O CHUGO E O CAVALO



O CHUGO E O CAVALO

 

O local tinha todas as características de uma Comunidade religiosa ou pelo menos de prática espiritual ascética-mística. Era como um sítio com uma pequena casa central, constituída por uma sala e um quarto, e em volta dela várias casinhas espalhadas entre árvores e jardins floridos. Na espaçosa sala da casa central só havia um tapete descolorido e maltratado pelo tempo sobre o piso de madeira. Ao fundo, à direita, a porta que a acessava, enfrente à outra -que servia de entrada aos aposentos do mestre, e por isto sempre fechada-, estava entreaberta. A única janela no meio da parede branca estava coberta com uma cortina amarela listrada de branco. Um discreto cheiro ocre adocicado se sentia no ar, como se fosse proveniente de uma vareta de incenso; mas não era.

Fora isso, só o som; melodioso, rítmico, animado.

Ensaiava-se repetidamente uma bela e antiga canção folclórica Argentina, que fala sobre coisas profundas da alma e que dizia assim em algumas de suas estrofes:

Donde está mi corazón,

que se fue tras la esperanza,

tengo miedo que la noche,

también me deje sin alma.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Cuando se abandona el pago

y se empieza a repechar,

tira el caballo adelante

y el alma tira pa´atrás.

 

À margem direita da janela, encostado na parede, um jovem de uns 30 anos acompanhava a música com um velho violão, que apesar do trato do tempo, ainda soava adequadamente; à sua esquerda, um outro rapaz ainda mais jovem, fazia o coro. Eu mesmo enfrente a ele, complementava o coral assim formado, e à minha direita, o Mestre seguia atentamente o desenrolar dos acontecimentos. Só se escutava a música tocada no violão e a cantoria do nosso improvisado coral. Sentados todos no chão encima do tapete, ensaiando indefinidamente a música citada, ninguém se apercebeu da hora até que o rapaz mais jovem assim falou:

- “Creio que passamos da hora; são 15:30 e devemos fazer o horário de silêncio e descansar um pouco”.

- “Agora não adianta mais” - disse o Mestre- “O tempo já passou e o descanso ficou para trás; continuemos cantando, pois essa música me traz boas lembranças.”

Assim o fizemos até o momento que entreguei ao Mestre um pequeno cavalo de couro com pelos castanhos, que me disseram que deveria dar-lhe nesta ocasião. Como era um símbolo, o Mestre entenderia, me disse o portador do presente.

Agora que penso no assunto, não poderia dizer quem foi exatamente que me entregou o cavalo e o recado para o Mestre. Tento relembrar o fato e não encontro um rosto nem uma figura que possa satisfazer a dúvida. Apenas suspeito, mas não arriscaria um palpite.

Depois que o Mestre levou o cavalo a seu quarto, voltou para a continuação da cantoria que havia cessado por causa da minha interrupção anterior.

Instantes após a retomada do canto, um surdo e estrepitoso barulho se fez sentir do lado de fora. - “Parece um disparo de arma de fogo” - disse eu com ar preocupado, levantando-me imediatamente e olhando pela janela.

Lá fora, entre as casinhas e os jardins, distante uns trinta metros do local onde estávamos, a Senhorita M. carregava numa mão uma espingarda, e na outra, um animal desconhecido para mim, parecido com uma cobra, porém mais curta e grossa, com uma enorme boca cheia de dentes afiados, pendurada cabeça para abaixo.

Algumas outras Senhoritas acompanhavam a cena com preocupação e alegria; preocupação porque, como depois fiquei sabendo, esse animal poderia ser mortal para o homem; e alegria, porque jazia abatido de forma pouco usual, carregado como um troféu de caça, sujeito pela cauda, cabeça para abaixo.

Ao verem que nós quatro estávamos olhando pela janela, com os olhos arregalados, se dirigiram para nossa direção objetivando seguramente esclarecer os fatos. A Senhorita M. disse ao chegar, com um ar de triunfo: - “É um Chugo, Mestre; quem sabe o que estaria fazendo por aqui. Mas agora está morto!”

 - “A última vez que vi um desses, eu era seminarista. Há muito tempo atrás...”, disse o Mestre à sua vez. Esta declaração deixou todo o mundo nervoso; podia ver-se na expressão dos rostos e nos movimentos involuntários do corpo, parecendo um calafrio ou um ataque de Parkinson.

- “O que é um Chugo?” - atinei a perguntar olhando em todos os semblantes, procurando uma explicação.

Como ninguém disse palavra alguma tentei olhar o tal de Chugo mais de perto, mas o Mestre me impediu com seu braço. -“É muito perigoso; não se acerque a ele. Coloque-o no chão, Senhorita, assim poderemos vê-lo melhor”.

Assim que foi depositado no lugar indicado, esticado e com a boca aberta, apareceu um gato preto que entrou na boca do Chugo, passando de lado a lado e fazendo piruetas pelo céu da boca, como para demonstrar que estava bem morto. Ninguém soube de onde viera o gato, já que na Comunidade não havia nenhum, e os poucos que poderiam existir pela vizinhança estavam com medo dos cães de guarda e nunca apareciam por ali.

O Mestre então solicitou ao grupo silêncio e concentração para que pudéssemos visualizar como era o animal vivo e como realizava seu ataque. Imaginamos todos que a experiência fosse extra-sensorial, pois resultaria difícil enfrentar um bicho desses no mundo real.

Assim, no silêncio, cada um imaginou por intermédio da mente do Mestre, como era o animal. Não sei dos outros, mas minha experiência foi marcante!

Vi andando pelo chão, arrastando-se e serpenteando rapidamente em nossa direção, um destes animais. Era bem grande; media mais de dois metros de comprimento, e a espessura do corpo permitia caber em pé um objeto de trinta centímetros. Sua boca, de diâmetro pouca coisa maior que o corpo possuía duas fileiras de dentes triangulares, afiados, dispostosem semicírculo. Amordida deveria ser mortal mesmo!.

Quando chegou perto de nós, parou, olhou em nossa direção e se preparou para pular na garganta de alguém. Eu imaginei que eu fosse o escolhido, e isso me causou um calafrio descomunal, dando um passo atrás instintivamente.

Alguma coisa dentro de mim me disse para gritar alto e gesticular para ele como se eu o estivesse atacando. Feito isto, o animal ficou como que paralisado por alguns instantes, e foi quando aproveitei para matá-lo.

-“Muito bem”. Disse o Mestre para mim. -“O Senhor aprendeu a lição. É exatamente nesse instante de perplexidade e de ilusão que devemos matar o animal que nos espreita, caso contrário ele pode acabar com nossa vida”. Enquanto dizia estas palavras todos nós voltamos ao estado de vigília anterior à experiência, de modo a poder entender melhor a explicação recebida.

Nunca soube o que era o Chugo nem mais ouvimos falar dele entre os amigos do grupo. Ele tinha conseguido naquele momento cortar a relação com a música e com nossa cantoria. O coral seguiria ensaiando, algum dia... A alma que retornava às origens continuaria lutando com o cavalo da canção, e a história seguiria seu rumo, inevitavelmente.

Como todos nós.

 

 

 

 


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