AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA EM GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS



INSTITUTO SUPERIOR MIGUEL TORGA

ESCOLA SUPERIOR DE ALTOS ESTUDOS - ESAE

CURSO DE 2º CICLO, CONDUCENTE AO GRAU DE MESTRE

MESTRADO EM GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS E COMPORTAMENTO ORGANIZACIONAL

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA EM GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS

 

(Resumo das páginas 96 a 202 do Livro de Chabert, Catherine. (2003). O Rorschach na clínica do adulto. Lisboa: Climepsi Editores. Edição original, 1997)

 

 

 

Trabalho apresentado à disciplina Avaliação Psicológica em Gestão de Recursos Humanos do Curso de Mestrado (2º Ciclo) em Gestão de Recursos Humanos e Comportamento Organizacional, ministrada pela Professora Elisabete de Jesus Ramos em cumprimento às exigências para sua avaliação e aos requisitos parciais para obtenção da nota (valores).

 

 

 

 

 

David Alves de Araújo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RECIFE – BRASIL

2008

O Rorschach na Clínica do Adulto – Interpretação Psicanalítica. Catherine Chabert. 1997. Manuais Universitários. Lisboa: Climepsi Editores. Edição original.

 

 

Resumo:

Para a autora, a cotação das respostas deveria fazer-se depois desta primeira leitura, da qual se torna um prolongamento necessário. Na acepção da autora, lista cotação nada tem a ver com uma codificação sistemática: para se tornar um utensílio de trabalho operante, deve apoiar-se numa escuta atenta da resposta e ter em conta o seu processo. Assim, os clínicos inexperientes empenham-se muitas vezes na cotação com uma pre­cipitação inquieta, tentando seguir receitas, e descuram o sentido profundo das regras de codificação. A observância dessas regras deve aliar-se à flexibili­dade, e, sobretudo, à compreensão dos fatores utilizados na articulação da resposta. A cotação permite, ela também, a ligação e o encontro entre a externalidade objectiva do código, apoiada na experiência e na estatística, e a subjetividade do técnico ao serviço da do sujeito.

Segundo a autora, parece-nos que é necessário conhecer «clinicamente» bem um protocolo, para o poder traduzir de forma fiel em termos de cotações. A este propósito encontram-se atitudes muito diver­sas nos técnicos: alguns dão uma importância considerável às cotações, apli­cando escrupulosamente um sistema de regras e interessando-se, sobretudo pelos resultados codificados, transformando uma palavra viva num esqueleto de siglas e letras que lhe dissecam a ressonância; outros, pelo contrário, recusam todo o interesse das cotações, valorizando apenas o discurso enquanto tal, o que, apesar de tudo, os priva de um instrumento precioso pela análise metodológica. que implica.

Se se dá às cotações o seu estatuto de utensílio, de meio útil e operante como suporte necessário para o conhecimento do material, sem as considerar como um fim em si, se sobre elas se definem o interesse e os limites, a sua utilização dará uma armadura sólida ao trabalho de análise, graças a um domínio mínimo dos dados obtidos.

O termos modojde ajjncensao define a localização, o quadro perceptivo nos globais G, que se referem ao conjunto do cartão; as respostas grandes detalhes (D), que se referem a partes facilmente isoláveis do conjunto e dadas com freqüência as respostas localizadas nos espaços brancos internos ou externos da mancha (Dbl); as respostas referentes a recortes mais raros, quer mais pequenos quer estranhos na sua delimitação (Dd) e, por fim, as Do, _ou_detalhes «oligofrénicos» que designam os elementos tratados isoladamente quando, em geral, eles fazem parte de um todo.

Desta forma, a autora nos ensina que os modos de apreensão devem ser analisados em separado, mas também de forma sistemática, através do modo de sucessão; rorschach pensava que o processo consiste, para o sujeito, em abordar o cartão em primeiro lugar no seu conjunto, depois, nas suas grandes divisões e, por fim, nas mais pequenas ou mais raras.

O deixar-ir e a espon­taneidade têm pouco lugar neste tipo de conduta, uma vez que a apreensão dos cartões se faz em conformidade com um modelo estabelecido à partida e escrupulosamente seguido ao longo de toda a aplicação.

Ao contrário, uma jmcessãojiejnodos de apreensão heterogénea, mesmo caótica, pode ter por base uma ausência de rigorosos processos de pensamento ou de raciocínio, numa diligência tributária das emoções suscitadas pelos cartões, dos quais o sujeito se pode mostrar muito dependente.

Classicamente, a análise dos modos de apreensão enfia, entra quadro da abordagem dita «intelectual». Compreende-se, por este termo, no entender de Chabert, a maneira como o sujeito utiliza as suas capacidades «intelectuais», ao mesmo tempo, no sentido da lógica do raciocínio, da exploração das potencialidades criati­vas e do respeito da adaptação à realidade objetiva. Assim sendo, Os contributos do Rorschach neste domínio foram, e são ainda, frutuosos, na medida em que podem evidenciar, alguns indivíduos, as potencialidades que não aparece­ram, por exemplo, em provas de eficiência, muito mais saturadas em fato­res escolares, sociais ou culturais. A descoberta das potencialidades de reali­zação num sujeito é essencial, quando esta permite modular a apreensão de um nível intelectual medíocre obtido por outros meios, e questionar as razões dessa diferença.

Nesta perspectiva, poderíamos discutir o procedimento clássico adoado para a análise dos protocolos de Rorschach, que consiste em estudar, em pri­meiro lugar, os fatores ditos «intelectuais», depois, os fatores ditos «adaptativos» e, por fim, os fatores ditos «afectivos.». Este procedimento, prático no plano metodológico, pode levar a clivagens arbitrárias, quando tende a consi­derar o funcionamento «intelectual» como entidade independente em relação aos outros aspectos da organização psíquica.

Sobre esse respeito, a autora questiona e ao mesmo tempo tira suas próprias conclusão, respondendo a questão ora levantada: Mas, podemos falar, em verdade, de «independência» e de autonomia das funções cognitivas? Sim, se entendermos isso como uma certa liberdade que permite o investimento de tudo o que se refere ao pensamento, nas suas dimensões de interioridade e de criatividade, de continuidade e de raciocínio lógico: isto testemunha, então, a existência de um desejo de conhecimento e de capacidades de utilizar os meios de que dispõe o sujeito, numa procura sempre renovada, que mobiliza as famosas pequenas quantidades de energia, o que não lesaria, ou só o faria transitoriamente, os outros domínios. Isto implica justamente uma ligação entre o funcionamento cognitivo propriamente dito e a dinâmica afectiva e pulsional, ligação que poderia ir ao encontro da noção de independência no sentido literal do termo.

Com efeito, nós preferi­mos substituir o termo «intelectual» pelo de «cognitivo», porque nos parece que o Rorschach dá, sobretudo conta das modalidades de abordagem e de contato, numa intenção de conhecimento do mundo envolvente, em particu­lar através dos modos de apreensão, que são o sou suporte inicial, mais do que dos aspectos mais gerais e complexos inerentes à «inteligência».

No entendimento da autora, portanto, o trabalho de análise dos modos de apreensão ordena-se em duas fases: em primeiro lugar, trata-se de determinar a qualidade específica de cada modo pelo estudo sistemático das respostas de cada categoria; em segundo lugar, trata-se de evidenciar a interação dos diferentes modos para apreciar o seu significado a um nível de compreensão sintética.

As respostas globais

Os trabalhos de G. dwokktzki (l939) e de C. bkizmann (J 961) sobre a evolu­ção da percepção na criança no teste de Rorschach, conduziram a uma classi­ficação precisa das respostas globais (G), retomada por D. anziku e desenvol­vida por N. rausch df. tkauhknbekcí.

Os G simples

Os G simples abordam o cartão por uma leitura bastante fácil do material. Aparecem, em particular, nos cartões que os favorecem, isto é, nos cartões compactos. Os protótipos disso são as respostas banais dadas nos respectivos cartões (cartões I e V: «morcego»; cartões IV e VÍ: «pele de animal»). A sua presença num protocolo é necessária para testemunhar a existência de uma adaptação perceptiva de base, que permite pensar que o sujeito possui possibilidades de abordar o mundo socializado.

Para Chabert, as res­postas globais simples não são fruto de uma relação entre as diversas partes, nem de combinações particulares destas. Elas assinalam a moldagem a uma percepção dominante, sem esforço pessoal de elaboração ou de construção.

Assim sendo, a presença de G simples majoritários num protocolo pode ter sentidos bem diferentes. Uma maioria de G simples pode evidenciar uma atitude defensiva que con­siste em não se aplicar numa procura mais aprofundada ou mais pessoal. Neste Sentido, a ausência de curiosidade face ao objeto externo que é o material, pode acompanhar-se por uma ausência de curiosidade pela realidade interna do sujeito ou, pelo menos, mostrar o desejo de não se entregar, nem se revelar ao outro por uma implicação mais manifesta.

O não conhecimento, apoiado numa ausência de espírito da investigação, constitui a primeira hipótese (recalcamento), o sinal da necessidade do não saber que entrava o pensamento na sua atividade criativa.

Os G simples podem, então, ser considerados como suporte fundamental, como testemunho do estabelecimento de uma identidade estável num meio distintamente reconhecido como realidade externa.

De acordo com os exemplos dados pela autora, infere-se condutas defensivas pelo recurso a uma realidade global e adaptativa contra a emergência de representações e/ou de afetos, as respostas do G simples não devem ser entendidas apenas em termos negativos: falta de imaginação ou de criativida­de, ausência de investimento da elaboração ou mesmo da mentalizarão.

A este respeito não voltaremos a esta categoria de G chamados «sincréticos» que, como os G simples, pertencem á série dos G «primários», mas estão associados a percepções pouco precisas, maciças e compactas, sendo, muitas vezes, testemunhos de uma ausência de discriminação entre o interno e o externo. Remetemos o leitor para os trabalhos de Nrauso  e M.-F. Boizoti (1977) sobre os protocolos de crianças. Esses trabalhos põem bem em evidência as ligações que existem entre percepções sincréticas e difi­culdades de individuação, assim como os estudos psicopatológicos corrobo­ram a sensibilidade chamada de apreensão em G a tudo o que releva da confusão, da telescopagem e da generalização arbitrária (G confabulados c G contaminados) na relação com o mundo e seus objetos.

Os G vagos e impressionistas

Como os G simples, este tipo de respostas não depende de um esforço de elaboração, mas remete antes para o impacto do estímulo (objeto) no sujeito: este manifesta uma passividade muito importante numa espécie de submissão ao material, que pode tomar, no entanto, formas bem diferentes, segundo o contexto. Dificilmente podemos isolar o modo de apreensão do determinante associado, na medida em que cada resposta constitui um todo cujas partes são pouco dissociáveis.

Assim, no que se refere à categoria que trata­mos agora, é necessário distinguirmos os G associados dos determinantes formais e daqueles que estão associados aos determinantes sensoriais, porque mesmo que possuam a característica comum de constituírem um quadro perceptivo pouco preciso, não têm todos o mesmo significado, precisamente por causa da qualidade dos seus determinantes.

Os G vagos

O seu caráter pouco preciso formalmente (F±) e a indefinição de que se impreg­nam podem testemunhar um pensamento pouco esténico e pouco sólido numa abordagem do mundo que é mal delimitada, frágil nas suas discriminações: a indefinição do objeto e a indefinição do sujeito encontram-se numa mesma imprecisão, numa mesma insuficiência do continente, do envelope, numa mesma friabilidade das fundações... Mas, muitas vezes, os G vagos são utiliza­dos como mecanismos de defesa contra uma implicação e um compromisso sentido como inquietante ou mesmo perigoso.

Ressalva a autora que o sujeito, então, ao submeter-se à incidência do engrama sugerido pelo carrão, contenta-se em dar respostas imprecisas e indeterminadas que o protegem contra representações mais claras ou significativas que ele tema, assim, evitar ou esconder.

Os G impressionistas

Designam-se assim os G indefinidos, em que os elementos sensoriais são domi­nantes na determinação da resposta. O que caracteriza aqui o G é, em primeiro lugar, o fato de o engrama ser perceptivamente impreciso, mas também o ser acompanhado por manifestações sensíveis, muitas vezes intensas, que mos­tram a sugestibilidade do sujeito, a sua permeabilidade às qualidades do mate­rial, às quais reage fortemente, ao submeter-se ao seu impacto a ponto de descurar o quadro perceptivo que serve de molde às suas respostas.

A distinção entre G vagos e G impressionistas é cômo­da, tanto uns como outros podem reenviar para um movimento defensivo que consiste em impedir a emergência de representações desagradáveis ou inquietantes, porque confrontam o sujeito com conflitos difíceis de abordar.

Assim sendo, os contextos defensivos nos quais eles se inscrevem são dife­rentes, dado que, no primeiro caso (G vagos), a formalização e a ausência da utilização ou de integração dos elementos sensoriais relacionados com os afe­tos evocam um funcionamento do tipo rígido, em que a dúvida e o isolamento sustêm a abordagem global, enquanto, no segundo caso (G impressionistas), a luta existe sempre contra o surgir das representações, mas os elementos sensoriais dominam na expressão dos afetos com tonalidade, sobretudo lábil.

Para a autora, é preciso, antes de mais, assinalar que, ainda aqui, como no exemplo pre-­ cedente, o predomínio de localizações globais (15 G em 24 respostas) não pode ser interpretado como significativo de um forte investimento intelectual. Os G aparecem num contexto de expressão de afetos maciços que precede ou acompanha as imagens cujo enquadramento perceptivo é indefinido. É privile­giada, então, a vivência e o sentir e os G servem, de certa maneira, de receptá­culo à ansiedade ou à angústia. Poderíamos considerar o caráter indefinido dos G como significativo de uma invasão pelas reações emocionais, cuja tona­lidade disfórica repetitiva, corolária de evocações muito projetivas, tornaria ainda mais pesada a gravidade. Nesta perspectiva, os G perderiam o seu valor defensivo. Mas podemos mudar de orientação, e interpretar a imprecisão do quadro que permite o domínio das emoções como significativa de uma grande habilidade, que consistiria em lutar contra o surgir de representações justamente pela exibição dos afetos.

Os G elaborados ou combinados ou secundários

Enfoca a autora que esta qualidade de G reflete uma organização estruturante do engrama por uma combinação das diferentes partes da mancha, combinação que remete para o sujeito.

Os G combinados testemu­nham uma operação mental dinâmica, na medida em que o sujeito não se contenta em se prender aos dados do estímulo, mas contribui com uma elabo­ração pessoal na sua percepção do cartão.

Assim, os G combinados que levam a uma percepção arbitrária, tornam-se inoperantes e assinalam o insucesso da tentativa de organização, pelo fato de elementos projetivos terem uma ingerência demasiado forte que altera a relação com a realidade do cartão, e dão por vezes uma reconstrução ilógica, mesmo delirante. Pelo con­trário, os G combinados de boa qualidade são considerados como significati­vos de criatividade, quando aparecem em número suficiente num proto­colo. Quer isto dizer que o sujeito que os dá é capaz de utilizar as suas potencialidades criativas para oferecer realizações originais

Os exemplos que escolhemos permitiram-nos ilustrar os significados possí­veis das diferentes qualidades de respostas globais; a sobre determinação na escolha de um modo de apreensão pode remeter para uma atitude mental específica, em particular quando somos confrontados com um tipo de funcio­namento relativamente homogéneo. Mas se há predomínio de uma certa qua­lidade de respostas globais, as outras podem não estar ausentes, o que se pres­ta a uma comparação das diversas categorias de G utilizadas pelo sujeito: com efeito, os G elaborados raramente constituem o único tipo de apreensão glo­bal.

Deste modo, de acordo com a autora, o exemplo de Jean-Marie demonstra-o: a presença de G elaborados perde parcialmente o seu valor positivo, por haver carência em G simples adaptativos.

A análise do conjunto dos G torna possível uma avaliação bastante fina do melhor e do pior registro de funcionamento do sujeito. Pode-se ser inquietante o peso da projeção e do fantasma na atividade cognitiva de Alexis, a análise dos G não organizados de Benoit, confirma as hipóteses emiti­das sobre o caráter relativamente operante do seu funcionamento mental. Aqui, os G simples são, ou banalidades, ou formas perceptivamente corretos, o que, de qualquer forma, reenvia a uma ancoragem no real perfeitamente satisfatória.

No plano da atividade cognitiva, o G constitui um modo de acesso aos objetos que permite o conhecimento global ou sintético. Ele testemunha uma adaptação de base à realidade objetiva, quando opera uma descrição da man­cha percebida no seu conjunto, associada a um engrama corrente: neste senti­do, os G revelam a necessária socialização do pensamento. Aquém do seu caráter simplesmente descritivo e adaptativo, o G pode relevar de mecanis­mos de elaboração mental que vêm marcar as produções com o cunho da subjetividade e da criatividade, evidenciando, então, as capacidades de pen­samento interiorizado.

No plano da utilização defensiva, os G podem ser sustidos, se são predomi­nantes no modo de apreensão, por mecanismos de defesa específicos sobre os quais nos deteremos posteriormente. Sem entrar em pormenores, podemos, desde já, dar as grandes linhas de orientação desse estudo:

-          os G podem participar de mecanismos de defesa de tipo adaptativo, no
sentido de uma luta contra a emergência da realidade interna pela utiliza­ção
da realidade objetiva (G simples banais);

-          os G podem ser sustidos por mecanismos da ordem do recalcamento,
quer se trate de G simples, vagos ou impressionistas, na medida em que
as representações implicadas ou significativas são evitadas através de uma
abordagem banalizada ou imprecisa ou ainda pelo avançar de reações
sensoriais;

-          os G podem servir de suporte ao isolamento dos afetos, num esforço
para dominar o material que passa pela intelectualização, o que nem sempre exclui a criatividade;

-          os G podem pôr em evidência, quando a abstração se torna dominante,
uma luta do real num contexto de desinvestimento objetai e de retrai­mento narcísico no imaginário.

No plano da problemática do registro desta problemática, o G pode dar conta de uma imagem do corpo relativamente estável e interiorizada ou, pelo contrário, de uma vivência corporal lacunar. Neste sentido, serve de conti­nente à projeção da imagem do corpo.

O G pode dar conta do reconhecimento de um objeto total no seio de uma relação com o mundo, utilizando as capacidades de diferenciação entre sujeito e objeto, entre real e imaginário.

Assim, a partir destas duas hipóteses, a autora infere que:

-          o G pode ser portador de uma procura ativa da imagem de si através de
engramas elaborados, numa dinâmica relacional claramente estabelecida;

-          o G pode testemunhar capacidades de interiorização e de mentalização e,
portanto, a existência de um espaço psíquico.

-          Por oposição:

-   o G pode evidenciar uma falta de distinção entre sujeito e objeto;

-   o G pode mostrar a invasão do mundo externo sobre o mundo interno na estreita dependência do sujeito em relação aos cartões;

-   o G pode mostrar a invasão do mundo interno sobre o mundo externo,
no insucesso das funções do Ego.

As respostas D         

Designamos assim as respostas que se referem a uma localização parcial do cartão nos seus recortes mais freqüentemente utilizados numa dada popula­ção. A lista dos D é efetivamente estabelecida a partir de critérios estatísticos. Assim, não é de admirar que os D se referenciem aos recortes perceptivamente mais evidentes, que são, com freqüência, os maiores. Mas é preciso, mesmo assim, evitar confundir D e tamanho das localizações. Alguns D referem-se a porções restritas da mancha e são designados como tal pelo simples fato de aparecerem com freqüência estatisticamente significativa. Este critério é importante, do ponto de vista da interpretação, porque confere aos D o seu significado adaptativo e socializado: apreender os cartões, utilizando uma per­centagem de D mais ou menos afastada das normas estabelecidas, testemunha a qualidade da participação num modo de pensamento coletivo.

E difícil isolar os D, como qualquer outro modo de apreensão, dos deter­minantes que lhe estão associados e que "contribuem fortemente para pôr em evidência os seus significados. O recorre que consiste em limitar as partes da mancha mais restritas deveria permitir uni melhor controlo perceptivo: neste sentido a associação D V'+ (ou I) I:C ou 1) K com unia 1; de boa -"qualidade) mostra a congruência do modo de apreensão e do determinante, ambos definidos por critérios formais estatísticos, e revela as capacidades de inserção no real e de controlo das percepções. A abordagem pelos D é assim testemu­nho da presença de um Ego suficientemente forte, que pode submeter-se à prova cia realidade.

Se nos referirmos à evolução das percepções no Rorschach, segundo o nível de desenvolvimento, é interessante recordar o aparecimento claro dos D por altura do período de latência e o seu predomínio no decurso desta fase da vida: mostram a utilização dos mecanismos que caracterizam um pensamento mais analítico, e, portanto mais discriminante, em oposição ao sincretismo dos pri­meiros anos. Ao mesmo tempo, o D serve de ancoradouro a todas as defesas que vão utilizar a realidade exterior para fazer face às emoções e aos fantas­mas do sujeito.

Resumindo, os D associados aos determinantes que marcam a manutenção do controlo pela realidade objetiva tomam, essencialmente, significados adaptativos e defensivos.

As respostas Dd

Designamos assim as respostas apreendidas nas localizações mais raramente percebidas pela população de referência. O raciocínio é o mesmo que para os D: acontece que os detalhes percebidos com menos freqüência são muitas vezes os mais pequenos, mas faríamos mal se assimilássemos os Dd apenas aos. pormenores mais limitados. Existem imensos Dd, de contornos raramente abor­dados, muitas vezes arbitrários, que testemunham um modo de pensamento "muito particular, original ou delirante”.

Os «pequenos» Dd

Os «pequenos» Dd, que se referem a pequenas partes do carrão e estão asso­ciados a um determinante de boa qualidade perceptiva, podem assinalar urna abordagem intelectual ou cognitiva meticulosa e minuciosa, inscrevendo-se num registro defensivo de estilo rígido. Mas pode acontecer que o controlo se malogre parcialmente, o que deixa ver as preocupações essenciais do sujeito sob a forma de_ ré torno do recalcado.

Os Dd «arbitrários»

Estes Dd ilustram perfeitamente os movimentos de um pensamento confuso, não socializado, por vezes desintegrado, que aborda o mundo em modalidades.

 

Assim, os Dd, mecanismos perceptivos, podem entrar no registro de defesas rígidas, mesmo obsessivas, quando são sustidos por uma atitude mental escru­pulosa, meticulosa e formalista; pelo contrário, eles podem, como mecanismos pró-ativos se na expressão de um pensamento ilógico, interpretativo, mesmo delirante, expondo então a perda de contato com o real.

As respostas Db!

Designamos assim as respostas referentes às lacunas intermaculares ou extramaculares, em que o sujeito opera uma «inversão/figura/fundo».

Classicamente, recorrendo a Rorschach, interpreta-se esta inversão como relevando de uma atitude de oposição que se manifesta ao nível do modo de apreensão, o que leva não a uma abordagem da mancha em si, mas a uma centração plano que lhe serve de fundo. Consideradas como atitudes de oposição e condutas caracteriais, é provável que esta interpretação tenha en­contrado a sua argumentação no fato de que estas respostas aparecem efeti­vamente nos caracteropatas. Este é um elemento a reter se queremos resolver o paradoxo que emerge da confrontação dos diversos significados dos Db!.

 

 

A centração no Dh! inscreve-se sempre no contexto de uam falta que, embora se situi em registros conflituais diferentes, mantém sempre a tônica na incompletude.

 

 

A repartição dos  modos de apreensão e a análise do seu agrupamento

 

Esta fase, depois da análise dos diferentes grupos dos modos, pode­mos, desde já, fazer o inventário transitório das hipóteses susceptíveis de serem estabelecidas, a partir das configurações quantitativas e qualitativas consti­tuídas pelo agrupamento dos modos de apreensão.de apreensão, é muito importante,

 

Um modo de apreensão definido por uma maioria de G pode abrir as seguin­tes hipóteses:

-   Pode demonstrar grandes capacidades elaboração e de mentalização, ou pelo contrário ser sustentado por uma «preguiça» cognitiva, que consiste em se moldar ao material sem curisodade nem procura.

-   Pode testemunhar um desejo e/ou capacidades de domínio do material, em que nenhum elemento deve escapar à vigilância do sujeito, que vai remodelar o estímulo e impor-lhe a marca do seu pensamento por um controlo ativo, mais ou menos operante, ou, pelo contrário, pode reenviar para uma dependência extrema relativamente ao objeto e evi­denciar uma submissão à compulsão de repetição nas apreensões glo­bais repetidas.

-   No que se refere à imagem de si, o G dominante pode marcar o reconhecimento efetivo da integridade do sujeito e dos objetos, mas também pode remeter para uma fragilidade extrema a este nível, num esforço de globalização a qualquer preço, que não permite o menor recorte, sendo, então, sinônimo de ruptura ou fragmentação.

A presença de numerosos Dd pode ir no sentido de um pensamento origi­nal e subtil, de uma sensibilidade perceptiva fina e modulada ou, pelo contrá­rio, evidenciar urna desinserção em relação ao real, que se manifesta por uma abordagem do mundo arbitrária, ou mesmo delirante.

Neste contexto, pode-se resumir, sendo a autora, os modos de apreensão não constituem apenas fatores signi­ficativos no estudo do funcionamento intelectual. Quaisquer que sejam, evi­denciam modalidades particulares da relação ao mundo dos objetos exter­nos, em estreita correspondência com a relação que o sujeito estabelece com os seus objetos internos. O seu investimento na organização defensiva é funda­mental; a sua qualidade, bem como a sua repartição e o seu aparecimento em cartões específicos, dão informações preciosas, quer sobre o tipo de defesas utilizadas quer sobre a sua eficácia. Enfim, é quase impossível separar a análise dos modos de apreensão da dos outros fatores que os acompanham (determinantes e conteúdos), na medida em que fazem parte integrante do conjunto da resposta.

 

 

OS DETERM NANTES FORMAIS

 

Introdução aos determinantes

Se o assinalamento dos modos de apreensão pode, de certa maneira, depender de uma simples constatação do clínico, porque se trata de situar as localizações das respostas em espaços delimitados, a apreciação do determinante revela-se, de imediato, mais complexa já desde a cotação: os determinantes não se consta­tam mas deduzem-se e exigem um esforço de reflexão que, por vezes, dá lugar a debates apaixonados.

 

Pode-se pensar, porém, que os mecanismos subjacentes às diferentes cota­ções não são necessariamente exclusivos, e que uma análise mais aprofundada revelaria implicações eletivas entre eles. No primeiro exemplo, o elemento descritivo é comum às três respostas citadas: a borboleta é abordada formalmente, o contorno do K é preciso, apesar de original, por fim, a resposta CF é relativa­mente descritiva na equivalência verde = árvore. No segundo exemplo, é o ele­mento projetivo que domina as três respostas, apesar de, aqui também, as cota­ções serem diversificadas: os comentários acrescentados à primeira resposta («cabeça de lobo ou de cão») são: «os olhos, os dentes, n expressão intratável»; a K do cartão III conflitual e carregada de significados agressivas.

 

O que desejamos mostrar é a diversidade dos significados de um mesmo determinante e a proximidade eventual que pode surgir na utilização de meca­nismos cotados de forma diferente. No entanto, é preciso distinguir o trabalho de interpretação que se centra globalmente sobre um fator dado e o estudo das manifestações particulares desse fator no seio do protocolo.

Quando o número de respostas formais é insuficiente e, sobretudo, quando a sua qualidade perceptiva é inadequada, poderíamos evocar uma utilização inoperante da prova da realidade: com efeito, quando a formalização é fraca, ela faz-se acompanhar de uma relação ao real cujos assentos são frágeis, pre­cários e ineficazes para permitirem o apoio das funções adaptativas. O corolário disto é muitas vezes a emergência desenfreada de movimentos pulsioriais, ou o aparecimento de uma fantasmática que marca o insucesso da secundarização e a invasão pelos processos primários. A menos, claro está, que as rédeas não sejam tomadas por outros fatores, o que permite um controlo suficiente e assegura a distinção mínima entre o interior e o exterior.

A delimitação entre dentro e fora aparece na capacidade de figurar um objeto num envelope perceptivo que desempenha um papel de membrana ou de barreira que permite a distinção e a diferenciação entre o sujeito e o seu mundo envolvente.

Este envelope perceptivo aparece no teste de Rorschach noutras respostas para além das respostas formais puras das quais são, no entanto, o protótipo: estas de por oposição a outros fatores que seriam, preferencialmente, portadores da expressão lucinatória do desejo: poder-se-ia, assim, estabelecer, numa perspec­tiva genética, um paralelo entre a instauração do princípio da realidade e o aumento de um controlo formal eficaz com a idade. De fato, os significados em geral atribuídos ao fator F parecem sustentados pelas modificações sofridas pelo aparelho psíquico, ordenados pelo princípio da realidade (que aparece de­pois do princípio do prazer, que começa por ser o único soberano): «Desenvol­vimento das funções conscientes, atenção, julgamento, memória, substituição. Uma da descarga motora por uma ação que visa uma transformação apropriada da realidade, nascimento do pensamento, sendo este definido como uma "atividade de experiência" onde são colocadas pequenas quantidades de investimen­to» (laplanche e pontalis, 1976, pp. 336-339).

 

 

As respostas formais de boa qualidade: F+

Os significados das respostas formais são classicamente dados pela sua quali­dade positiva ou negativa. A este propósito, fazemos mal cm atribuir, dema­siado depressa, um valor diagnóstico a estas F+ ou F-: muitas vezes, os clínicos falam de «boa» ou de «má» resposta, o que trai as precauções ou as promessas da instrução («Não há boa ou má resposta, diga o que lhe vem ao espírito»). Seria desejável demarcarmo-nos desta atitude pseudopedagógica para se poderem analisar as respostas formais na sua dinâmica: esta não segue, única e exclusivamente, os acasos de uma percepção correta ou incorreta dos carrões.

Quando conhecemos os critérios de cotação das respostas formais, tornamo-nos mais modestos e menos exigentes: isto permite evitar difíceis e longas argumentações para decidir se uma resposta F é + ou —, o que poderá, talvez, modificar em 3"A, a percentagem das respostas formais corretas no protoco­lo! No entanto, se a discussão é inútil para uma ou duas respostas, isso não significa de forma alguma que se pode descurar a avaliação das respostas for­mais: de fato, se existe no Rorschach um fator quantitativo de base, que é .' \ praticamente auto-suficiente para permitir apreciar a adaptação perceptiva e 1 f socializante de um sujeito, este é claramente o F+%.

 

Os critérios da resposta F+ são duplos: o F+ corresponde a respostas relati­vamente correntes, dadas por uma população de referência, muito simples­mente pela evidência de um engrama e pela proximidade do conteúdo que ele induz com certas figuras. Usamos um critério estatístico que confere ao F+% o seu estatuto de fator de adaptação e de socialização.

 

As respostas formais de má qualidade: F-

 

Ao contrário do que se pode pensar, o aparecimento de respostas F- é necessário, na medida em que assinala a capacidade do sujeito de se enganar, de talhar, de se perturbar e de diminuir o controlo. Claro que esta afirmação é válida para um número limitado de F-: se estas respostas ultrapassam muito as normas, assinalam, sobretudo, a ineficácia das defesas pela realidade ou a derrapagem ela adaptarão perceptiva, a menos que mostrem uma marginalidade próxima da alienação.

 

Deixaremos de lado os significados deficitários dos F-: a discussão condu­zir-nos-ia para fora dos nossos propósitos, e levaria a privilegiar as interpreta­ções das respostas F- mais como testemunho de um processo) psicótico ou autístico, que arrastam uma deformação global da abordagem do mundo, do que como sinal de um pensamento débil.

No entanto, muitas respostas F- mantêm jjjzunho da desadaptação ou da inadaptação ao mundo real, ao mostrarem uma abordagem não socializada, mesmo desintegrada do material. As psicoses da infância mal cicatrizadas traduzem-se bem no Rorschach pelo predomínio de respostas F-, que são, apa­rentemente, pouco carregadas de significados projectivos, mas assinalam, contudo, o desvio, as falhas profundas na relação ao real.

Esta desinserção pode aparecer igualmente nos protocolos de adolescentes, ou de jovens adultos ameaçados de descompensacão psicótica: para além de uma crise de originalidade eventualmente transitória, as falhas perceptivas sublinham o desinvestirnento da realidade. Estas respostas F- estão, muitas vezes, associadas a recortes raros, mesmo arbitrários, com freqüência difíceis de encontrar pelo clínico: todos estes sinais se juntam para provar a desorganização de um pensamento desviante, que perde os seus alicerces lógicos e se deteriora face ao estímulo externo.

 

As respostas F- não são, no entanto, sempre e só o sinal ou o sintoma de uma falta de ancoragem ou de uma desinserção do real. Elas aparecem nas produções que não põem em causa as capacidades adaptativas do sujeito:

As respostas F±

Estas respostas caracterizam, quer os engramas de conteúdos pouco definidos quer as oscilações do sujeito e as suas hesitações entre duas ou mais imagens. Em nenhum caso, a cotação F± pode traduzir a incerteza do clínico quanto à qualidades más ou menos correta do percepto.

 

-   Por isso mesmo, das mostram o seu caráter adaptativo, traduzido na
percentagem de respostas formais corretas (F+%) que constitui um fator de socialização não negligenciável. As talhas de inserção socializante
no real traduzem-se pelo abaixamento desta percentagem. F+% possui
um valor diagnóstico intrínseco: permite, quando é válido, apreciar a
qualidade da relação do sujeito com o real, o que necessita ser medido,
tanto quanto possível, sem erro.

-   As respostas formais revelam condutas de controlo da realidade externa
percebida «objetivamente», por um lado, e da realidade interna cujas
manifestações são reduzidas, por outro. A qualidade das respostas for­
mais depende a eficácia destas condutas de controlo: quando os engramas
são percebidos corretamente, a defesa e esténica é operante; quando os
engramas são demasiadas vezes mal percebidos, o insucesso da defesa é
flagrante,

Por fim, ao nível mais fundamental, a qualidade das respostas formais
demonstra a aptidão de um sujeito para dar às coisas um contorno que
estabelece fronteiras estáveis entre o dentro e o fora: qualquer forma se
destaca sobre um fundo; a resposta formal denota a capacidade do sujeito
em circunscrever o objeto, diferenciando-o do cenário no qual se ins­creve. Se o sujeito pode distinguir a forma e o fundo, o interno e o externo pode também integrar a diferença entre o real e o imaginário. As (pF+% que integra as respostas F±) não dá lugar às mesmas interpreta­ções, quando a sua oscilação é devida à presença numerosa de F- ou a uma
proporção maioritária de F±. As respostas F± podem assinalar um pensamento
vago que não encontra os seus limites, que deixa a realidade exterior escapar a
qualquer circunscrição precisa: podem também mecanismo da ordem da duvida, das hesitações à implicação que suscita a tornada de decisão. Claro que estas duas perspectivas orientam a interpretação em sentidos diferentes: na primeira conjuntura, pode tratar-se de perturbações na abordagem do mundo, em indivíduos que delimitam malas fronteiras entre os objetos do seu meio e eles mesmos; no segundo caso, trata-se mais de um modo de funcionamento do tipo obsessivo invalidante, é claro, mas que não põe em causa os assentos da relação com o real1.

 

 

OS DETERMINANTES CINESTÉSICOS

De acordo com a autora, há três critérios que definem a cinestesia humana: um critério formal, que caracteriza os limites do recorte perceptivo e cuja qualidade é para ser testada:
um critério de conteúdo, porque se trata da representação humana, sendo
necessária a imagem do corpo inteiro para que esta cotação seja possível; um
critério de projeção, dado que a evocação de um movimento atribuído à imagem humana constitui a condição da avaliação. A análise de qualquer resposta cinestésica implica o estudo destas três dimensões; a sua interpretação torna-se complexa pelas suas diferentes orien­tações e pela interação dos significados que as sustém.

 

O elemento formal da cinestesia

O elemento formal da cinestesia revela uma conduta ligada ao reconhecimen­to de uma imagem que deve responder às exigências da adequação perceptiva: encontramos aqui as mesmas necessidades adaptativas evocadas no parágrafo precedente; neste sentido, analisamos sistematicamente a qualidade formal das respostas cinestésicas quando se estuda a relação real do sujeito. Nalguns casos, um F+% deficitário relativamente às normas será completado e enri­quecido pela presença de numerosas cinestesias de enquadramento formal ade­quado. A análise formal das cinestesias dá informações suplementares na medida em que elas se definem pela projeção de um movimento que não _existe no material. De cada vez que uma cinestesia é sustentada pó um percepto de boa qualidade, organiza-se um compromisso harmonioso entre percepção e projecção, dado que o contributo projetivo da resposta não condenou ao insucesso seu valor adaptativo; há então uma balança em equilíbrio entre os mecanismos perceptivos e a expressão do imaginário.

A cinestesia condensa de alguma maneira as atitudes solicitadas pela instrução. Neste caso, a articulação perceptivo-projectiva é fortemente mobili­zada, na medida que a criação de movimentos se lixa num engrama formal que serve de suporte material a uma produção imaginária. O reconhecimento adequado de uma imagem perceptiva constitui a garantia de uma inserção na realidade, que autoriza, sem deformação excessiva ou delirante, a abertura à ilusão necessária a qualquer conduta criativa. Ela sublinha, por isso mesmo, a diferenciação eletiva entre mundo interno e mundo externo. Nesta perspec­tiva, as respostas cinestésicas constituem o protótipo mesmo do produto tran­sitivo: o paradoxo e levado ao extremo, na dupla pertença das imagens à rea­lidade perceptiva e à ilusão.

 

O elemento projectivo da cinestesia

Para que uma resposta cinestésica seja identificada como tal, é preciso que ela releve da projeção de um movimento que não está representado no cartão: é, portanto o sujeito que traz essa dimensão dinâmica à percepção. rorschach diferenciava dois tipos de condutas psíquicas: alguns sujeitos remodelam o

 

material, dando-lhe a marca da sua subjetividade e modificando-o outros, deixam-se influenciai pelo estimulo, sofrem o seu impacte e submetem-se às suas incitações. Segundo este amor, o primeiro modo define o funcionamento com dominante K e o segundo modo define o funcionamento com dominante C. K preciso, talvez, modular este ponto de vista: os indivíduos «anestésicos» podem também ser extremamente sensíveis aos estímulos externos, mas rea­gem a eles através de um reforço defensivo que consiste, aparentemente, em tomar uma certa distância lace a estas solicitações, para melhor as dominar.

 

O contributo das cinestesias para o funcionamento cognitivo

Corno índice de mentalização e sinal do recurso ao imaginário, as cinestesias
vem enriquecer o funcionamento cognitivo, ao dinamizarem as percepções e
ao organizarem as localizações, o que dá à adaptação a espessura do pensa­
mento e da reflexão. As cinestesias são o testemunho de urna atividade mental, que procede por operações complexas para organizar os dados perceptivos
da tarefa, ilustrando bem, neste contexto, a hipótese fundamental de Rorschach
que relembrávamos há pouco. As cinestesias afirmam, sobretudo, as potencialidades criativas de um sujeito, na sua aptidão para usar a inteligência em
termos hipotéticos, sem se contentar, ou submeter à constatação perceptiva.
Uma dimensão de uma outra ordem caracteriza as produções cinestésicas, na
liberdade adquirida pela exploração das capacidades de interiorização do sujeito.

 

Então, para o sujeito, não se trata apenas de recorrer ao imaginário, mas de se situação que permite desprender-se das contingências concretas: ele é capaz de raciocinar em termos hipotéticos, ele pode refletir, «re-presentar-se» imagens, construir seqüências dinâmicas que se ordenam durante a aplicação, no entanto, as modificações sucessivas imprimidas ao estímulo não o fazem perder a conti­nuidade do substrato perceptivo. É por isto, sem dúvida, que as cinestesias foram interpretadas como sinal de «capacidades de deslocar, possibilidade de diferir a ação»: através delas, a descarga não arrasta o agir, mas elabora-se através de uma imagem motora, isto é, graças a um jogo intenorizado.

Se a cinestesia fosse apenas um fator intelectual só apareceria, geneticamen­te, no estádio da reversibilidade e das operações hipotético-dedutivas, definido por Piaget. Mas a dimensão cognitiva da cinestesia apoia-se na atividade ima­ginária, que é muito mais precoce, dado que é contemporânea da capacidade de jogar (o play de Winnicott) que se aparenta aos fenômenos transitivos.

Este fator lúdico está presente no contributo da cinestesia para o funcio­namento intelectual, porque ela usa o possível, a ilusão e a fantasia, descurando, por um lado e transitoriamente, as exigências redutoras, por vezes, da adequa­ção conformista.

 

A cinestesia não é conseqüência, apenas, de um processo de pensamento abstrato, que ofereceria ao sujeito a possibilidade de se desligar do contorno formal da imagem, para deslocar mentalmente as suas emoções e alimentar o raciocínio com as energias agressivas ou libidinais, isoladas das suas represen­tações. O apelo à identificação é demasiado latente para que as associações fantasmáticas e conflituais não sejam mobilizadas neste caso. Algumas cinestesia Trè'ãIízãrn"eltã tendência para a abstração, ao desligarem as moções pulsionais: a essência da cinestesia está guardada nas evocações de movimento separadas de qualquer suporte formal ou concreto (cotam-se: «impressões K»):

 

A carga pulsional é apreciada a partir da representação evocada em ter­mos mais ou menos crus, mais ou menos modelados: o clínico fica mais satis­feito com pequenas quantidades agressivas ou libidinais, que não provocam a invasão, mas é preciso tomar cuidado com as ratoeiras defensivas e, com as maquilhagens que mascaram a violência de algumas reações internas perigosas-" sãs pela sua massividade, e, por isso mesmo, fortemente reprimidas." O discurso do sujeito deve ser descodificado para que sejam evidenciados os arranjos defensivos em termos de denegação, recalcamento, formação rea­tiva, evitamento, clivagem, recusa...

 

DISCUSSÃO TEÓRICA

O carácter por vezes contraditório dos significados dados às respostas cinestésicas remetem, sem dúvida, para nós, para um problema teórico que se refere ao conceito do Ego, à sua evolução e às suas diversas acepções no seio da psicanálise.

 

Do ponto de vista tópico. o Ego está numa relação de dependência, quer quanto às reivindicações do Id, quer quanto aos imperativos do Superego e às exigências da realidade» (Ibid., p. 241). Deste ponto de vista, as respostas K são testemunho do acordar das noções pulsionais, da necessidade de conciliação com a «censura», que pesa na sua expres­são livre, e, ao mesmo tempo, da obrigação de ter em conta a realidade na sua materialidade perceptiva.

Do ponto de vista dinâmico, o Ego representa eminentemente o pólo. defensivo da personalidade no conflito neurótico» (Jbid.). Sublinhamos ainda a ação de mecanismos de defesa que transparece através dos K: isolamento, denegação, formação reativa, recalcamento, listes são exi­bidos nas encenações relacionais ou narcísicas e presidem à elaboração das imagens. Os significados acordados aos K, no que se refere aos arranjos dos conflitos, remetem, muito provavelmente, para as funções defensivas do Ego.

- Do ponto de vista econômico, o Ego surge como um fator de ligação dos processos psíquicos, mas, nas operações defensivas, as tentativas de liga­ção da energia pulsional são contaminadas pelas características que especi­ficam o processo primário: assumem um aspecto compulsivo, repetitivo, desreal» (Ibid.). Nós já assinalamos a dimensão econômica das anestesias e a sua incidência, positiva ou negativa, na elaboração dos conflitos.

 

Por outro lado, os aspectos contraditórios do Ego, tais como «desconheci­mento, racionalização e defesa compulsiva contra as reivindicações pulsio­nais» (Ibid.), encontram igualmente a sua tradução nas anestesias, cuja racionalidade é duvidosa.

Por fim, a analogia entre as funções do Ego e aparelho perceptivo e protetor do organismo utilizado por Freud, de que deriva a concepção do aparelho psíquico como resultante das funções corporais, é ilustrada no suporte espa­cial de configuração corporal das cinestesias. «O Ego é, antes de mais, um Ego corporal, não é apenas um ser de superfície, mas é, ele próprio, a projecção de uma superfície.» «O Ego deriva, em última análise, de sensações corporais, principalmente daquelas que nascem da superfície do corpo. Assim, ele pode ser considerado como uma projecção mental da superfície do corpo, a par do fato de representar a superfície do aparelho mental.» (S. freud, 1923.)

 

PROCEDIMENTO DA ANÁLISE CLÍNICA

Quando estudamos as cinestesias, é necessário situar a resposta no seu contexto: a simples análise da resposta cinestésica nem sempre se presta a uma inter­pretação pertinente; é importante reconhecer o estilo do sujeito, e anotar as v preocupações que usa, ou não, para se exprimírJAssim, a mesma imagem de relação agressiva, por exemplo, não terá o mesmo sentido se for dada abrupta­mente, sem arranjos, ou se for precedida ou seguida de sinais de ansiedade, de precauções verbais, de aumento de tempo de latência e de presença de reações
sensoriais (E, C'), que são todos elementos que põem em evidência o mal-estar,
mesmo uma certa culpabilidade em deixar escapar movimentos pulsionais,
num conjunto eme: evidencia o conflito intrapsíquico.

A elaboração dos conflitos através das cinestesias

Quando as moções pulsionais estão integradas numa representação de relação estável, as cinestesias traduzem as capacidades do sujeito para elaborar os conflitos. Neste sentido, a cinestesia torna-se o elemento significativo dos mo­dos de funcionamento «normais» de tipo neurótico. Os protagonistas são di­ferenciados e as quantidades de energia mobilizadas são mais ou menos fortes; pode haver perturbação, incômodo, inquietação, mas não há desorganização essencial, nem retoma defensiva ou projectiva sem desorganização repetitiva. Nestes contextos, os K tomam significados de interiorização, de capaci­dade de metabolização, de aptidão para diferir.

Os significados interpretativos, mesmo delirantes, das respostas K

Segundo a autora, o peso da projeção pode tornar-se muito importante nas respostas cinestésicas e dar às produções um caráter arbitrário, desligadas do real, interpretativas, ou até delirantes; o caráter patológico dos mecanismos projectivos pode ser denunciado por uma apreciação que remete para uma operação de ponde­ração: algumas respostas muito carregadas, ou numerosas pequenas figuras de estilo, permitem modular a interpretação das respostas K no sentido de uma subjectividade bastante deformante e de uma tendência desmesurada para se afastar da realidade.

O retraimento no imaginário

Um grande número de respostas K pode apenas assinalar um recurso impor­tante ao imaginário, num retraimento sobre si mesmo que desdenha as trivia­lidades do meio, ou recusa a dependência dos afetos. Nada há de deli­rante nas condutas desta natureza, mas há sim uma tendência para a reverie para o domínio da ilusão e da reflexão solipsista. O sobreinvestimento da interioridade à custa da apetência objetai aparece, por exemplo, aos ado­lescentes ascetas e constitui um refúgio transitório para evitar as feridas da desilusão. No entanto, é preciso estar atento à emergência insidiosa de elemen­tos concomitantes, índices por vezes subtis que traduzem a tentação de desin­vestimentos objetais e de um retraimento narcísico que corre o risco de vir a adquirir conotações autísticas

As anestesias interpretativas

As anestesias interpretativas são de uma outra fatura: não se trata mais de privilegiar as colorações imaginárias relativamente às diversas tonalidades da realidade, mas de tomar como reais as produções mais individuais. Nas cinestesias interpretativas perde-se exatamente a consciência de interpretar: o sujeito toma como objetivo o que é propriamente subjetivo, ou atribui ao material, ao seu autor e ao clínico (muitas vezes confundidos) as representa­ções ou as impressões nele suscitadas. Assim, os mecanismos paranóicos pas­sam através das respostas cinestésicas: estas aparecem com freqüência num segundo tempo, em tendências, depois de uma utilização rígida que marca a vigilância e a desconfiança do sujeito. A projecção torna-se, então, mais forte, drenando das modulações interpretativas muitas vezes persecutórias.

A identificação projectiva

Os mecanismos de identificação projectiva dão conta de uma força mais im­portante, que não consiste apenas em atribuir às imagens humanas, veiculadas pelas respostas cinestésicas, algumas características do próprio.

 

Provoca angústias como as de ficar prisioneiro e de ser perseguido no interior do corpo materno. Trata-se, por­tanto, da expulsão para o exterior daquilo que o sujeito recusa em si, são projeções das suas partes más.

Assim, a autora ressalva que as cinestesias que traduz este tipo de mecanismo evidenciam a abolição da distância entre sujeito e objeto: já não encontramos a manutenção de um objeto exterior ao sujeito, perseguidor é verdade, mas mantido à distância.

 

Estas cinestesias são sustentadas por engramas formais de má qualidade: a compulsão para repetir as mesmas cenas agressivas, a dificuldade em definir imagens delimitadas por um contorno que as separa do seu contexto, a emer­gência de uma temática de devoração e de prisão e a angústia de ser aspirado pelo outro, numa relação com o material que sublinha a perda de distância; são estes alguns dos elementos que caracterizam este tipo de funcionamento, que permite pô-lo em evidência.

 

 

As cinestesias delirantes

Por fim, as cinestesias delirantes são construídas sobre o arbitrário e o ilógico, e nelas está patente a perda de contacto com a realidade. Os cenários fantasmáticos ostentam-se cruamente e sem artifício defensivo, em constru­ções por vezes fascinantes, mas loucas e desenfreadas, com freqüência em res­sonância violenta e explosiva com o conteúdo latente do material nas associa­ções megalômanas ou mortíferas que se abrem em visões de cataclismo mórbidas. No entanto, não se pode descurar a sua dimensão construtiva, em que a proliferação projectiva permite lutar contra a angústia de fragmentação ou de aniquilamento. As cinestesias claramente delirantes são raras, na medi­da em que a aplicação do Rorschach é desaconselhada nos períodos agudos; mas Acontece, em contextos clínicos mais discretos, que as cinestesias mos­trem uma vivência delirante que se desenvolve sem dar nas vistas e que emerge em respostas mal organizadas, cujas conotações persecutórias, megalômanas ou melancólicas são evidentes.

 

 

Os processos de identificação através das respostas cinestésicas

 

O duplo movimento que se articula na identificação e na relação com o outro aparece nas cineste­sias sob a forma de uma condensação máxima: as cinestesias mais correntes são dadas nos cartões construídos em configurações bilaterais que marcam a orientação relacional e identificatório das representações humanas; as cines­tesias solitárias que aparecem noutros cartões, em particular nos cartões com­pactos, são, na aparência, preferencialmente focadas na imagem de si, por­que, na verdade, se trata sempre de um recurso e, portanto, de uma relação com um modelo. H, de fato, muito difícil determinar se uma dada imagem humana associada se refere ao sujeito ou à imagem parental, f) problema é o da constituição da imagem de si que se desenvolve através de uma série de identificações sucessivas.

São usados diferentes tipos de interação, sucessivamente caracterizados por modalidades particulares, que a teoria psicanalítica descreveu em termos de desenvolvimento libidinal: em que medida as cinestesias refletem essas particularidades? Em que medida traduzem as representações de relações e as imagens identificatórias de um sujeito? É a questões como estas que só podemos responder empiricamente, triunfando a lei da clínica. O conceito de identificação permanece central, tanto em psicologia como em psicanálise: o reconhecimento de uma imagem humana em certas configurações do teste de Rorschach exprime a capacidade de um sujeito em se identificar com a sua espécie: a atribuição de um certo número de qualidades específicas a esta imagem genérica releva da assimilação, por esse mesmo sujeito, de alguns traços (sexuais, afetivos, comportamentais, psicológicos...), assimilação que o transforma parcialmente em referência a determinados modelos.

Neste sentido, a nossa análise das cinestesias, que se refere às imagens traduzidas por um discurso verbal, prende-se, essencialmente, com as repre­sentações que pertencem ao sistema mental do sujeito, e que nunca devem ser confundidas com a sua realidade ou a dos seus pais, por exemplo.

Os processos de identificação sexual

Quando a identidade do sujeito está assegurada, põe-se a questão da sua iden­tificação a um modelo sexuado. Aparecem, então, várias possibilidades atra­vés das cinestesias.

Quando a identificação sexual é relativamente estável e harmoniosa, as representações humanas são qualificadas claramente em termos masculinos e femininos. A referência à noção de bissexualidade psíquica é necessária, se queremos perceber bem a dialética identificatória através do Rorschach: esta aparece claramente na capacidade de o sujeito dar representações humanas masculinas e femininas, em que a polaridade dominante é acordada à sua iden­tidade sexual real. A flexibilidade das tomadas de posição, a facilidade em identificar as personagens, a coerência entre a identidade sexual atribuída e as condutas projetadas aliam-se, claro está, ao manejo de pequenas quantidades de energia libidinal e/ou agressiva. Por outro lado, aparece a concordância entre as respostas cinestésicas e a sensibilidade à simbólica sexual dos cartões, bem como a abertura a outros conteúdos, para além dos humanos, cujo cará­ter significante é evidente e mostra a dupla orientação masculino/feminino.

Quando as identificações sexuais são conflituais, o que é infinitamente mais corrente, a apreensão das cinestesias é mais delicada: o confronto com as representações humanas está carregado de ansiedade, de hesitações e de evitamento. Neste caso, pode acontecer que as personagens não sejam identificadas sexualmente (pessoas, alguém, indivíduos...), esquivando-se o sujeito, cuida­dosamente, a qualquer tornada de posição; noutros casos, a oscilação é per­manente, a atenção é centrada sucessivamente nos atributos masculinos ou femininos, e o acento é posto na hesitação, na alternância entre as condutas ativas, esténicas, potentes ou passivas, receptivas e frágeis.

 

Em geral, o sujeito fica imobilizado entre representações opostas, diferenciadas no exagero, como se nenhuma modulação pudesse ser introduzida na compreensão das funções e dos papéis sexuais. Claro que este tipo de problemática, manifesta nas cinestesias, se acompanha de evocações de relações mais difíceis, que mobili­zam grandes quantidades de energia e necessitam da ação de mecanismos de defesa que vem, por vezes, perturbar o funcionamento associativo, em parti­cular pela intensidade do recalcamento. A bissexualidade psíquica é obstruída na sua expressão libertadora, por causa de uma fantasmatização inquietante: os cartões com simbólica sexual são geradores de angústia, que arrastam o bloqueio ou a abundância produtiva, sendo uma única posição investida em detrimento da outra, sem possibilidades de oscilações ou de flexibilidade.

As cinestesias menores

Chamam-se cinestesias menores as respostas animais, ou objetos, ou ainda as imagens humanas parcialmente apreendidas, nas quais o percepto se acompa­nha de uma atribuição de movimento.

O qualificativo «menores» não deveria induzir em erro; ao contrário do que se poderia crer, as cinestesias «menores» têm muitas vezes um peso projectivo extremamente importante

 

Podemos dizer das cinestesias menores que elas representariam as tendên­cias escondidas do sujeito e se elas pertencem ao mundo das sombras que encobrem o latente, o implícito, e, portanto a referência inconsciente, impõe-se ainda mais o seu estudo apurado.

As cinestesias animais

As respostas kan, entendidas no sentido clássico, remetem para o deslocamento dos movimentos pulsionais para imagens animais. A sua dimensão agressiva e/ou libidinal pode ser destacada com facilidade e deve ser dada uma atenção particular às quantidades de energia mobilizadas:

 

Desejamos insistir, por fim e rapidamente, num aspecto das respostas kan que nos parece particularmente interessante: estamos a falar das projeções de afetos que se encontram com relativa freqüência nas respostas kan, ainda que elas sejam mais raras nas outras respostas cinestésicas. Esta especificidade das respostas kan releva de uma associação da representação e do afeto, cuja incidência dinâmica e econômica é patente: a sua espontaneidade, uma espécie de manifestação repentina e direta que as caracteriza, enfim, a sua autentici­dade releva, por vezes, de capacidades, transitórias talvez, mas presentes em todos os casos, de insighit e de reconhecimento de estados afetivos particulares. O deslocamento para conteúdos animais desempenha um papel defensivo e pro­tetor que limita a perda de distância em relação ao material. A representação animal serve, ao mesmo tempo, de mediador e de lugar de expressão de afectos que, atribuídos a personagens humanos, tomariam de imediato uma cono­tação sensitiva. A verbalização do sofrimento alivia o sujeito, permitindo-lhe identificar-se ao abrigo de uma implicação demasiado forte. Na maior parte dos casos, trata-se de afetos depressivos em que domina a valência abandónica; a depressão parece difícil de elaborar e o modo relacional estabelece-se sob uma forma analítica. Isto leva a compreender a freqüência deste tipo de produ­ções nos adolescentes em crise aguda, ou nas personalidades estados-limites:

As cirtestesias de objecto (kob)

As cinestesias de objeto são menos difíceis de interpretar, na medida em que os seus significados não são tão sutis. O critério de cotação das respostas kob é claro e estável: é necessário e suficiente que o movimento seja projetado num conteúdo objeto, que este movimento seja forte e que emane do interior desse objeto, sendo esta última condição importante. Em linguagem corrente diz-se que as respostas kob «vêm de dentro». E sem dúvida esta referência a uma fonte interna que autorizou a correspondência entre respostas kob e pulsões; se retomarmos a definição que resume o alcance deste conceito, retém-se a noção de um «processo dinâmico que consiste num impulso (carga energéti­ca, fator de motricidade) que faz o organismo dirigir-se para um alvo. Segun­do Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo é suprimir o estado de tensão que reina na sua fonte pulsional; é no objeto, ou graças a ele, que a pulsão pode atingir o seu alvo» (laplanche e pontalis, op. cit., p. 359).

 

Voltamos a encontrar, no entanto, nos conteúdos associados à kob, o dua­lismo pulsões de vida/pulsões de morte, sendo mais explorada a dimensão agressiva/destrutiva. Tem isto muito a haver, pelo menos em aparência, com manifestações de pulsões parciais que remetem para o investimento de zonas erógenas específicas: disso dão conta as temáticas anal ou fálica, através de imagens significativas. Podemos compreender o aumento de produções deste tipo na adolescência, como significativo do desequilíbrio pulsional introduzido pelos rearranjos pubertários, antes de a organização genital se tornar preponderante. A análise das respostas kob neste período da vida é importan­te: é preciso estar atento ao seu caráter sexual, manifesto através de imagens simbólicas, ou a sua valência destrutiva, que põe em causa a integridade psí­quica ou corporal e provoca uma degradação pouco reversível na qualidade das produções.

 

 

As pequenas cinestesias (kp)

As pequenas anestesias são raras e a sua ausência total num protocolo é habi­tual. A sua cotação torna-se complexa, pela diversidade de respostas às quais se aplica: em comum tem a referência obrigatória a urna representação humana. Anotar-se-ão kp as projeções de movimentos em imagens humanas par­ciais, ou projeções de movimentos mínimos em imagens humanas inteiras, mas implicadas apenas parcialmente nas ações projetivas: gestos, mímicas, esbo­ços de movimentos, expressões de fisionomias, movimentos imperceptíveis...

Assim, as respostas kp são muitas vezes dadas em localizações raras: a associação Dd kp é freqüente e denota quase sempre tendências interpretativas.

 

 

As respostas cor a dimensão perceptivo-sensorial das respostas cor

As cores existem como realidade material e objetiva nos cartões do teste de Rorschach, ainda que as atividades que lhe estão por vezes associadas delas não constituam um fundamento. A intervenção da cor na determinação da resposta emana, então e antes de mais, do ter em consideração as característi­cas da realidade exterior. Se concebemos esta realidade como susceptível de despertar no sujeito uma certa excitação, perceptivo-sensorial num primeiro tempo, então as estimulações cromáticas terão uma função excitante cuja inten­sidade poderá variar segundo os indivíduos.

 

Esta categoria de respostas cor engloba muitas vezes as respostas FC, durante muito tempo consideradas como significativas de um justo equilíbrio entre controlo e deixar-ir. As respostas FC perderam um pouco a sua harmo­niosa reputação desde que Rorschach sublinhou os seus aspectos de formação reativa, de conformismo e de submissão passiva aos estereótipos adaptativos. A centração perceptiva de tais respostas transparece já na cotação; à parte as excepções que, como todos sabem, confirmam a regra, os conteúdos referem-se, em geral, mais a um mundo concreto e social do que na subjetividade emocional e fantasmática do indivíduo.

Algumas respostas CF são do mesmo estilo: a fragilidade da referência for­mal provém, não só de uma baixa do controlo no sujeito, mas de um estímulo menos claramente circunscrito, ao qual ele se submete passivamente. Submis­são aparente apenas, porque, como qualquer conduta «perceptiva», esta utili­zação da cor é comandada pelas forças defensivas que têm tendência a minimi­zar ou a negar o impacte emocional ou fantasmático do material.

 

Em qualquer caso, o que podemos dizer é que a presença de respostas que utilizam a cor testemunha uma sensibilidade mínima à realidade exterior. Esta pode ser vivida num ambiente agradável ou desagradável, prestando-se, ou não, a associações em ressonância com o estímulo, ou então provocando uma desorganização que põe a nu a fragilidade das barreiras de proteção que sal­vaguardam o Ego do sujeito.

 

As respostas mórbidas remetem para o interior do corpo humano, isto é, para as respostas anatômicas ou as representações humanas truncadas, assim corno para os fantasmas de fragmentação, que surgem em ligação com a cor, e que mostram que as fronteiras entre o Ku e o não -Fu desaparecem qualido ns estimulações externas se tornam demasiado excitantes. O que os indivíduos psicóticos nos ensinam, então, é que eles não são capazes de utilizar a cor como mediação, superfície de encontro entre o dentro e o fora. A realidade externa aparece danificada, em conseqüência da insuficiência deste casulo que deveria envolver a realidade psíquica do sujeito. Através da fragilidade do envelope expõe-se um dentro estilhaçado e incoerente, sem unidade, sem núcleo organizador.

 

A especificidade deste tipo de respostas ia delas um sinal patognomônico da psicose. Podemos pensar que a super-reatividade às cores, e, portanto ao meio, está ligada à insuficiência das funções de pára-excitação. A membrana que limita não se pode constituir nas trocas precoces, nem fornecer apoio para a construção de referências internas e externas sólidas e estáveis. A confusão entre sujeito e objeto e entre dentro e fora estabelece a identidade entre o estímulo externo, fragmentado em manchas coloridas, e a representação psí­quica que se ordena, sobre este modelo, no caos e na dispersão. Ao mesmo tempo, os conteúdos associados expõem a acuidade ^e_unij>ofnmento «inima­ginável»: membros separados, vísceras ensanguentadas, rasgões, estilhaços, explosões mortíferas, espetáculos desvairados e horríveis que surgem quando aparece a cor, no sítio em que alguns se apaziguam na frescura de paisagens idílicas ou se aquecem no clarão dos braseiros inflamados pelos seus fantas­mas libidinais!

 

Os significados afectivos cias cores

Mais do que sentimentos propriamente ditos, as respostas cor podem dar conta do clima afetivo em que o sujeito se encontra, quando é confrontado com as reativações fantasmáticas e emocionais suscitadas pelos cartões.

 

Os modos de funcionamento que privilegiam a sensorialidade evidenciam, muitas vezes, uma flexibilidade que toca a maleabilidade na oscilação das res­postas, em função das mudanças do dado a sugestibilidade e a permeabilidade estão-lhe associadas numa espécie de deixar-ir doravante clássico. Mas será preciso diferenciar uma labilidade que dispõe dos mecanismos de defesa de tipo neurótico, em particular o recalcamento que se manifesta, efetivamente, por uma elevação de respostas cor, de uma labilidade extrema, tipificada pelas linhas de sombreado, as associações sem nexo ou por contigüidade, a excitação jovial que sustém a hipomania, ou mesmo um esta­do maníaco que se acompanham igualmente de numerosas respostas cor.

Por fim, é bastante difícil perceber a equivalência cores-afetos, na medida em que nos podemos interrogar sempre sobre o caráter «afetivo» das res­postas cor; o paradoxo é ampliado pelo fato de a sensibilidade às cores se traduzir em termos de prazer ou de desprazer, freqüentemente nos comentá­rios e não nas próprias respostas.

 

Poderíamos atribuir à incitação regressiva do teste de Rorschach o caráter primário dos afetos expressos: prazer-desprazer, ou, o que é o mesmo, tristeza-alegria. O termo «primário» não deve ser considerado aqui num sentido pejorativo; o que queremos dizer é que o Rorschach apela a mecanismos de funcionamento e ao ressurgimento de vivências muito fundamentais: que os afetos aí se manifestem, em referência aos sentimentos primordiais de prazer-desprazer que suportam os dois princípios do funcionamento mental, não deve surpreender-nos; saibamos apenas que a afetividade, nas suas manifes­tações mais sofisticadas, pode aí ser apreendida muito mais dificilmente.

A Sensibilidade depressiva e areíssea ao cinzento e ao branco

A sensibilidade ao cinzento nos cartões onde se apresenta (respostas cotadas PC', CT e C") é muitas vezes testemunho, pelo menos, de um humor depressi­vo, de inquietude e de ansiedade difusa. Os conteúdos associados não corro­boram logo esta interpretação: a atenção dada aos C' assinala apenas a pre­sença de um sentimento, ou mesmo de uma impressão disfórica muito próxima, mas que não pode traduzir-se em imagens ou em representações significativas. E, por vezes, num segundo tempo que a evocação se torna francamente ansiogénica ou inquietante.

 

 

As respostas esbatimento

 

Distinguimos, com efeito, três categorias de esbatimento: os esbatimentos de textura, os esbatimentos de difusão e os esbatimentos de perspectiva. São os conteúdos que os acompanham que permitem classificá-los numa ou noutra categoria.

Os esbatimentos de textura caracterizam, como o nome indica, a sensibili­dade táctil, referem-se ao tocar. O exemplo mais freqüente deste tipo é o da resposta «pele de animal», com a condição de ser argumentada pela atenção dada ao matiz da cor, «casaco de peles», entre outras.

 

Os esbatimentos de difusão são constituídos por engramas de contornos pouco definidos, do tipo «nuvens» e «espirais de fumo» que preenchem sempre a condição de serem argumentados pelos matizes e pelo esbatido dos tons.

 

Por fim, os abatimentos de perspectiva são construídos segundo três dimen­sões, em que o esbatimento dos tons é explorado enquanto definidor de dife­rentes planos no espaço, por exemplo: «um passeio arborizado com árvores e um castelo ao fundo».

Se os dois primeiros tipos são, por vezes, próximos, na medida em que a «difusão» está com freqüência intrincada na consistência, a similitude desapa­rece quando se trata da perspectiva: a dimensão comum aparece, no entanto, na interpretação que lhe é proposta.

 

 

Os esbatimentos de textura

A referência ao tocar implica, de imediato, a reativação de uma sensibilidade primária muito precoce: o tocar e o ser tocado reenviam-nos aos cuidados da primeira infância, às carícias maternas e às manipulações do corpo do laten­te. Não nos admiramos, portanto, que a interpretação clássica confira aos conteúdos associados aos esbatimentos, por vezes angustiantes (por exemplo, «lama» ou «visco»): nestes casos, a ausência de E está ligada ao caráter peno­so das reativações que suscitam, que podem, por certo, entrar num quadro patológico, sem que isso seja obrigatório. A ansiedade, o sofrimento e os afe­tos dolorosos não são o único apanágio dos doentes mentais.

 

Os esbatimentos de textura reterem-se a uma procura de apoio, de um conti­nente, de um envelope que viria obturar os tumultos de estimulações sentidas com muita acuidade. Os esbatimentos são explorados como matizes mais do­ces e acolchoadas, proteção contra a estridente realidade externa.

 

Quaisquer que sejam as modalidades de expressão, os esbatimentos de tex­tura remetem para as necessidades fundamentais de que põem em evidência a existência nua, insatisfeita, carenciada ou, pelo contrário, o valor restaurador que permite a satisfação do desejo, o apagamento da inquietação, a acalmaria da angústia.

Os esbatimentos de difusão

São menos homogéneos que os precedentes e é necessário distinguir os seus significados defensivos das suas implicações projectivas.

A utilização do esbatimento de difusão tem um valor defensivo no avançar de respostas vagas que desempenham um papel de ecrã relativamente às emer­gências fantasmáticas e participam, assim, em mecanismos de recalcamento.

 

O afastamento da associação sexual aparece, primeiro, na denegação, refor­çada pela resposta esbatimento que mascara ainda mais a representação recal­cada, deixando, no fim, dificilmente emergir o afeto (o incômodo).

As incidências projetivas dos esbatimentos de difusão emergem da desco­berta de uma certa fragilidade da identidade: esta se traduz pela apetência por imagens vagas, evanescentes, instáveis, efêmeras; acentua-se a diluição, a deser­ção de referências estáveis, o aspecto desfiado do envelope. A ausência de consistência que caracteriza tais associações assinala a friabilidade dos assentos narcísicos e da fraqueza do Ego nos sujeitos que não podem construir-se em torno de um núcleo sólido.

Os esbatimentos de perspectiva

São mais raros mas também estão relacionados com o narcisismo. Se procura­mos os prolongamentos da interpretação inicial proposta por Rorschach, acentuaremos a falta de segurança, as carências de auto-estima que motivam essas construções. O desvio está neles presente, ao conferir-lhes uma figuração es­pecial e coisifica a diferença entre as aspirações do sujeito e a sua posição efetiva, que deprecia e desvaloriza aos olhos das suas exigências ideais.

A utilização tridimensional do esbatimento, ao mesmo tempo que assinala as insatisfações narcísicas do sujeito, sublinha o esforço para as remediar atra­vés de uma conduta ativa e de uma articulação perceptivo-sensorial que condensa a expressão de falta e as tentativas para a compensar. Esta conden­sação que caracteriza os esbatimentos, e que os transforma numa fatura de face dupla, é muito importante, se desejarmos perceber o melhor possível os mecanismos que os sustém: eles estão fortemente implicados na edificação da individualidade, pela receptividade sensorial que solicitam e pela sua polarida­de regressiva, sem dúvida relacionada com as primeiras experiências de holding e de bandling (WiNNiccyrr, 1969, 1970), pelo investimento das superfícies de contacto ou das zonas erógenas que esses mecanismos desvendam. Mas, por outro lado, eles constituem, em si mesmos, uma tentativa para fazer face às insuficiências narcísicas ou objetais que denunciam, pelo recurso a uma dinâ­mica regressiva que permitirá eventuais reajustes, ao voltarem a pontos de fixação talvez mais fiáveis.

 

CONCLUSÃO: OS AFETOS ATRAVÉS DO TESTE DE RORSCHACH

A questão é primordial e, no entanto difícil de tratar: se a equivalência sistemá­tica estabelecida entre as respostas cor e os afetos é por vezes posta em causa, como destacar um método de análise que permita dar conta da vivência de um sujeito?

 

É verdade que a análise geral e as interações entre fatores autorizam uma abordagem dos arranjos possíveis entre representações e afetos, mas quantas vezes, na prática, chegamos ao fim de um relatório de Rorschach sem ter evo­cado, e, sobretudo analisado de forma fina, o manuseamento dos afetos? «Neste sentido, preconizamos sempre o estudo obrigatório das reações aos cartões vermelhos e pastel, mesmo quando neles não aparece qualquer inte­gração das cores, ou mesmo quando não é formulada qualquer observação relativa ao caráter cromático do estímulo. Teremos então a possibilidade de estudar a maneira como o sujeito reage em relação às mudanças qualitativas do material: reforço das condutas formais, recurso as traduções cinestésicas, inibições, manifestações de angústia ou excitação extrema, logorreia, tudo ma­nifestações que nos informarão sobre as modalidades de recepção, de admis­são e de integração das estimulações emocionais.

 

No que diz respeito ao procedimento de interpretação a questão fundamental remete para o destino do afeto.

 

Para designar esse outro elemento do represen­tante psíquico, admite-se o nome de quantum de afeto; ele corresponde à pulsão, uma vez que esta se separou da representação e encontra uma expres­são conforme a sua quantidade, nos processos que são sentidos sob a forma de afetos» (S. frkud, 1915).

 

O aspecto econômico do estudo das cinestesias permite-nos pôr em evi­dência essas dimensões, e insistimos na necessidade de lhes dar atenção: o impacte das imagens é consideravelmente modulado, mesmo modificado, logo que nos interessamos pela intensidade das cargas pulsionais que as sustém, claro, mas também quando nos interessamos pelo contexto "afetivo" no qual elas são oferecidas.

O conteúdo que acolhe a integração da cor perdure insistir sobre a qualidade da representação que enquadra a expressão de afetos: a congruência entre a imagem e o sentir ou, pelo contrário, o desvio entre a extrema sensibilidade e um conteúdo que não justifica uma tal quantidade de afetos, testemunham arranjos ou transformações dos afetos no processo associativo

 

O trabalho sobre os afetos e a análise conjunta das cinestesias e das res­postas cor, em referência ao sistema representações-afetos, abre perspectivas de compreensão novas do Tipo de Ressonância Intima: não se tratará doravante de opor a introversão à extratensividade, mas de apreender com mais acuida­de as interações entre representantes-representações e representantes-afetos. A introversão deixará de ser sinônimo obrigatório de retraimento sobre si e a extratensividade de abertura ao mundo: as relações entre os dois sistemas K e C deverão ser retomadas nas perspectivas metapsicológicas e não apenas caracterológicas.

 

 

 

 

 

OS CONTEÚDOS

 

Para a autora, a análise dos conteúdos no teste de Rorschach é, ao mesmo tempo, apaixonante, ambígua, delicada e por vezes perigosa.

Apaixonante, porque é portadora de sentido e a sua articulação com as outras dimensões da resposta abre os caminhos da compreensão, pela con­frontação com a imagem que figura a representação.

Ambígua, porque pode parecer arbitrário decompor a resposta em diver­sos fatores, para dar apenas uma importância relativa ao conteúdo em si. A análise dos modos de apreensão ou dos determinantes suscitou numerosos trabalhos, enquanto os conteúdos têm uma parte mais modesta na elaboração do teste. Isto se compreende, na medida em que a atenção e a reflexão são muito mais mobilizadas para o estudo dos mecanismos psíquicos utilizados no processo da resposta: podem ser agrupados, as suas características comuns podem ser evidenciadas com facilidade a partir da sua confrontação; as regras de análise e de interpretação foram formuladas da mesma maneira que as regras de gramática para descodificar os seus aparecimentos. Nada disto para os conteúdos; e, no entanto, é preciso reconhecer que, em imensos casos, são eles que resolvem as dificuldades, que permitem confirmar ou não uma hipó­tese interpretativa.

Neste sentido, a sua análise é delicada, porque a via que dá acesso à sua eficiente exploração é estreita: tratar os conteúdos em termos gerais, ao seguir de perto a classificação que ordena a sua cotação, é redutor, exceto nas gran­des categorias (conteúdo animal ou humano, por exemplo), cujas ilustrações são tão numerosas que permitem um estudo e um agrupamento, ao mesmo tempo, flexíveis, modulados e válidos. Mas para as outras categorias, a apre­ciação pode tornar-se arbitrária, caso ela proceda por generalização.

 

A análise de conteúdos torna-se, com eleito, perigosa se ela acorda corres­pondências simbólicas precocemente estabelecidas, que acabam por roçar o estereótipo: isolar os conteúdos e dar-lhes um sentido suposto latente, invo­cando uma chave dos sonhos vagamente inspirada na psicanálise, parece-nos uma prática tão pouco aceitável como a que consistiria em separar um sonho das associações que lhe permitem a elaboração. Cortar os conteúdos, distancia­dos do seu contexto, ligá-los a um simbólica exterior que usa relações de contigüidade, arrasta para contra-sensos por vezes graves. C) exemplo mais corrente é fornecido pelos conteúdos ditos fálicos: a simples presença de obje­tos pontiagudos é interpretada imediatamente como significativa de uma angústia de castração que situa o sujeito num registro neurótico.

 

Os conteúdos são apenas traduções, por vezes deturpações, de significados que teremos de descobrir.

 

A questão, bem difícil de resolver, no que diz respeito aos conteúdos e que nos limitaremos a levantar, refere-se aos conceitos de representações de palavras e de representações de coisas: podemos perguntar-nos, com efeito, se é possí­vel definir a sua distinção no Rorschach. Não podemos agarrar-nos à diferen­ciação original entre representação visual, que deriva da coisa, e representação acústica, que deriva da palavra. O interesse metapsicológico desta distinção é acompanhado de preocupações psicopatológicas

 

 

Os conteúdos específicos

Os conteúdos animais

O aparecimento de uma percentagem mínima de respostas animal «A» é con­veniente no teste de Rorschach e constitui um fator de integração adaptativa e socializante. O A% (compreendido habitualmente entre 30% e 45%) é con­siderado como um índice de conformismo, de «participação na mentalidade coletiva». Muitas das respostas A são banalidades (nos cartões I, II, III, V, VI, VIII e X). Não interessa discutir o valor normativo deste fator, são as diver­gências e os desvios relativamente à norma que nos fazem parar.

De um ponto de vista quantitativo, um A% muito baixo não indica obriga­toriamente uma falha de socialização, que pode estar deslocada para outros tipos de conteúdos. Por vezes, uma socialização sólida pode fazer-se acompa­nhar de interesses originais, que se traduzem em conteúdos mais culturais, históricos, artísticos e literários, com um esforço sensível para não cair nos escolhos de uma banalização conformista.

Os conteúdos humanos

O aparecimento de um mínimo de respostas humanas «H» no Rorschach é
necessário dá como da capacidade de um indivíduo se identificar com uma
imagem humana. Por isso mesmo, pode ser reconhecida a sua perrenifá a espécie humana, que fundamenta a sua identidade numa primeira articulação
diferenciadora. A distinção entre os reinos mineral, vegetal, animal e humano
não é sempre efetiva: alguns sujeitos dão conteúdos híbridos, em particular
imagens ao mesmo tempo humanas e animais, que nos levam a perceber
serem portadoras de uma problemática de identidade. A justaposição deste
tipo de respostas, e outros traços que vão nós mesmo sentido, permitiram
evidenciar o valor de índice, de sinal relativamente sutil, mas sinal de uma
alteração, ou, pelo menos, de uma grande fragilidade da imagem de si.

           

As representações humanas claramente definidas: H Assinalam, num primeiro tempo, a aptidão do indivíduo para reconhecer a sua identidade subjetiva. Testemunham possibilidades eventuais de se repre­sentar a si próprio num sistema de relações, que abre a via à empatia e ao reconhecimento do outro, no assinalar das suas semelhanças e diferenças. Se, classicamente, o H% é considerado como um índice de socialização, é-o em ligação com esta abertura possível a uma imagem humana que serve de mode­lo identificatório. É assim que os desvios que marcam algumas respostas humanas põem em evidência dificuldades notórias na elaboração da represen­tação de si, em relação, claro está, com as vicissitudes do desenvolvimento em matéria de identificação.

 

 

As representações humanas cotadas (H)

Remetem para personagens místicas - irreais, diabos, bruxas, fadas, duendes, fantasmas, deuses e deusas... O seu aparecimento não é em si inquietante - podem estar integradas numa vida imaginária rica de fantasia —, mas não devem constituir o essencial da percentagem de respostas humanas. Nesse caso, o sujeito refugia-se num mundo cortado da realidade relacional e concreta, refúgio onde tema o irreal ou o delírio, que vem carregar as representações humanas de projeções arbitrárias ou deformantes. A impossibilidade de colo­car imagens inscritas na realidade de um encontro ou de um conflito nitra e/ou interpessoal, conduz ao retraimento num universo solipsista, sem clara dife­renciação entre o real e o imaginário.

 

 

As respostas humanas fragmentárias cotadas Hd

Encontram-se em contextos variáveis. Pode tratar-se de uma abordagem fóbica da representação humana, que tende a apreendê-la parcialmente, como se a massa global fosse perigosa de evocar. Pois, as respostas Hd estão também ligadas ao recalcamento das representa­ções sexuais.

 

A presença de respostas Hd toma uma conotação mais mórbida quando as respostas estão associadas, com muita freqüência, a formas arbitrárias e quando, por outro lado, elas não são acompanhadas de respostas humanas inteiras (isto é, quando o H% é praticamente constituído por respostas Hd). Tais res­postas arriscam-se a traduzir, então, a ausência de integridade da imagem do corpo e/ou a existência no sujeito de uma angústia de fragmentação. Os mem­bros cortados, os corpos truncados, feridos e amputados são outras tantas traduções do sentimento de desintegração corporal. É nesta perspectiva que as respostas Hd se integram na tríade de conteúdos Hd/Anat/Sangue que constituiria um_índice_de angústia maior.

 

Em resumo, apercebemo-nos de que os conteúdos Hd podem pertencer, quer ao registro da angústia de castração, em que a Fragmentação remete para a diferença e a ausência, sem que seja posta em causa a essência existencial e integrada do sujeito, quer ao registro mais mórbido da angústia de fragmentação, em que as partes já não podem participar na reconstrução simétrica da imagem do corpo. Neste sentido, é essencial, no procedimento de análise, con­frontar as respostas H inteiras correntes e as respostas que delas se desviam [os (H) e os Hd] com o fim de testar a capacidade do sujeito em perceber e projetar uma representação global, sintética, integrativa, e, sobretudo, viva do seu corpo.

 

 

Os conteúdos simbólicos

 

Trata-se, então, não de estabelecer o sistema de correspondências de que denunciamos o caráter artificial, mas de confrontar os aspectos manifestos dos cartões, as suas solicitações latentes e as dimensões simbólicas das respos­tas fornecidas. Estas são, ainda, reforçadas pelas referências a símbolos tão clássicos que se inscrevem numa tradição literária e cultural, e, dentro em pouco, quase quotidiana. Os contributos da psicanálise, além disso, vêm caucioná-las.

A presença de conteúdos deste tipo é importante sob vários aspectos e, antes de mais, para a análise das posições identificatórias do sujeito, porque permite isolar a sua situação em relação à hissexualidade e à diferença dos sexos. O estudo das respostas anestésicas e humanas pode ser, assim, devida­mente completado pela atenção que se dá aos conteúdos associados nos car­tões específicos. Aconselhamos vivamente o recurso sistemático à análise das respostas dadas nos cartões IV e VI (sempre a par dos contributos dos cartões II e VII), de cada vez. que nos empenhamos na interpretação dos processos de identificação. As informações fornecidas são preciosas, quando marcam o re­conhecimento claro da diferença dos sexos, através do aparecimento de con­teúdos simbólicos que testemunham a sensibilidade às características masculi­nas e femininas do material. A possibilidade de se mover nestes dois registos, em tomadas de posições alternadamente ativas e passivas, dá conta da flexi­bilidade dos processos de identificação sexual. Pelo contrário, a polaridade excessiva numa ou noutra posição, a diferenciação caricatural ou o evitamento e a indeterminação das referências sexuais vão no sentido de dificuldades na aceitação da diferença dos sexos, ou até mesmo do seu reconhecimento.

Os conteúdos com valência regressiva

Aparecem freqüentemente, em particular nos carrões que os solicitam (cartões VII e pastel, por exemplo), mas podem também surgir noutros contextos, tomando então um significado defensivo para evitar a abordagem de um con­flito de ordem sexual ou agressivo.

As notações regressivas remetem, muitas vezes, para as primeiras relações de objeto através do mundo marinho (fundos e animais marinhos, plantas marinhas); esta referência ao «banho», envelope precoce, encontra-se, essen­cialmente, nos cartões pastel nos temas de água e de luz.

A revivescência destas experiências de contato primitivo arrasta a expressão de representações ou de afetos sentidos como agradáveis ou desagradáveis. Os adjetivos associados, a tonalidade ansiosa ou calma das imagens, contri­buirão para caracterizar, positiva ou negativamente, os conteúdos já significa­tivos em si mesmos.

As temáticas

As temáticas aparecem, por vezes, na congruência dos dados, mas este apare­cimento não é a regra. O trabalho de pesquisa temática articula-se, primeiro, à volta da reconstrução de ligações entre os engramas sucessivos que caracteri­zam uma seqüência associativa, no seio de um mesmo cartão

Ao analisarem os protocolos de Rorschach de doentes psicos­somáticos, aperceberam-se do quanto estes doentes estavam absortos pelo pró­prio corpo, que parecia ser este o objeto mais importante no campo imediato das suas experiências e fantasmas. As respostas ao Rorschach insistiam nas qualidades continentes protetoras e nos atributos particulares dos limites e da periferia dos estímulos. Fishlir e clrvkiand chegaram, então, à definição de dois índices que respeitam às características dos limites da imagem do corpo a partir do teste de Rorschach:

— um índice de barreira, calculado a partir do número de respostas que se
referem às qualidades de dureza, de estrutura bem definida dos limites
dos estímulos, assim como às suas funções protetoras e de revestimento;

— um índice de penetração, calculado a partir do número de respostas que
acentuam a destruição das fronteiras, ou o fato de estas serem através­
das mais definidas ou transparentes.

Este tipo de estudo, para além do interesse de ordem diagnostica que apre­senta, acentua um aspecto importante no estudo dos conteúdos: assenta não só na análise dos substantivos, mas recolhe informações significativas que pas­sam pelos adjetivos qualificativos.

A cotação dos conteúdos procede por redução, uma vez que ela se fixa no engrama percebido; o estudo dos conteúdos reintroduz o «como é dito», isto é, a maneira como o engrama é tratado. A interpretação deve respeitar a dinâ­mica na qual se inscreve a resposta.

 

 

CONCLUSÃO: O CONTEÚDO, CONTINENTE DO CONTEÚDO LATENTE

O que pode ser apreciado, no trabalho sobre os conteúdos, é a possibili­dade de o sujeito figurar algumas das suas representações inconscientes. Esta operação pode ser referenciada à atividade do pré-consciente, segundo a pri­meira tópica de fkiujd. É à insuficiência do pré-consciente que alguns psicana­listas (P. makty, 1976) atribuem a pobreza taniasmática das organizações que denominam «neuroses de comportamento», listas caracterizam-se, nas provas projetivas, pela planura dos conteúdos e pela aparente ausência de ressonân­cia fantasmática, por vezes, com bruscas emergências, extremamente cruas, em processos primários.

Para finalizar, a autora ressalva que, se consideramos que o pré-consciente é um reservatório de imagens e de palavras susceptíveis de se tornarem conscientes, e que ele ocupa um lugar intermediário entre o sistema inconsciente e a consciência, então podemos pen­sar que a capacidade de um sujeito para figurar certas representações incons­cientes (portanto, para dar conteúdos cuja espessura simbólica se impõe, que têm valor de compromisso e de arranjo das representações fantasmáticas, ten­do em conta as exigências impostas pela censura e pela realidade), remete para um funcionamento efetivo do sistema pré-consciente.


Autor: David Alves De Araujo


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