O Lobo E O Cordeiro : Uma Leitura Semiótica Greimasiana



O lobo e o cordeiro[1]: uma leitura semiótica greimasiana

Faz-se necessário apresentar, primeiro, o texto na íntegra, para a posteriori iniciar sua análise:

O lobo e o cordeiro

Comta-sse que o lobo bebia hũa vez em hũu rribeyro, da parte de cima, e o cordeyro bebia em aquell madês[2] rribeiro, da parte de fumdo[3]. Disse o lobo ao cordeyro:

- Porque me luxas[4] a augua[5] e dapnas[6] este rribeyro?

E o cordeyro rrespondeo e disse homildosamente:

- Eu nom te faço emjuria, nem luxo o rrio, porque a augua corre comtra mym, e a augua he muy clara; e pero sse a quisesse abolver[7], nom poderia.

Outra vez o llobo braada e diz:

- Nom te avonda[8] que tu me fazes emjuria e dapno e aimda me ameaças?!

E o cordeyro outra vez homildosamente rrespondeo:

- Nom te ameaço, mais[9] eu me escuso com boa rrazom.

E o lobo rrespomdeo outra vez:

- Aimda me ameaças? Já ssemelhávill[10] imjuria me fezeste tu e teu padre ssom já bem sseis meses.

O cordeyro disse:

- Ó ladrom, eu nom ey tanto tempo!

E o llobo, iroso, disse:

- Oo maao rrapaz[11], aimda ousas de falar?

E foy-sse a ell e matou-o e comê'-o.

Aplicaremos, a seguir, a 'ferramenta' de análise de Algirdas Julien Greimas na leitura semiótica da fábula de Esopo "O lobo e o cordeiro", a partir do texto - já compilado anteriormente - em português do século XV "[...] tirado dum antigo fabulário [...] que se encontra na Biblioteca de Viena de Áustria [...]" [12].

Alguns pontos serão por nós privilegiados por julgarmos serem aspectos passíveis de reflexões pelos pressupostos da teoria empregada. Usaremos como roteiro para esta análise o modelo seguido por Diana de Barros em seu livro Teoria semiótica do texto [13], aliado a anotações das aulas de Semiótica da Literatura.

Percurso gerativo do sentido

1. Nível das estruturas fundamentais - oposições semânticas:

Força versus fraqueza (Com certeza, podendo também ser interpretadas como opressão/ submissão; ou: maldade/bondade; astúcia/ingenuidade; vício/virtude.)

No texto, essas categorias fundamentais são tidas como negativas ou disfóricas: força, opressão, maldade, astúcia, vício, etc. Ou positivas ou eufóricas: fraqueza, submissão, bondade, ingenuidade, virtude, etc.

No entanto, levando-se em consideração que toda fábula traz um fundo moral, que corresponde a um ensinamento, uma diretriz ou mesmo orientação (norte) para a vida, esta fábula, numa outra versão [14], é finalizada pelo enunciado "Contra a força não há argumento", o que pode fazer o leitor inferir daí, também, um valor disfórico para a ingenuidade do cordeiro (em sua 'tentativa' de argumentar em vez de fugir, de não perceber a 'má-intenção' do lobo, de ter ido ao ribeiro desacompanhado, etc.).

Percebe-se nitidamente em "O lobo e o cordeiro" duas axiologias: a axiologia do lobo e a axiologia do cordeiro. O enunciatário, convictamente, optará por uma leitura que favoreça o campo dos fracos, dos menores, já que (mesmo que seja de modo implícito), a instância enunciativa o manipula para tal, conduzindo a classificação das duas axiologias como enunciva - a do lobo - e enunciativa - a do cordeiro.

A categoria tímica surge, no texto, com valores invertidos, ou seja, o que de modo geral deveria se apresentar como positivo, na verdade, vai adquirir na fábula em questão valor negativo, e vice-versa:

Categorias tímicas

Valores disfóricos↔Valores eufóricos

↓ ↓

- LOBO + CORDEIRO

↓ ↑

Grande pequeno

Forte fraco

Astuto ingênuo

Em cima embaixo

Há duas isotopias claras, a dar sentido ao texto: a isotopia do rio (bebia, rribeyro, augua, rrio) e a do diálogo de coação/defesa (luxas, dapnas, emjuria, ameaças, ladrom, maao rapaz).

2. Nível das estruturas narrativas:

O programa narrativo principal ou de base é: o lobo come o cordeiro; ou seja: o lobo fica com a carne do cordeiro. Pode-se considerar, em princípio, que a situação inicial da narrativa [15] sofre uma transformação, já que o lobo se encontra em disjunção com a comida; todavia, no final, o lobo se encontra em conjunção com ela. São dois programas narrativos de estado, formulados assim, abaixo:

S1 U O (situação inicial) → S1 ∩ O (final)

A transformação de um estado em outro é operada por um programa narrativo. Na fábula estudada, o programa narrativo principal ou de base é formulado da seguinte maneira:

PN {S1 → (S1 ∩ O)} (O lobo faz ele mesmo ficar com a carne do cordeiro.)

Apesar de ser esse o programa de base, o ponto de vista do sujeito lobo não se adequa ao exame do sentido do texto em uma perspectiva de esquema canônico, já que inexiste a personagem nomeada como manipulador-destinador. Contudo, esta análise poderia - e erroneamente, diga-se - seguir o viés de considerar o lobo o herói [16], e também manipulador. Manipularia o cordeiro para ter o pretexto de matá-lo, por causa de suas palavras (dele, cordeiro), alegadas pelo lobo como sendo injuriosas e ameaçadoras. Por outro lado, o cordeiro poderia ser manipulador (também), ao contra-argumentar com o lobo.

Melhor seria, certamente, considerar que, se há um manipulador, este seria a instância enunciativa, a guiar o enunciatário a optar empaticamente pelo mais fraco. Mesmo assim, não seria um destinador, já que nada destina/doa, nem ao lobo, nem ao cordeiro. E a axiologia positiva - eufórica - leva à escolha do viés em que o cordeiro - porque fraco, indefeso, ingênuo, por causa também de todo um significado teológico judaico-cristão - , sim, o cordeiro é o legítimo herói da história, mesmo que para este ela não acabe bem, não tem o final feliz próprio do esquema proppiano [17].

Não há programa de aquisição de competência: o lobo, em princípio, é maior que o cordeiro, tem mandíbulas poderosas, é mais forte e astuto e, por isso, domina. É da natureza dele ter, a priori, a competência (implícita, pois) para realizar o programa de performance de matar e, logo em seguida, comer o cordeiro, de certa forma sancionando-se a si mesmo com o prêmio: saciar sua fome.

O esquema apresenta desdobramento polêmico por conta da existência de um antiprograma, virtual (e também sob outra ótica, de uso) porque não se realiza: o cordeiro defende-se (argumentando) para não ser devorado. É um antiprograma, visto que se o cordeiro fica com sua vida, então o lobo fica sem a comida, o que sugere a inferência das seguintes modalizações:

O lobo quer (almeja) devorar o cordeiro. / O cordeiro quer (almeja) ficar com sua vida.

O lobo sabe (tem o saber de) que pode (tem alta possibilidade) e deve (caso contrário, fica com fome) comer o cordeiro.

3. Nível das estruturas discursivas:

O discurso projetado pela instância enunciativa busca ser objetivo, já que é um discurso em terceira pessoa, criando assim o efeito de sentido de uma ilusão da realidade, pelo distanciamento, inclusive pelo fato de o lobo e o cordeiro dialogarem em discurso direto: não é o discurso do enunciador, é o dos próprios actantes. Essa 'ilusão de objetividade' já vem expressa na locução "Comta-sse", no início da narrativa: indeterminação que é procedimento de generalização, não de particularização - de impessoalidade e imparcialidade, pois. No entanto, há certa ativação 'discreta' da instância enunciativa na espacialização, no uso das expressões "da parte de cima" e "da parte de fumdo", como se esta instância enunciativa estivesse , localizada entre o lobo e o cordeiro. Outra espacialização já demonstra que esse enunciador não está tão próximo assim do cordeiro: "E foy-sse a ell e matou-o e comê'-o". Se estivesse, diria: "E veio..."

Na narrativa investigada, podemos considerar como oposição sêmica de ordem temática maior a opressão do mais forte sobre o mais fraco e de ordem temática menor, isto é, uma figura que nasce da figura anterior, o domínio do predador (caçador) sobre a presa (caça). Outras figuras poderiam nascer da primeira (em negrito), todavia não realizadas no texto, como o tema da exploração econômica do burguês sobre o operário, e outras até, porém não atualizadas no texto e que, por isso, nos levaria a uma análise de ruptura com o princípio da imanência do texto.

As leituras temáticas, referidas acima, só existem em vista de serem concretizadas a partir de figurativizações, caracterizadas por um sistema de pares adversos de traços sensoriais, chamados investimentos figurativos, que seguem na tabela abaixo:


Autor: Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues


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