Eremita Moderno



Ajeitou o livro de modo que a capa ficasse a mostra, quando a garçonete trouxe-lhe o café..via-se que era uma obra qualquer de dostoievsky.

A garçonete não lhe parecia bonita, e certamente não havia qualquer interesse além de ser reconhecido como alguém que lê dostoievsky, enquanto toma seu café solitariamente.

Ainda sobre a mesinha, aberto um jornal com um incisivo artigo socialista...tão decorativo quanto o cigarro em sua boca, e o resto...

Mas, para a garçonete, era apenas outro cliente...a moça tinha bom coração, se tivesse percebido a importância de sua atenção aos ornamentos intelectuais, doaria um de seus sorrisos, tal qual faz com os bêbados que clamam por atenções desconhecidas...porém, o rosto do cliente esboçava tamanha segurança, que ela não poderia conjecturar que aquele homem esperava alguma demonstração do que quer que seja...serviu-lhe o café, um café puro de açúcar e atenciosidade...retirou-se na banalidade com que repete essa cena tantas vezes ao dia...

O homem, se levantou sob a fumaça de mais um cigarro e, sem aparente frustração, foi caminhando em direção ao metrô...olhou para o mundo de gente circulando à sua volta..gente comprando, gente vendendo, gente se vendendo e se comprando, gente sem ter o que comprar...julgou estarem todos engolidos pelo sistema, murmurou um "tsc tsc" muito sutil, que ninguém ouviu...e continuou andando, na postura de um verdadeiro lord... havia uma figura curiosa estampada em seu peito, com os dizeres abaixo: "orange mecanic"....ligou seu ipod...

No metrô, via-se aquela incrível diversidade de pessoas que parecem não estarem nem aí pra nada, que não seja descer na estação certa...no fone, tocava algo como Chico Buarque, e a expressão no rosto do homem era de um forçoso orgasmo cultural...olhou para uma menina, feinha, atrapalhada...o título do livro que ela lia, remetia a idéia de que se tratava de auto-ajuda...olhou mais uma vez para confirmar, sim, era auto-ajuda...oh não, pobre garota...mal sabe ela que, se fosse Kafka, Anais Nin, ele poderia amá-la naquele mesmo instante, mas não...autoria de uma zibia alguma coisa...

E assim, ele não a amou...na verdade, ele a recriminou com sua mais profunda desaprovação..desceu escadas, ignorou um mendigo...e ainda faltava uma viagem de táxi, para chegar até o apartamento...

Dentro do carro, riu-se internamente dos comentários que o taxista fazia, de que "o país nunca esteve tão bão"...riu-se do "mal" português, riu-se da suposta ingenuidade política, riu-se de toda simbologia que aquela cena lhe apresentava...não, definitivamente ele não tinha parte com aquele mundo, ele não tinha parte com nada daquilo...deu sua gorjeta ao estilo mais socialista, e andou em direção ao apartamento...

Elevador...corredor...chaves....porta....lágrimas...varanda...pulou!

A repercussão disso, se deu como se dá toda morte, ou seja, carregando-se da mais tênue redenção aos olhos do mundo...o grupo dos amigos, reprovava tristemente o fato, mas no peito tinham um certo orgulho e, talvez, quem sabe até inveja da ousadia do amigo suicída...afinal, mais do que nunca ele pareceu-lhes realmente indiferente a todo o universo, tocando o extremo do extremo....mal sabem eles que, na verdade, o mundo é que lhe era totalmente indiferente.....e incapaz de suportar isso, tirou a vida...agarrando-se à última possibilidade de desafiar a humanidade, a mesma humanidade na qual sempre esteve contido....

E o ipod, jogado no chão do apartamento, solitariamente ainda alertava: "a gente vai contra a corrente, até não poder resistir...na volta do barco é que sente, o quanto deixou de cumprir....lalala"


Autor: Nilma Rezende


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