Violência de Gênero



Com o advento da Constituição Federal de 1988, sob o ponto de vista legal, homens e mulheres são iguais o que nos conduz a acreditar numa proteção legal para ambos os sexos. Contudo, no que se refere à mulher essa legalidade nem sempre é reconhecida como legitima permanecendo a violência, nos fazendo entender que a violência transpassa a questão da transgressão da lei atingindo as representações da realidade que definem as relações entre as pessoas. Esta realidade é caracterizada por um conflito de interesses entre opressores e oprimidos numa relação desigual marcada pela verticalidade.

Sendo assim, analisaremos de que forma as relações desiguais entre homens e mulheres influenciam nas denúncias e nos julgamentos da violência sexual contra as mulheres. Buscando uma reflexão critica sobre os motivos que favorecem a pratica do crime sexual contra as mulheres e como é tratada a questão no âmbito da justiça, considerando os avanços e entraves na legislação brasileira no que concerne a pratica desses crimes.

Esperamos que de alguma forma as criticas aqui levantadas sirvam de reflexão acerca da condição feminina na sociedade brasileira buscando alternativas que visem a igualdade dos sexos na efetivação dos seus direitos. Entendendo que a desconstrução do mito de superioridade masculina é fundamental para o estabelecimento de um Estado de Direito pautado na igualdade entre os seres humanos.

O fenômeno da violência no seu sentido amplo e estrito é multifacetado atingindo desde as relações familiares até as relações entre países. Isto significa dizer que a violência não é uma característica apenas das classes populares muito menos das sociedades em desenvolvimento, mas, sobretudo, um problema de toda a humanidade.

Constatamos que mesmo diante dos progressos da civilização, o homem não conseguiu, como deveria, assegurar a humanidade uma existência / convivência digna e pacifica. Portanto, a inexistência de mecanismos que visem diminuir a distância entre necessidades e possibilidades são definidoras para mensurar estados de violência de um povo.

Para Marilena Chauí (1999:26) a violência seria tudo o que se vale da força para ir contra a natureza de um agente social; todo ato de força contra a espontaneidade, à vontade e a liberdade de alguém; todo ato de transgressão contra o que uma sociedade define como justo e como um direito. É uma circunstância caracterizada pela opressão e intimidação, pelo medo e terror.

Considerando o aspecto histórico/cultural o Brasil é caracterizado como uma sociedade patriarcal com ideologia machista que parte do pressuposto que os homens são superiores às mulheres. Essa ideologia machista que sustenta o patriarcado decide, na nossa sociedade, padrões de comportamento para os homens e para as mulheres.

O machismo enquanto ideologia constitui um sistema de crenças e valores elaborados pelo homem com a finalidade de garantir sua própria supremacia através de dois artifícios básicos: afirmar a superioridade masculina e reforçar a inferioridade correlata da mulher (AZEVEDO, 1985, p.46).

No que diz respeito à expectativa de comportamento atribuída a cada sexo resta-nos dizer que ela aprisiona, rótula as pessoas, devendo estas renegar a si mesmas para viverem segundo critérios pré-estabelecidos, e quando não atendem esses critérios são marginalizadas, negligenciadas.

Conceitualmente, podemos definir gênero como uma construção cultural baseada no biológico, ou seja, a partir das diferenças biológicas percebidas entre os sexos criou-se uma expectativa de comportamento atribuída a cada sexo. Essas diferenças de gênero ocorrem em todas as sociedades, mas por ser uma construção cultural variam de cultura para cultura. É oportuno, neste momento utilizar as palavras de Heleieth I.B. Saffioti (1987:143), lembrando que o conceito de gênero se situa na esfera social, diferente do conceito de sexo, posicionado no plano biológico, falar sobre gênero é buscar compreender uma das formas como são estabelecidas as relações sociais entre os seres humanos.

Os indivíduos não nascem sociais, nós aprendemos, assimilamos, internalizamos os padrões de comportamento repassados de geração em geração. Essas diferenças "sexuais", citadas, possibilitam relações desiguais entre os sexos em que os homens podem demonstrar a sua superioridade masculina enquanto que as mulheres devem ser eternas atrizes coadjuvantes.

Entretanto, reduzir seres humanos aos seus órgãos genitais para avaliação e definição chega a ser degradante quando não humilhante, é desconsiderar toda subjetividade do ser e torná-lo escravo de uma artificialidade que se mantém como forma de sustentação de um poder de dominação masculina.

Considerando esse contexto sócio-cultural, Wânia Izumino (1998:43), também, faz uma análise singular das construções de gênero quando diz queas diferenças sexuais, a definição sobre o que é uma mulher ou o que é um homem e quais são os seus papéis na sociedade, encontram-se fora de seu corpo físico ou características anatômicas, situando-se na esfera do simbólico, na produção cultural de cada sociedade.

Assim, a mulher assume diferentes papéis edesempenha diferentes funções dentro do grupo de acordo com as regras que regem a sociedade a que pertence, sendo que a mesma observação é válida no caso dos homens.

Percebemos com isso que as relações estabelecidas entre homens e mulheres transpassa a questão meramente biológica penetrando no subjetivo/objetivo da sociedade que determina o que é certo ou errado para cada sexo. A partir da internalização dessas idéias por parte da coletividade será definida toda dinâmica das relações entre homens e mulheres.

O recorte de gênero implica na oposição dos sexos a partir de características socialmente estabelecidas, não exclui, no entanto, os recortes que privilegiam a classe ou outros fatores como o político ou as características raciais. Ao contrario, a categoria gênero só faz sentido quando entendida como um recorte que se aplica transversalmente as outras categorias (IZUMINO, 1998, p.52).

E isso contribui para a internalização de um estado de dependência que vive a mulher seja material ou emocional conduzindo para uma leitura astigmata da realidade possibilitando, freqüentemente, uma justificativa(?) para a violência sofrida. Como diz H. Saffioti (1994:153), a violência contra a mulher integra, assim, de forma intima, a organização social de gênero.

Isso ocorre, geralmente, porque a mulher é submetida e se submete a condição de segundo sexo. Condição esta que é estimulada desde quando a mulher, ainda, criança é domesticada para manter uma reputação ilibada que em primeira instância significa não ter os mesmos direitos de expressão que os homens. A sua área de atuação é a casa, o espaço privado, quando sai deste é para colaborar com o orçamento doméstico sendo uma atividade relegada, mesmo assim, a segundo plano. Segundo Warshow (1998:32) assim, constrói-se a representação social do feminino e a partir dessa internalização a mulher passa a se sentir como propriedade do homem devendo estar a sua disposição. Isso dificulta para a mulher, no campo subjetivo, delimitar seus direitos.

Podemos afirmar, então, que as relações sociais são estabelecidas através da organização social de gênero de determinada sociedade, isto significa dizer que essas relações são artificiais, criadas pelo próprio homem e não algo inato, mas uma construção simbólica.

Portanto, a partir do que cada sociedade define o que é ser homem ou mulher nos moldamos até o ajuste ou não ao modelo socialmente aceito, construindo homens e mulheres. Isso solidifica o pensamento de Simone Beauvoir quando diz: não se nasce mulher torna-se mulher.

A Violência Sexual assim como as demais violências praticadas contra as mulheres expressam uma construção social que não é instituída pela natureza. Portanto, a prática de violência sexual não é algo inato masculino, mas, está imersa em uma construção de gênero em que as mulheres são compreendidas como seres inferiores. Assim, como seres inferiores, as mulheres não são apreciadas como sujeitos de sua própria existência, mas como um objeto à disposição dos homens.

A violência contra a mulher é uma manifestação das relações de poder, historicamente desiguais entre homens e mulheres, que causaram a dominação da mulher pelo homem e sua discriminação social. È um dos indicadores sociais mais contundentes da subordinação da mulher em relação ao homem. (Amaral, 2001, p.24)

Segundo o pensamento de Badinter (1986), isto pode ser evidenciado com a história da humanidade na qual estava inscrito no século passado, que ter uma filha não era significativo ou importante, quando não, doloroso e conflituoso para toda a família, já que com o casamento posterior dessa filha haveria a renúncia da família de origem passando esta a pertencer aos ancestrais do seu marido. Deixava de ser "propriedade" do pai para ser do marido.

Este entendimento perdurou por muitos séculos refletindo uma relação de dominação e subserviência, arraigada aos sexos masculino e feminino, respectivamente. Temos o reflexo desse processo histórico quando essa tradição cultural de desigualdade entre os sexos torna, justificável, quase sempre, a violência sexual e outros crimes praticados contra as mulheres, porque mesmo tendo, em alguns casos, visibilidade, de acordo com o pensamento de Izumino (1998:33), continua sendo um dos menos julgados e/ou condenados.

De um modo geral os homens vêem as mulheres como objetos, um ser passivo que esta a sua disposição. A condição de inferioridade que a mulher é submetida transpassa a esfera privada repercutindo nas suas relações na esfera pública. A mulher não é o segundo sexo somente no espaço doméstico, mas, também, na rua é vista com um ser a disposição dos homens.

Considerando, ainda, esse aspecto utilizaremos abaixo o pensamento de Saffioti para explicar o fato que as mulheres são agredidas fisicamente de forma maciça na residência, tendo como principal agressor o marido, companheiro, alguém que mantém uma relação de afeto enquanto que com os homens, freqüentemente, as ocorrências violentas se dão em lugares públicos.

O domicílio, deste modo, mostra-se o lócus privilegiado do exercício da violência contra a mulher como forma de controle social e de reafirmação do poder do macho. As representações sociais a respeito da violência masculina contra a mulher construíram um verdadeiro mito, segundo o qual os homens violentos pertencem às classes subalternas e, ou são monstros anormais ou estão sob o efeito de forte emoção, portanto, sem domínio de se próprios e das forças que são capazes de liberar. (SAFFIOTI, 1992, p.163).

No entanto, esses dados não são comprovados pelas estatísticas oficiais[1], isto porque sendo a residência familiar um local considerado inviolável incute-se a idéia de que suas mazelas não deverão ser expostas para apreciação pública. Levando-nos a inferir que a violência contra a mulher tem um caráter histórico/cultural, muitas vezes, possibilitando, mesmo nas entrelinhas, o consentimento dessa violência.

É exatamente na medida que a mulher aceita e se conforma com sua condição de Cinderela cuja identidade será atribuída e confirmada pelo príncipe encantado (de quem ela dependerá até para subsistir), que ela poderá vir a ser não apenas vítima, mas também cúmplice de violência contra si própria. Vivendo uma condição de dependência política, econômica e cultural, a mulher experimenta uma permanente sensação de desamparo que acaba aprisionando-a num verdadeiro 'circulo de giz caucasiano', feito de medo e desesperança. Medo da liberdade enquanto exercício de autonomia. Desesperança quanto a própria capacidade de libertar-se (AZEVEDO, 1985, p. 46).

Assim sendo, mesmo na atualidade torna-se difícil falar sobre violência contra a mulher já que em muitos casos significa desmistificar uma relação familiar que deveria permanecer intocável. Essa questão é bem esclarecida por Azevedo, quando diz:

[...] tema maldito, posto que implica desvelar uma instituição que a sociedade insiste em considerar como instituição modelare essencial ao desenvolvimento pleno e equilibrado dos seres humanos – a família. Tratar da violência domestica é tratar da violência familiar, isto é do uso institucional de práticas opressivas, agressivas e de dominação exercidas pelo homem contra sua parceira, na condição de esposa ou companheira, como forma de conseguir mantê-la submissa, dócil e cordata aos seus propósitos (AZEVEDO, 1985, p. 17)

Apesar da violência contra as mulheres não ser um fenômeno novo, com o fortalecimento do feminismo (a segunda onda) favoreceu que este problema ganhasse visibilidade e fosse tratado com uma atenção especial numa tentativa significativa de libertar as mulheres de mais essa agressão. Simultaneamente, a todas essas reflexões foi criada a Delegacia da Mulher que tinha como proposta prestar um atendimento diferenciado às mulheres.

Situações anteriormente tidas como normais, que ficavam encerradas no universo fechado das famílias foram denunciadas. Desse modo, o problema remeteu-se da esfera privada para a pública favorecendo intervenções legais, hoje consideradas, indispensáveis.

Uma das formas que podemos conceituar a violência sexual seria utilizando o entendimento jurídico sendo conceituada como o ato de constranger alguém mediante violência ou ameaça (implícita ou explicita) a praticar ou permitir que pratique a conjunção carnal ou ato libidinoso.

De acordo com o nosso ordenamento jurídico, a violência sexual é um crime que deve ser denunciado a uma delegacia de polícia, podendo o agressor ser responsabilizado civilmente e a vítima obter possível indenização pelo dano material e moral sofridos.

Considerando o exposto, podemos inferir a violência sexual como uma das formas possíveis de materialização das relações de poder estabelecidas socialmente entre os sexos, ou seja, uma manifestação desencadeada por relações desiguais, verticais entre homens e mulheres.

No entanto, como já mencionado, este é um dos crimes menos denunciados, isto se dá, em parte, por ele ter como principal local de incidência a residência familiar; enquanto os homens em sua maioria são agredidos nas ruas, as mulheres são vítimas de violência perpetrada no lar ou na unidade doméstica, geralmente por um membro da família ou por alguém conhecido. Como afirma Saffioti (1994, p.163) na esfera privada, todavia, obscurecida pela invisibilidade, muitos homens comportam-se violentamente contando com a mudez da companheira.

Devido à pressão do movimento feminista foi criado em São Paulo na década de 80, o primeiro Conselho Estadual sobre a Condição Feminina em seguida o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e depois a criação das Delegacias Especializadas. Vale salientar, também, a existência da Secretaria Nacional de Direitos humanos, a Plataforma Estratégica de Igualdade, o Programa Nacional de Prevenção e Combate à Violência Domestica e Sexual, o Serviço de Disque-denúncia criado pelo Ministério da Justiça, a TV Escola, Casas Abrigo, entre outros. De acordo com Izumino (1998:36) a delegacia de polícia de defesa da mulher foi a primeira tentativa realizada em institucionalizar o combate a violência contra a mulher através de um espaço em que se reúne a possibilidade de denúncia, prevenção e repressão desta forma de violência.

Diante desse contexto, houve uma maior visibilidade dos crimes contra as mulheres, agora registradas nos boletins de ocorrências das delegacias. De acordo com pesquisa realizada no período de 1998/1999 por Aquino (2001:154-155) na Delegacia de Proteção a Mulher de Salvador/Bahia, o maior índice de ocorrência registrada na delegacia é a agressão física ficando a violência sexual com números significativamente menores.

Devemos compreender esse fenômeno como um sinal de que a violência sexual é um tema difuso, complexo em que é tratado ainda como inaceitável, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, é mascarado e dissimulado pela própria sociedade.

Configura-se no imaginário coletivo a crença de que sexo para os homens é um impulso biológico, depois de ativado fica sem controle, enquanto que a mulher deve conter seu desejo sexual para não ser confundida com uma "mulher vulgar". Para ilustrar essa idéia exemplificaremos a partir do Código Penal Brasileiro datado de 1940, onde a violência sexual está incorporada aos crimes contra os costumes, significando dizer que o aspecto preponderante na avaliação desses casos é a ocorrência de um gozo ilícito amenizando, dessa forma, o ferimento ilícito.

Esse aspecto implica numa avaliação se a mulher permitiu ou não a violência sofrida. Diferentemente dos demais crimes, a violência sexual esta intimamente relacionada com os fatores motivadores. Como afirmou Vigarello (1998:68) a dificuldade de distinguir entre o consentimento e o não-consentimento, independentemente do ato efetuado, a tendência a reduzir a mulher que 'realizou' o ato ao estado de mulher que consente.

Considerando a citação acima podemos afirmar que a violência sexual, quase sempre, é analisada de acordo com certos mitos culturais que invocam explicações distorcidas das mulheres vítimas de violência sexual, desconsiderando o sofrimento vivenciado pela vitima, sendo reflexo de um contexto sócio-cultural.[2]

Não é unicamente a existência desses mitos culturais que dificultam a denúncia da violência, mas também o desconhecimento pelas próprias mulheres dos seus direitos, inclusive o de deliberar sobre o próprio corpo. Dessa forma, a ordem falocêntrica coisifica a mulher negando-se a considerá-la sujeito. Ficando estas mulheres sujeitas as conveniências masculinas.

A dominação masculina ou o simbólico da figura do macho poderoso obscurece o direito das mulheres enquanto cidadãs, e tem trazido muitas dificuldades, tanto na compreensão pelas mulheres do que vem a ser agressão como a necessidade jurídica de um encaminhamento de uma ação para julgar os atos criminosos dos homens. Na sua subjetividade, a mulher tem culturalmente incorporado uma submissão, reconhecendo, ainda, na figura do homem (pai, irmão, marido, companheiro, namorado) um ser com plenos direitos sobre sua vontade e seu corpo. (AMARAL, et al, 2001, p.25).

Durante toda a historia, como podemos observar, a sociedade por muitas vezes, dificultou a inserção do tema violência sexual no contexto social, sendo essa postura legitimada através da culpabilidade da mulher pela ocorrência do crime.[3]

Sabemos que a violência sexual contra a mulher pode ocorrer em qualquer classe social, o que diferencia sua ocorrência é que as classes populares, sem ter a quem recorrer, denunciam a agressão; enquanto que as mulheres oriundas da classe média ou alta preferem manter o status, não se expor, contratando médicos e/ou psicólogos particulares para cuidarem dos seus sofrimentos.

A violência sexual transpassa a questão das lesões sofridas no corpo misturando-se com a vítima, colocando em discussão a sua dignidade. O "olhar" da sociedade não é direcionado para o crime, mas para um suposto motivo desencadeador do ato.

As decisões para classificar as queixas de estupro como 'procedentes' isto é validos e possíveis de prossecução) ou 'não-procedentes' dependem muitas vezes de fatores que não tem nada a ver com a questão de a mulher ter sido forçada a ter sexo contra a sua vontade.Mais do que qualquer outra coisa, essas decisões tem a ver com a questão de os 'porteiros' legais (primeiro a policia e depois promotores públicos) acharem a vitima aceitável e as circunstâncias do seu estupro suficientemente parecidas com um 'bom' caso para se acreditar nelas. (WARSHAW, 1996, p.36)

Por parte de nossa sociedade existe uma grande dificuldade no reconhecimento e validação da violência sexual praticada pelo marido da vítima. A mulher casada se constitui propriedade do marido devendo estar disponível sexualmente para ele sempre quando for solicitada. Conforme Saffioti (1994:43) a violação sexual, via de regra, só é considerada como ato violento quando praticado por estranhos ao contrato matrimonial, sendo aceita como normal quando ocorre no seio do casamento.

Com isso, percebemos a marca de uma ideologia machista que obscurece a cidadania feminina a partir do momento em que a liberdade de escolha, de decisão é limitada, obrigando a mulher, quer queira ou não, a dispor do seu próprio corpo para satisfazer as "necessidades" sexuais do seu parceiro, tirando da mulher o direito de estabelecer limites no comportamento sexual. Além de ser uma violência sexual é uma violência aos Direitos Humanos que tanto preconizam a idéia de liberdade.

[...] considera-se a mulher apenas como um ser passivo, incapaz de opinar, escolher, ter vontades. Porém, o problema não está na pratica sexual da cópula. O problema está na maneira como se estrutura a ordem das representações sociais geradas a partir da materialidade desta prática sexual, do sistema de representações sexo/gênero e na construção cultural da diferença sexual. Assim, na lógica social falocêntrica, a mulher se 'coisifica' e é tida como objeto de manipulação. (AMARAL, et al, 2001, p.27).

Crimes de violência sexual praticada por alguém conhecido, principalmente, pelo marido da vítima, quase sempre são ocultados, pouco denunciados, pouco julgados e raramente condenados. Existe uma certa negligência na avaliação desses casos e, essencialmente, uma falta de reconhecimento dos direitos das vítimas.

Uma outra observação é que no caso da violência sofrida pela menina, criança ou adolescente, na maioria dos casos denunciados o potencial agressor é alguém conhecido, que faz parte do contexto familiar. Já no caso da mulher adulta o maior índice de denuncia está relacionada com o agressor desconhecido.

Entendemos isso devido à falta de reconhecimento da mulher de definir o que é ser vítima de violência sexual por alguém conhecido, a resistência da sociedade em aceitar que alguém conhecido possa ter praticado tal crime sem que de alguma forma a mulher tenha contribuído para isso. Mas uma vez as relações desiguais estabelecidas entre homens e mulheres que possibilitam uma análise deturpada da realidade que se sobrepõe a importância da denúncia.

A mulher quando sofre uma violência sexual é atingida na sua integridade física e psíquica. Sendo "jogada" no "túnel" da culpa, do medo, da incerteza, podendo construir suas vidas numa crença falsa de que não têm valor. É a passagem do estado de sujeito para o de objeto.

O estupro abala todos os aspectos do ser humano - físico, emocional, psicológico e espritual. É o contato com a morte que abala todas as defesas. Devido à incompreensão da sociedade, o estupro pode comprometer relacionamentos, o trabalho e até a vida familiar. (ADAMS, 2000, p.171).

Segundo pesquisa de Warshaw (1996), as mulheres relataram que sentiram medo, raiva, depressão após seus estupros, enquanto os homens disseram que experienciaram alguns sentimentos de orgulho.

Com isso não é admissível a aceitação ou o pacto com uma sociedade silenciosa em torno da violência sexual, "fechando os olhos" para todas as conseqüências em decorrência desse crime em prol da manutenção de uma lógica machista.

O sofrimento de uma vítima de violência sexual não se limita ao momento desse crime. Estudos indicam que essas vítimas ficam mais vulneráveis ao uso de drogas, as DSTs, distúrbios sexuais, prostituição, depressão, baixa auto-estima e o suicídio.

A violência sexual deixa marcas que a cirurgia plástica, por exemplo, não consegue corrigir, embora a lembrança de ter sido violentada possa ser trabalhada por equipe multidisciplinar, nunca será apagada, faz parte da história da vítima. Por este motivo a importância das discussões e reflexões sobre este crime de forma a propiciar estratégias mais amplas de prevenção e combate contra a violência sexual, considerando a importância de um atendimento de qualidade.

Sendo assim, emerge na sociedade brasileira questionamentos, cobranças para que exista um equilíbrio entre as necessidades das mulheres e as possibilidades do Estado. Diante disso o Estado brasileiro apresenta uma "solução": acrescenta ao nosso ordenamento jurídico a Lei 11.340/06, também denominada Lei Maria da Penha, que pune a violência doméstica e familiar contra a mulher suprimindo lacunas na legislação e, com isso, gerando elogios e criticas dos juristas. Restando-nos verificar se, com a existência dessa nova lei, teremos concretamente avanços e/ou entraves na efetivação dos direitos da mulher.

No Brasil podemos observar uma busca de alternativas para erradicar esse crime embora possamos dizer que a questão é muito mais complexa envolvendo uma mudança de mentalidade. Requerendo para isso não apenas discussões sobre o tema mais ações concretas que de fato proporcionem uma atenção e um atendimento diferenciado para as mulheres vítimas de violência sexual.

A análise que segue leva em conta o fato de que no Brasil, mais importante do que a falência do modelo liberal de justiça é o fato de que esse modelo nunca chegou a ser implantado, de forma que continuam a persistir as relações sociais fortemente hierarquizadas, calcadas em preconceitos, na intolerância com o outro e no uso de prerrogativas econômicas para garantia de direitos (IZUMINO, 1998, p.58).

A complexidade das circunstâncias que influencia a violência sexual contra a mulher faz com que se torne necessária uma ação ampla por parte dos Estadopara que proporcione modificações na maneira como esse crime é tratado.

Acreditamos que nesse momento devemos nos posicionar, cada vez mais, na luta pelo crescimento das políticas públicas no atendimento as mulheres vítimas de violência sexual. 
O que de fato as mulheres precisam não são, apenas, discursos políticos, mas que estes estejam relacionados e/ou atrelados a ações concretas que propiciem condições dignas de atendimento e que se promova o reconhecimento da mulher enquanto sujeito de direitos.




Autor: Andréa Araújo


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