Autobiografia x Ficção: a vida de Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha



Autobiografia x Ficção: a vida de Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha

A Lima Barreto pode-se dar muitos predicados. Sofrido, inteligente, bêbado, sonhador, controverso. Com os mesmos adjetivos utilizados para falar desse tão grandioso autor, pode-se tratar de seus personagens, pois, ao longo de sua obra, podem ser encontradas figuras que carregam em si as agruras e os percalços que povoam o cotidiano de muitos brasileiros. Cotidiano esse não apenas retratado, mas vivido por Lima Barreto.

Vindo de família pobre e sendo ele mulato, desde criança Lima Barreto aprendeu a driblar o destino que lhe era imposto e, com a ajuda do Padrinho, o Visconde de Ouro Preto, pôde estudar em boas escolas, freqüentadas pela elite carioca. Durante o período colegial, teve a oportunidade de aprender coisas que o transformariam no grande escritor e ferrenho crítico da sociedade, que lhe mostrara desde cedo a diferença entre ele e os demais. Lima Barreto não só saiu da escola letrado, mas calejado contra o preconceito que o acompanharia por toda a sua vida.

Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881. A Lei Áurea, que abolia a escravatura no Brasil, só viria a ser assinada pela princesa Isabel sete anos depois. Sua juventude foi, portanto, permeada por maus tratos decorrentes do preconceito, como não podia ser diferente para um mulato em um país que mal acabara oficialmente com a escravidão. Seu elevado grau de instrução e convivência com a elite não foram suficientes para adquirir o respeito merecido por qualquer cidadão e a igualdade de tratamento entre ele ou qualquer escritor de seu tempo. Contribuíam para a dificuldade com que levava a vida uma série de infortúnios familiares. Seu pai, um tipógrafo, e sua mãe, uma professora primária, trabalhavam muito para garantir o sustento dos quatro filhos. A mãe morrera quando ele era ainda uma criança. Seu pai enlouquecera, obrigando-o a abandonar o curso da Escola Politécnica, no qual acabara de ser admitido, para cuidar dos três irmãos. Lima Barreto tornou-se jornalista e contribuía com vários jornais e revistas da época. Conviveu também com o alcoolismo e com crises severas de depressão, tendo sido, por esse motivo, internado várias vezes e diagnosticado como um neurastênico.

Conhecendo, então, a biografia do autor, é fácil identificar em sua obra traços de sua própria personalidade. Em 1909 Lima Barreto publica o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. O texto acompanha a trajetória de um jovem mulato, que vindo do interior sofre sérios preconceitos raciais. Em 1915 escreve Triste fim de Policarpo Quaresma, e em 1919 escreve Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá. Esses três romances apresentam nítidos traços autobiográficos. Porém, em toda a sua obra, é visível a revolta, ironia e a sátira a partir da visão de Lima sobre a real sociedade da época, que o tratava como um intruso em sua própria pátria.

No romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, narrado em primeira pessoa, logo nos primeiros capítulos, vê-se no personagem principal a figura de Lima Barreto, que concentra em Isaías Caminha as frustrações do próprio autor, tornando especialmente doídos os seus encontros com os preconceitos de cor e de classe (BOSI, 1994 p. 341). O personagem atribui aos estudos a possibilidade de ser respeitado.

Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um titulo para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente. (BARRETO, 1995)

No trecho acima, Isaías revela a vontade de seguir os passos do pai, de quem se orgulhava por ser, apesar de pobre, dotado de sabedoria. Para ele essa seria a única forma de ser respeitado numa sociedade cruel e preconceituosa que não tolerava pretos nem pobres. Porém, ao longo de sua jornada, Isaías percebe que não basta ser letrado para ser respeitado e, por onde passa, é destratado simplesmente pela cor de sua pele. Lima Barreto retrata a triste constatação do personagem no trecho que segue:

O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: "Oh! fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!" Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. Curti, durante segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa. Os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas mãos fidalgas, com dedos afilados e esguios, eram herança de minha mãe, que as tinha tão valentemente bonitas que se mantiveram assim, apesar do trabalho manual a que a sua condição, a obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada. Além de tudo, eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traço de sagacidade que herdei de meu pai. Demais, a emanação da minha pessoa. os desprendimentos da minha alma, deviam ser de mansuetude, de timidez e bondade... Por que seria então, meu Deus? (BARRETO, 1995).

Trata-se da história de um menino pobre, mulato, que, com a ajuda de um tio e influenciado pelo pai, pôde terminar os seus estudos. A partir da morte do pai, a situação familiar se torna ainda mais precária e cada vez mais cresce no menino a vontade de ir para o Rio de Janeiro, onde acredita que, com os estudos adquiridos, garantirá um bom emprego, será respeitado e feliz. É possível reconhecer nesse livro o caráter de esperança e, em seguida, decepção, que acompanharam o jovem Lima Barreto.

 

Ao reconhecer na história de vida do protagonista da narrativa dados diversos da biografia do autor, o leitor vê-se diante de um romance de conteúdo autobiográfico que se mescla à mais livre invenção romanesca. No entanto, o caráter memorialístico que impera na obra fica por conta da narrativa de Isaías, o personagem criado pelo autor Lima Barreto para dar voz a sua história pessoal. (FLORÊNCIO, 2010).

 

É notório o caráter pessoal no livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Apesar disso, a semelhança entre o a história retratada e a vida do autor não tornam o livro personalista e efêmero, pois ultrapassa os interesses de seus contemporâneos. Todo o conjunto de sua produção revela intensas experiências pessoais e sociais que foram transformadas em romances, contos, crônicas, ensaios e memórias, textos marcados por extrema lucidez e profunda mordacidade (FLORÊNCIO, 2010 ).

 

Lima Barreto sofreu humilhações durante toda a sua vida, tornando-se impossível tirar o esse sofrimento de seus escritos. Foi criticado por fazer muitas referências a si próprio, o que o teria impedido de crescer como ficcionista. Porém, é inegável a força que têm os seus romances, permanecendo até os dias de hoje não apenas pelo seu caráter literário, mas como documento histórico e cultural dos primeiros anos do século XX.

 
 Referências

 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo:

Editora Ática, 1995. Disponível em: Acessado em: 11 de junho de 2012.

 

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

 FLORÊNCIO, Renilda Maria. Recordações do Escrivão Isaías Caminha: Entrelaçamento de Autobiografia e Memória na Obra Ficcional de Lima Barreto. Revista Kurityba, 2010 v. 1, n. 1. Disponível em:

 _______________ Literathurando. Disponível em: Acessado em 11 de junho de 2012

 ______________Biografias. Disponível em: Acessado em 11 de junho de 2012


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