Da Ética Cristã E Os Tempos Modernos



Aqui estão algumas linhas de reflexão sobre ética e seu desenvolvimento histórico. Não se deve buscar aqui, entretanto, uma reflexão conclusiva. O que apresentamos são apenas algumas observações que podem e devem ser levadas em conta ao se discutir a evolução das diferentes concepções da ética e dos comportamentos morais, ao longo dos séculos.

Alertamos, também, que estas reflexões nasceram como subsídio para aulas de ética profissional, ministradas na Faculdade de Pimenta Bueno – FAP, par os cursos de Administração de Empresas, Sistema de Informação, Letras e Pedagogia, a partir de 2005. Portanto não são textos conclusivos, mas material de apoio que ora colocamos à disposição para ser apreciado por colegas professores e estudantes das varias áreas.

1- O Cristianismo

O que chamamos de ética cristã, não se refere ao que Jesus de Nazaré teria vivido e ensinado, mas àquilo que seus discípulos organizaram ao longo da Idade Média.

A prática de Jesus de Nazaré foi muito mais radical do que seus discípulos conseguiram manter, de seus ensinamentos. Vimos que os discípulos, ao longo da história, precisaram criar e organizar instituições. Aquilo que chamamos de estrutura eclesial, com suas doutrinas e normas, em muitos casos se distanciou da postura hedônica e cínica do Mestre para aproximar-se de uma postura estóica.

O fato é que a Igreja, também para se firmar e sobreviver, precisou adaptar-se. Nos primeiros anos produzindo uma literatura de autodefesa o que foi chamado de Apologia. Nessa fase a defesa dos valores cristãos (ética cristã) se baseava em afirmar esses valores. Mostrá-los como um caminho (o próprio cristianismo era chamado de "o caminho!") para a paz social e bom relacionamento entre as pessoas.

A partir do século IV, ocasião em que Constantino universaliza o cristianismo como religião oficial do império romano os valores passam a ser de respeito mútuo. Nasce aquilo que se popularizou, principalmente durante a Idade Média, como sendo um casamento entre a Igreja e o Estado. Principalmente nesse período medieval é que ocorre o maior distanciamento entre aqueles que são as "cabeças" da Igreja e as pessoas do povo. Podemos dizer que por mais de mil anos, o centro da ética cristã foi aquilo que se chamou de práticas de caridade. Essa prática se origina das Escrituras, e da Tradição Apostólica. Não esquecendo que foi na Tradição que se fundamentaram os dogmas que norteiam as posturas cristãs.

A finalidade disso é convencer o ser humano a comporte-se de acordo com valores específicos, que se universalizam. É o que se pode depreender da leitura da página da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde afirma que a ética cristã,

"é o conjunto de valores morais baseados nas Escrituras Sagradas, pelo qual o homem deve regular sua conduta nesse mundo, diante de Deus, do próximo e de si mesmo", (http://www.mackenzie.com.br/chancelaria/valoretica.htm).

Da idéia de Deus a ética cristã deriva seus predicados: Bondade, Eternidade, Onisciência e Perfeição. Dos predicados divinos nasce a moralidade ou as normas cristãs para vida. Da bondade divina advém a necessidade das atitudes bondosas. Disso nasce a idéia da caridade que muitas vezes se perverte na idéia da esmola. A Eternidade divina contrasta com as limitações humanas. E, por ser limitado, o ser humano necessita do apoio de um ser superior e eterno: Deus. O mesmo pode-se dizer da Onisciência divina contrastando com a ignorância humana. A busca do saber humano faz parte da tentativa de aproximação com Deus; mas essa busca precisa pautar-se pela tentativa de se aproximar, cada vez mais, de Deus. Por saber tudo Deus é Perfeito, sendo, portanto, pura virtude. Mas, por seu lado, o ser humano é contingente, limitado e imperfeito. Daí a necessidade das normas a fim de buscar a aproximação com o absoluto de Deus.

2- Na Atualidade

Na atualidade, ou nos tempos modernos, a ética cristã, além de preservar esses e outros elementos, incorpora a afirmação de que o ponto de partida para a postura cristã não repousa nos dogmas nem somente nas escrituras, mas na tentativa de construir uma sociedade em que haja equidade social, econômico e política.

O problema, atual, da ética cristã, não está na sua formulação e nos seus valores, mas na postura das pessoas que se chamam de cristãos, pois estes agem e falam como se Deus estivesse morto. Mostram ares de penitencia e corpos compungidos, nos templos e nos momentos de evidência, mas na solidão de seus instintos e diante das reais necessidades humanas, comportam-se como se Deus não existisse.

O questionável na ética cristã, não é a sua essência, mas na sua prática, no dia-a-dia daqueles que se dizem cristãos. E como a moralidade de qualquer ética se mede pela prática a moralidade da ética ou dos comportamentos dos cristãos os levam a anunciar a morte de Deus ou pelo menos o assassinato daquilo que ele tria ensinado.

É emblemática para esta conclusão o diálogo criado por Nietsche, entre Zaratustra e o santo ancião que se retirava para a meditação, a caminho da montanha. No transcurso da conversa entre ambos o ancião fala sobre as mudanças que percebia em Zaratustra e este responde que ama os homens. Eis parte do diálogo:

Zaratustra respondeu: "Amo os homens".

"Por que então - disse o santo - me retirei para a solidão e para o deserto? Não foi também por sentir demasiado amor pelos homens? Agora, amo a Deus. Não amo os homens. O homem é, para mim, coisa por demais imperfeita. O amor pelos homens haveria de me matar".

Zaratustra respondeu: "Porventura falei de amor? Levo um presente para os homens".

"Não lhes dês nada", disse o santo. "Pelo contrário, tira-lhes qualquer coisa e carrega-a para eles. Vantajoso será certamente para eles, desde que o seja também para ti! E se quiseres dar-lhes um presente, que não seja mais que uma esmola. Ainda assim, espera que eles a peçam".

"Não", respondeu Zaratustra. "Eu não dou esmolas. Não sou pobre bastante para isso".

O santo se pôs a rir de Zaratustra e falou assim: "Nesse caso, toma cuidado para que eles aceitem teus tesouros! Eles desconfiam dos solitários e custam a acreditar que nos acheguemos como doadores de alguma coisa. Para eles, nossos passos, pelas ruas andam ecoando por demais solitários. Por isso é que, à noite em suas camas, ao ouvirem passar um homem, bem antes do nascer do sol, perguntam: "Para onde irá este ladrão?"

Não vás para junto dos homens! Fica na floresta! Melhor ainda, fica na companhia dos animais! Por que não tens vontade de ser como eu, urso entre os ursos, ave entre as aves?"

"E que faz o santo na floresta?" - perguntou Zaratustra.

O santo respondeu: "Componho canções e para cantá-las. Enquanto faço canções rio, choro e murmuro. Essa é minha maneira de louvar a Deus. Cantando, chorando, rindo e murmurando louvo ao Deus que é meu Deus. Mas, como presente, o que é que nos trazes?"

Ao ouvir estas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e disse: "Que teria eu para vos dar? Mas deixa-me partir depressa, por receio que não venha a vos tirar alguma coisa!"

E assim se separaram um do outro, o velho e o homem, rindo como riem dois garotos.

Mas quando Zaratustra ficou só, falou assim ao seu coração: "Será possível! Este santo ancião, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?" (Nietsche, 1986, p. 28)

3- Os Tempos Modernos

Quando chegamos à ética Nietzscheana já estamos naquilo que podemos chamar de tempos modernos (aqui entendido como sendo todo o período posterior ao movimento renascentista). Nos tempos modernos outros pensadores refletem sobre a ética ou sobre os comportamentos humanos que fundamentam as reflexões éticas. Dessa forma, usando as palavras de Nascimento (1984) podemos dizer que:

"Na ética cristã, a verdadeira virtude consistirá no desprezo de si mesmo e no amor a Deus, que deverá se manifestar nas diversas formas de amor ao próximo. E em Pascal nós veremos uma das formas mais elaboradas da moral cristã.

No século XVIII, em meio a vários sistemas morais, principalmente a moral materialista de um Holbach, de um lado, segundo a qual a virtude consiste em agir segundo o que ordena a natureza e, de outro, a moral rigorosa dos jesuítas, a reflexão de Voltaire aponta para a relatividade dos sistemas morais, para a impossibilidade de uma moral universal. No entanto, para este defensor implacável dos direitos do homem, não se pode fazer o que se bem entende. Todo homem deve respeitar as leis da sociedade e o homem honesto deve ser o modelo do bom cidadão.

Segundo Kant, a moral "não é propriamente dito a doutrina que nos ensina como devemos nos tornar felizes, mas como devemos nos tornar dignos da felicidade" (Crítica da Razão Prática). Por isso, a moral kantiana será a moral do dever e da imposição de normas a si mesmo. Mas, ao impor a si mesmo certas obrigações, certas normas, o homem que obedece a tais leis encontra também as condições de sua liberdade. E é ao obedecer às leis que a si mesmo propôs que o homem encontra a possibilidade de sua autonomia, de sua liberdade. Nesse contexto, a virtude será definida como "a força moral da vontade de um homem no cumprimento de seu dever".

Na era contemporânea, caberá a Nietzsche questionar os fundamentos da moral e transformá-la num problema. E os conceitos clássicos de virtude, definidos segundo a moral socrática ou segundo a moral cristã, serão questionados de maneira radical." (Nascimento, 1984, p. 261)

Nesses que estamos chamando de Tempos modernos, não podemos deixar de incluir a reflexão ética ou a moral liberal. A ética que sustenta o modo de produção capitalista. Essa é a prática que norteia o mundo atual. Este tem por base, de um lado a tese de John Locke que fundamenta o liberalismo afirmando a necessidade de o Estado se manter restrito às ações políticas, deixando as ações econômicas por conta dos tecno-burocrátas. Tudo isso fundado na tese da liberdade natural à propriedade privada.

A proposta ético-política do liberalismo ocasiona um fosso e um crescente conflito social. O fosso se deve à impossibilidade da grande massa populacional de ter acesso ao bem estar proporcionado pelos bens e produtos que produz e o conflito por que permanece alijado tanto do poder de compra, como do poder de decisão.

A superação desse fosso e eliminação do conflito é superada pela proposta Liberal de Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau. Hobbes afirma a essência má do ser humano e Rousseau afirma a sua essencial bondade. Embora ambos tenham pontos de partida diferente, a chegada é a mesma: a necessidade de superar os conflitos mediante um "Pacto Social" ou do "Contrato Social".

"A passagem do estado de natureza ao estado civil ou à sociedade civil se dá por meio de um pacto social ou contrato social, pelo qual os indivíduos concordam em renunciar à liberdade natural (ou o poder para fazer tudo o que se quer, desde que nenhum obstáculo impeça a ação) e à posse natural de bens e armas e em transferir a um terceiro - o soberano - o poder para criar e aplicar as leis (determinando o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o permitido e o proibido), usar a força (encarregando-se, em nome de todos, de vingar os crimes), declarar a guerra e a paz. O contrato social funda a soberania e institui a autoridade política, isto é, a polis ou a civitas. É instituído, portanto, o estado civil, que deve pôr um fim às lutas mortais do estado de natureza (hobbesiano) ou do estado de sociedade (rousseauista)". (Chauí, 2005, p. 373).

A proposta desse pacto social manifesta uma ética que se limita à defesa natural de direitos. Mas não dá conta de resolver o conflito sócio-econômico que separa, abissalmente, ricos e pobres. E, com isso permanece o fosso social. Mesmo a proposta socialista não foi capaz de superá-la. Não por que não fosse capaz, do ponto de vista teórico, mas porque as experiências concretas foram realizadas não com o pressuposto democrático, mas com a força de um estado totalitário.

O fato é que tanto o Estado Liberal como o Socialista podem ser vistos como a personificação do Leviatã, anunciado por Hobbes.

Mais tarde, já durante o século XX o liberalismo se rebatiza em neo-liberalismo. O que faz, entretanto, não é melhorar o quadro, mas radicalizar suas enfermidades.

Primeiro, em meados do século com a idéia do Estado de Bem-estar Social, no qual o Estado detentor de recursos advindos do crescimento econômico, assumiria a assistência social mediante as políticas públicas que seriam uma forma de "distribuição de rendas". Não tendo sido possível a sua implantação os neoliberais acenam para a necessidade de um Estado Mínimo. Entretanto

"é importante frisarmos que o Estado é mínimo proposto é mínimo apenas para as políticas sociais conquistadas no período do bem-estar social.(...), pois, na realidade o Estado é máximo para o capital, porque, além de ser chamado a regular as atividades do capital corporativo, no interesse da nação, tem, ainda, de criar um 'bom clima de negócios', para atrair o capital financeiro transnacional e conter (por meios distintos dos controles de câmbio) a fuga de capital para 'pastagens' mais verdes e lucrativas" (Peroni, 2003, p. 33).

Em síntese, podemos dizer que no mundo moderno atual a ética não se volta para a pessoa, mas para a lucratividade.

Nos tempos antigos e mesmo no período medieval o norte para a reflexão ética se pautava pelo bem estar da pessoa. No transcorrer dos séculos, principalmente a partir da Revolução Francesa, da inauguração do ideário liberal o cento de convergência se transfere da pessoa e suas relações para a instituição social e, para seus objetivos a ampliação das possibilidades de lucro.

Poderíamos até dizer que o começo dessa cisão está nas origens do cristianismo que, para se institucionalizar, afastou-se da prática de Jesus de Nazaré, no mundo moderno, embora haja maior clareza a respeito dos direitos das pessoas, a postura liberal e neo-liberal levam ao distanciamento desses direitos. Em nome de bem-estar de grupos determinados afasta-se do bem estar coletivo.

Assim sendo a partir do mundo moderno constatamos o nascimento de ovas exigências na reflexão ética. Não se fala mais de ética enquanto postura e disciplina filosófica, mas de ética norteadora das ações dos profissionais. Aparece a necessidade da ética profissional.

Dessa forma, como ética profissional será menos reflexão filosófica sobre a busca do beme muito mais um emaranhado jurídico a delimitar o que pode ou não pode dentro de cada profissão. A ética profissional que teria nascido a partir dos segredos profissionais dos mestres de oficio, nos tempos modernos se destina simultaneamente a defender os interesses da categoria profissional, os interesses dos tomadores de serviços e os interesses da sociedade. Com o risco de nenhum ser defendido.

Referências

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CHALITA, Gabriel. Vivendo a Filosofia. 2ª ed. S. Paulo: Ática, 2005.

CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. 13 ed. S. Paulo: Ática, 2005.

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993

FEDRO. Fábulas, São Paulo: Escala, [2006?]

MÁTTAR, J. Filosofia e Administração. S. Paulo: Makron Books. 1997.

MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural. Iniciação, teoria e temas. Petrópolis: Vozes, 1982.

MONDIN, Batista, Introdução à Filosofia. S. Paulo: Paulinas, 1980

__________, O Homem, quem é ele?, 2ª ed. S.P: Paulinas, 1982.

NASCIMENTO, Miltom Meira, Ética. In. Chauí, Marilena, et al: Primeira filosofia: lições introdutórias. São Paulo: Brasiliense. 1984.

NIETZSCHE, F. (a) Além do bem e do mal. S Paulo: Escala, [2006?].

__________, (b) A Genealogia da Moral . S Paulo: Escala, [2006?].

__________, (c). Assim falou Zaratustra 4 Ed. R. Janeiro: civilização Brasileira. 1986.

PERONI, Vera. Política Educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003.

PILETTI, Claudino e PILETTI, Nelson. Filosofia e História da Educação. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1988.

REALE, Geovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia (v. 1). São Paulo: Paulinas, 1990

TITIEV, Mischa. Introdução à Antropologia Cultural. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002.


Autor: NERI P. CARNEIRO


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