A Amiga Do Outro Mundo



Quando minha filha tinha cinco anos, foi acometida de uma virose que levou - a ao internamento em um hospital por duas semanas. Ainda na primeira semana, ela começou a contar de uma amiga que vinha visitá-la todo os dias. Perguntei para a enfermeira sobre isto, mas a mesma não confirmou que alguém entrasse no quarto dela a não ser nós três:a enfermeira, eu e a babá. Como tinha avaliações na faculdade não podia ficar com ela todos os dias, mas deixava-a sob os cuidados de uma enfermeira e na companhia de uma babá, enquanto lecionava. Às vezes minha sogra e minha cunhada iam visitá-la e levavam algumas frutas e brinquedos para ela. Contava para todos que não precisávamos mais visitá-la , pois preferia sua amiga invisível, para os outros.

Na segunda semana, coincidiu de estar juntas, todas as visitas de minha filha: a avó paterna, a tia paterna, a enfermeira, a babá, eu e, segundo ela , também “a sua amiga do outro mundo”. É claro que todas nós ficamos zangadas com aquela história. Falei para minha filha: você imaginou uma amiguinha para você, isto não existe! Minha filha respondeu: existe sim, ela está aqui e não é amiguinha , é amigona, pois é ela maior do que você! Chegou a mostrar para nós, indicando o lugar onde estaria sentada a tal amiga e até entabulou um diálogo com a mesma, na nossa presença. Depois dizia para mim: mamãe, é melhor você ir embora porque minha amiga não gosta de você! Toda vez que ia visitá-la minha filha não queria conversar comigo e pedia que eu me retirasse do quarto. Fiquei encabulada com a situação e procurei saber o por quê.

Quando ela teve alta e levei-a para casa, chorou por não querer sair do hospital. Despediu-se de sua amiga imaginária e até prometeu voltar mais vezes para ficar com ela. Durante muito tempo, já em casa, minha filha me tratava como uma madrasta: fazia greve de fome e torcia para que eu tivesse muito trabalho na faculdade. Quando eu corrigia provas ou trabalhos de alunos, ela chegava perto de mim para me insultar: você vai sair, a minha amiga do “outro mundo” vai chegar,e eu nunca mais vou olhar para você. Corria para seu quarto e voltava a conversar com sua amiga imaginária, e o que era pior, falava mal de mim. Dizia: coitada, pensa que sabe de alguma coisa! Não sei o que ela pode ensinar para seus alunos! Como nunca vi sua amiga “do outro mundo” e nem ouvi sua voz, a minha preocupação era com a minha filha e não comigo. Não cheguei a ter ciúmes nem fiquei com raiva da minha rival. Entretanto, fui procurar ajuda de especialistas e de amigos para saber até onde isto seria normal. Aquela brincadeira da minha pequena estava indo longe demais!

Conversei com o pediatra, que me explicou ser uma fantasia para chamar a minha atenção, já que tinha pouco tempo para ela. Tinha aulas em um Colégio de Ensino Médio pela manhã e ela ficava com o irmão e a babá em casa; à tarde levava-os à escola e ia ministrar aulas numa Faculdade particular. À noite lecionava numa Universidade Pública enquanto novamente as crianças ficavam com a empregada e a babá. Comentei com a professora da escolinha infantil que sugeriu tirar umas férias e passear só com ela. Fiz isso, mas a amiga do outro mundo, também foi junto, para atrapalhar a nossa conciliação. Levei-a ao parque com outras crianças que passaram a discriminá-la. Diziam: sua filha está ficando louca. Ela só quer brincar com um fantasma, sua amiga, e não deixa a gente participar da brincadeira!

Levei-a a um psicólogo para um tratamento. Ele exigiu algumas sessões para conversar com ela e comigo junto. Em algumas eu fiquei presente. Nas primeiras vezes ela conversou muito com sua amiga do outro mundo na nossa frente. O psicólogo sempre entrava na conversa e descobriu o que mais lhe agradava, que era falar de mim. Pediu-me que dali em diante, eu a deixasse conversar a sós com “ eles” isto é, minha filha, ele e a“do outro mundo”. Foi tanta conversa todo dia, durante um mês, que minha filha acabou gostando dele. Disse-me, ao voltar do consultório: Quando eu crescer eu vou casar com esse médico, ele é tão sozinho, ele precisa muito de mim. Você me deixa casar com ele? Naquelas alturas, não pensei duas vezes. Respondi: claro, minha filha! Prefiro ouvir você conversando com uma pessoa real do que fazer de conta que vejo uma amiga que só você vê. Passou a confidenciar comigo o que conversavam. Disse: meu amigo acha “aquela” uma chata, boba e que gosta é de você! Mas eu disse para ele que você é casada e já tem seu marido. Sabe o que ele disse : agora sou eu quem vai conversar com você toda semana, se você quiser!

Minha filha chegou a comentar que sua amiga não era mais tão importante para ela. Que ela era má. Disse: ela só me afasta de você, mamãe. Agora ela estava com muito ciúme de mim, queria roubar o médico de mim. Agora mamãe , eu e você vamos voltar a ser amiga e também do médico, não é? Ainda me arrisquei a perguntar, para ter certeza que minha filha tinha esquecido aquela idéia de amiga “do outro mundo”. E a sua amiga, vai ficar junto conosco? Ela gritou, tapando minha boca: Não, Mãe! Não me fale mais nisso! Eu já expulsei “aquela zinha “ da minha vida. Ela, agora, foi embora para sempre!

Quando começaram as aulas, continuei levando-a ao psicólogo que me disse: O que falta a essa menina é a presença do pai ou de alguém que tenha certa autoridade sobre ela. Você faz o que pode sendo pai e mãe. Tem crianças que não conseguem entender algumas coisas da realidade adulta. Ao mesmo tempo em que você faz falta para ela, cada dia procura afastar-se para chamar a atenção de alguém para si, quando consegue atingir você fica irritada porque não é só da sua atenção que ela precisa. Mude-a de escola, de amigos, de bairro ou até de casa, se for possível e amplie o círculo de amizades dela para que ela não precise viver o tempo todo no mundo da fantasia, tentando fugir do que é real e que não lhe agrada. Mudei de bairro, de casa, de amigos e até de escola. Daí em diante, conheceu outras crianças na nova escola e passou a brincar normal, esquecendo da amiga do outro mundo, de me provocar e até do “médico”.

Vocabulário:

Fantasma: alma

Amiga do outro mundo: amiga do mundo irreal

Aquela zinha: a amiga imaginária
Autor: Djalmira Sá Almeida


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