Dissertação: Gil Vicente E O Teatro Popular Entre Idade Média E Renascimento



Traz como contraponto as ideias feitas, da moral corrente e da ideologia oficial da época. As cenas de adultério provocam o riso, principalmente devido ao comportamento dúplice da Ama que na ausência do marido, lhe deseja a morte e, quando ele chega, é de uma doçura e de grande interesse. Gil Vicente  é um autor de transição,  sua obra tem caracteristica medieval e apresenta já numerosos  e importantes elementos da mentalidade humanista renascentista.

 A história fala sobre Constança, mulher de pouco amor pelo marido e que se casou apenas por interesses. Estando sozinha, pois seu marido estava viajando para a Índia, a mulher arranja dois amantes: Lemos (um português) e Juan (um Castelhano). Para manter a situação controlada conta forçadamente com a cumplicidade da sua empregada, designada simplesmente por Moça, que bem tenta defender a moral do seu Senhor. Quando o marido regressa, Constança faz o papel da esposa que estava com saudade e que está regozijante com a volta do seu amado cônjuge, porém isto tudo só porque ele volta carregado de riquezas.

A história forma-se com a 1ª parte que corresponde à fase de expectativa da Ama, relativamente à partida ou não do Marido, e à distensão que se segue à confirmação da saída da armada e que ela aproveita para confessar a sua predisposição ao adultério. A 2ª parte é a fase do adultério. Sucessivamente, entram em cena os pretendentes Castelhano e Lemos; o adultério consuma-se; a Ama revela, sem qualquer escrúpulo ou pudor, toda a sua levianidade, falsidade e imoralidade. Poderá parecer estranho que o crime da Ama fique sem punição, é preciso reconhecer que o seu castigo assolaria o efeito engraçado que é uma característica da farsa. Por outro lado, parece sensato pensar que o objetivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo.

O espaço que retrata a narração é a casa da Ama. Os elementos textuais, no entanto, aceitam subdividi-lo em três: a câmara da Ama, lugar que decorre a maior parte da ação; a cozinha, onde se esconde o Lemos em determinado momento e que é referida no discurso outras vezes; e o quintal, onde o Castelhano espera a autorização para entrar. Para Gil Vicente, o fato da ação decorrer de forma contínua num mesmo espaço sugere que os acontecimentos se sucedem ao longo de um período de cerca de vinte e quatro horas. No entanto, o tempo representado corresponde, não há um dia e uma noite, mas a um período de cerca de três anos. A confirmação vem pela boca da Ama, quando recebe Lemos e lhe diz que o marido se ausentou para a Índia. Como na época a duração média de uma viagem de ida e volta à Índia era de dois e meio a três anos, desfaz-se de vez, na mente dos espectadores, a impressão de que o tempo representado se reduz, neste momento, há algumas horas. O tempo da história pode ser percebido com a partida da Ama, quando se lê no texto: “Partem daqui em Maio”, “Leixou-lhe pera três anos”, “Partiu Domingo de Madrugada”. O tempo dramático é uma segunda-feira em maio, e o tempo histórico é um sábado, dezoito de Abril de 1506. Já com a visita de Lemos e do Castelhano, através das passagens do texto: “às nove e não mais” , “Toda a noite nesta rua”, “Que isto quer amanhecer”; fica claro que o tempo dramático foi de segunda para terça após a partida e o tempo histórico é dado em uma segunda-feira, vinte de abril de 1506. O regresso do marido deve-se passar em 1509, pois  “Três anos que partiu”,  “Noss’amo é hoje aqui”.

Os personagens do auto da índia não possuem nomes próprios, com exceção de Lemos. Têm-se como principais características para a Ama (uma mulher leviana, sedutora, sensual, astuciosa, egoísta, irônica, hipócrita, falsa, adúltera, volúvel, materialista e inconstante); para a Moça (pessoa irônica, confidente, cúmplice, crítica, ladina e interesseira); o castelhano (fanfarrão, galanteador, mulherengo, forte, bravo); Lemos (oportunista, escudeiro, pretensioso, conquistador); o marido (materialista, ingênuo, crédulo, vítima, covarde).

Como tipo social a importância da  Ama reside em trazer a representação das mulheres abandonadas pelos maridos que partiam à aventura, correndo atraz de fama e riqueza.  Para além mulheres falsas, fingidas, manhosas que usavam os meios para alcançarem os seus fins, mas que, no fundo, eram fracas, sem capacidade para assumirem os seus verdadeiros sentimentos e desejos; são, pois, resultado dos condicionalismos da sua época. A Ama corporiza um dos aspectos negativos dos descobrimentos, personifica uma crítica ao adultério. O marido é um personagem que condensa em si os riscos,  pois, embora tenha regressado com vida, voltou  sem a riqueza pretendida e merecida, visto o capitão se ter apoderado de grande parte do que a tripulação conquistara e foi traído pela mulher que se entregou aos homens que a procuravam  (Castelhano e Lemos).

É interessante observar que no “Auto da Índia”, apesar do principal tema estar sobre o adultério da “Ama,o autor também nos apresenta a atitude adúltera dos personagens “Castelhano” e “Lemos”. Ao encontrar-se com a “Ama”, “Castelhano” deixa claro que tem consciência que está se envolvendo com alguém comprometido:

“Supe que vuestro marido era ido(...) Al diablo que lo doy el desastrado perdido”.

Da mesma forma acontece à personagem “Lemos”. Ao dirigir-se à “Ama”, perguntando-lhe “Como estais?” Esta lhe responde:

“Foi-se à Índia meu marido, e depois homem nascido não veio onde vós cuidais”.

Não se importando com o fato da “Ama” ser casada, a ausência do marido faz com que “Lemos” deixe clara a sua intenção:

“Pois agora estais singelas, que lei me dais vós, senhora?”

Sendo a traição, uma forma de decepção ou repúdio da prévia suposição e o rompimento ou violação da presunção do contrato social (verdade ou da confiança) que produz conflitos morais e psicológicos entre os relacionamentos individuais, entre organizações ou entre indivíduos. Geralmente  é o ato de suportar o grupo rival, ou, é uma ruptura completa da decisão anteriormente tomada ou das normas presumidas pelos outros. A infidelidade feminina é notavelmente apontada por Gil Vicente: “Moça”: Oh, que mesuras tamanhas! Quantas artes, quantas manhas, que sabe fazer minha ama! Um na rua e outro na cama. (Auto da Índia, p.44).

O adultério antes era quase imponderável, restrito a páginas de romances, mas atualmente tem sido um tema muito abordado e um fato que está se configurando como normal, pelo menos para alguns segmentos sociais. O que antes era visto como traição, hoje é visto como uma forma de aventura, escape ou desajuste no relacionamento. O motivo pelo qual as mulheres traem hoje  podem variar muito. Pode ser por vigança, insatisfação sexual, puro prazer ou desejo. Para o psicólogo e psiquiatra Augusto Cury ”a maneira de se enfrentar as rejeições, decepções, erros, perdas, sentimentos de culpa, conflitos nos relacionamentos , críticas e crises profissionais, pode gerar maturidade ou angústia, segurança ou traumas, líderes ou vítimas. Alguns momentos geram conflitos que mudaram as vidas, ainda que não se perceba.”(Cury, 2004.p,14)

O valor histórico deste auto é claro e resulta evidentemente das explanações antecedentes. Cada uma das figuras dramáticas representa um tipo social, com seu comportamento próprio e seus defeitos. O escritor permite-nos entender a diferente expressão da descoberta, a faceta inferiormente heróica, pondo de fora a materialização dos agentes da ampliação e os resultados malvados que ela tinha sobre a estrutura familiar e social. Por outro lado, há no texto características de tempos que lhe fornecem uma inegável atualidade, amortecendo os aspectos das circunstâncias. As críticas de Gil Vicente são corretamente atuais: é moderna a traição no matrimônio, à insuficiência de respeito pelos pactos adotados; é presente o materialismo descomedido, a supervalorização dos domínios materiais em detrimento de valores mais nobres; tendo também como ponto atual a condenação da ostentação e do culto a imagem.

Para Cury, “diminuir o prazer diante da própria imagem é algo natural e que para recuperá-lo é preciso aprender a elogiar a vida, perceber sua graça, aceitar seu corpo, viver com suavidade... é normal um casal diminuir o nível da paixão com o tempo. Para reacendê-la, eles só precisariam aprofundar a relação, entrar em camadas mais profundas de dialogo, viver belos sonhos juntos. Do mesmo modo, resgatar a auto-estima e o prazer pela vida exigiria mergulhar em camadas mais profundas da existência”. (Cury. 2005, p.124).

REFERÊNCIAS

CURY, Augusto Jorge. A ditadura da beleza e a revolução das mulheres. -Rio de Janeiro. ed Sextante, 2005.

CURY, Augusto Jorge. Nunca desista dos seus sonhos - Rio de Janeiro. ed: Sextante, 2004.

VICENTE, Gil. Auto da Índia. In: Auto da barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira; Auto da Índia. Notas de João Domingues Maia. 5. ed. São Paulo. Ed: Ática, 2006. p. 107-132.

SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 23. ed. Lisboa, Portugal: Publicações Europa-América, 2005. p. 193-199.

SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17.ed. Porto, Portugal: Porto, 2001.p. 189-211.

TEYSSIER, Paul.  Gil Vicente - o autor e a obra. Lisboa: Biblioteca Breve, 1982.
Autor: Isla Morgane


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