conto, que o ex-delegado tinha razão em suas certezas a respeito da autoria do crime, que ele conferia ao tal italiano mal encarado. Entretanto, é o próprio ex-delegado quem conta ao seu ouvinte:

 

     “- Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem do Brás e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra, até São José[...]”

 

     Do ponto de vista jurídico, a atitude é absolutamente aceitável, pois o suspeito pode invocar seu direito constitucional ao silêncio e de não produzir prova contra si mesmo.

     Ocorre, contudo, que o silêncio em tantas vezes é muito mais eloquente e significativo que a produção oral; e tanto pode ser indicativo de culpabilidade quanto indício de resignação alienada, face a eventual dificuldade de provar  inocência, eis que a narrativa assim continua:

 

     […] daí por diante metia amiúde os olhos pela janela, como preocupado em ver qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaraji. Nesse ponto armou um pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crânio rachado, a escorrer a couve-flor dos miolos perto da árvore fatal.”

 

     E, em seguida, o imponderável na investigação:

 

     “- O curioso é que mais tarde um dos piraquaras denunciadores do crime, e filho da velha, preso por picar um companheiro a foiçadas, confessou-se também o assassino da velhinha, sua mãe...”

 

           Vimos, no início do conto, que tão logo o delegado recebeu a denúncia do crime, ordenou diligências de investigação. Ocorre que, nessa qualidade de garantidor, o Delegado de Polícia, ao receber uma denúncia, deve envidar diligências preliminares de verificação sobre o crime anunciado, eis que em algumas vezes essa denúncia pode ter a finalidade de  prejudicar terceiros ou encobrir o próprio assassino, como foi o caso no conto de Monteiro Lobato. É por tal razão que o art. 5º, § 3º, última parte do CPP, condiciona a instauração de inquérito policial à verificação da procedência da informação trazida por alguém do povo:

 

Art. 5º- Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:

            § 3º- Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurarinquérito.

 

           Como já foi dito exaustivamente,  a instauração de inquérito policial é a regra para a apuração da autoria e a materialidade de um delito e o delegado assim o fez. Contudo, para a verificação de uma informação com um suporte fático dessa natureza, ou seja, um crime hediondo com requintes de apurada crueldade, seria natural e juridicamente esperado que o Delegado de Polícia expedisse ordens de missão policial escrita, dirigida a agentes  de polícia com o objetivo de levantar endereços, propriedades em cartório, dados com vizinhos, rotina da senhora idosa que foi morta, parentes da vítima, que auxiliassem, com mais eficácia,  a identificar a autoria do fato e a localização do possível criminoso. No conto, fica essa lacuna para o leitor. O Delegado, ao mesmo tempo que diz que não se deve confiar em pressentimentos,  aposta em  sua intuição, ao credenciar ao italiano a autoria de um crime, apenas por seus antecedentes de ser beberrão e andar às voltas com as autoridades. O fato de ser o italiano um sujeito mal encarado não vem a provar nada. Até mesmo ter sido visto com uma foice, ensejaria investigações mais profundas a respeito dos motivos do suspeito estar portando uma foice na ocasião em questão, caso  o lugar do crime fosse de comum derrubada de árvores, por exemplo.

          Por derradeiro, o próprio tema do conto, vincado ao assunto “amor e morte”, tão explorado pelo escritor Maupassant e desdobrado por Monteiro Lobato, já levaria o leitor, e quem sabe o delegado, a outras suspeitas, já que, aparentemente, o suspeito, como foi relatado no conto pelo próprio delegado, não tinha motivo algum para matar a idosa. Em geral, crimes hediondos dessa natureza vêm associados à insanidade ou a relações de amor mal resolvidas, como acontecem algumas vezes entre amantes ou entre parentes de afinidades muito estreitas, como foi o caso do conto, em que a mãe havia sido morta pelo próprio filho.

            Enfim, a investigação criminal, tratando-se de crimes contra a pessoa, traz em seu bojo o imponderável, o imensurável, que, de qualquer forma, deve sempre ser avaliado juntamente com as provas concretas. E, por certo, nenhuma prova ou indício, seja de ordem concreta ou de mera intuição,  deve ser descartada preliminarmente, em hipótese alguma.

            Da mesma forma que com os contos de Monteiro Lobato, aprendi com meu trabalho jurídico dentro das penitenciárias, que investigar ou explicar um crime é, em suma, explicar a própria existência  do amor e da morte sobre a Terra, como dizia Maupassant.

            Talvez o delegado do conto de Monteiro Lobato negasse valor ao pressentimento, porque, intuitivamente, soubesse que  o seu pressentimento, naquele caso, estava absolutamente equivocado. É complicado de entender ? Sim, é complicado; é o imponderável na investigação de alguns crimes!

Bibliografia:

GOMES, Rogério Carneiro. O inquérito policial. www.forumseguranca.com.br

LOBATO, Monteiro. Meu conto de Maupassant. In: Urupês. São Paulo: Editora Globo, 2008

UnB/CESPE-OAB. Exame de Ordem 2099.1 www.oabrs.com.br

Constituição Federal e Código de Processo Penal www.dji.com.br

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Autor: Márcia Belzareno Dos Santos


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