Capítulo 1



CAPÍTULO 1

Maresias, Janeiro de 1998

O capitão Harry tem me tratado muito bem. Jamais me senti na condição de um prisioneiro mas antes na de um convidado. Ele próprio, aliás, fez questão de deixar isso bem claro no dia em que exibiu meus aposentos aqui em Fort Summer.

– Talvez eu precise de um pouco de tempo. Talvez mais tempo do que imaginava...– murmurei, admirando o asseio da sala, e a vista, soberba, dominando toda a praia de Maresias, a praia vizinha, Paúba, tendo inclusive ao fundo, num canto de horizonte envolto em neblina, uma leve silhueta de Ilha Bela.

Harry Callaghan, o capitão, esboçou um sorriso amarelo sacudindo os ombros e saiu da sala sem uma palavra. Achei delicado de sua parte. No dia seguinte passeamos de jipe. Confesso não ter entendido suas intenções. Não emitiu um comentário, um esgar, um pio. Demos carona para um cabo, na altura de Guaecá, até as portas de São Sebastião. Foi, contudo, interessante admirar a paisagem vez por outra entrecortada por veículos militares, pelotões em marcha, um ou outro helicóptero, sem falar na ferrovia agora instaurada, único meio de locomoção permitido seja aos habitantes da região, seja aos turistas em geral. Só mesmo em casos de extrema necessidade, ou à execução de serviços públicos por assim dizer, é permitido trafegar pela velha Rio-Santos. Aquele ordinário passeio pela orla, individual, absoluto, quando o motorista é dono de todas as dinâmicas a ele concebíveis hoje não mais existe. Exceto aos integrantes da Sexta-Frota. E, de certa forma, exceto para mim. Outro dado curioso, ao menos no âmbito estético, refere-se à famigerada bandeira tricolor, repleta de listras e estrelas. Todas as casas requisitadas pelas forças de ocupação possuem seu próprio mastro, confirmando que a bandeira dos ianques decididamente não combina com o verde das nossas matas, com o verde azulado das nossas águas, com o azul do nosso céu. Trata-se de algo confuso, quem sabe uma dissonância, contemplar quaisquer desses elementos servindo de fundo à estampa da conhecida bandeira.

À tardinha, a solidão dos meus aposentos foi rompida pelo capitão Harry, munido de uma cordialidade acabrunhada e duas latas de cerveja.

– A propósito – comentei – minha geladeira está vazia.

Ele sorriu.

Ilha Bela, ou o pedaço que daqui se vislumbra, permanecia envolvida pela névoa, dir-se-ia um único morro largado no oceano, como se tivesse acabado de se desprender do continente sem tempo ao menos de lhe dar um último adeus. Melancólico, muito melancólico esse fragmento do entardecer. E muito particular. Passados alguns minutos, Harry perguntou como havia sido a minha"entrada" em 1998.

– Quero dizer...- emendou, meio hesitante, escolhendo as palavras – foi uma experiência..humm...tranquila?

Engraçado. Sempre soube que algum dia essa pergunta viria à tona, embora jamais a supus assim tão imediata e principalmente vinda da parte de outro a não ser eu. Surrupiaram-me uma questão que eu acreditava reservada a um futuro longínquo e protegida por uma intimidade indevassável. Sou, portanto, um ingênuo, ao passo que o senhor Callaghan possui grande sensibilidade no trato com os semelhantes. Ocorre que o ano novo começou há 72 horas. Certas respostas requerem unicamente a verdade, tanto quanto uma boa dose de maturação para que isso aconteça. Foi no meu inglês arrastado que eu lhe disse tais coisas e o que li em seu rosto pareceu-me compreensão. Não obstante, adoraria saber que tipo de imagem meu ser expressara quando nos vimos pela primeira vez, 72 horas atrás. Ansiedade? Medo? Angústia? Ou será que a incrível paz de espírito percebida naquele dia fora mesmo real?

Sete e quinze da manhã, dia primeiro de janeiro de 1998, quando cheguei ao Centro de Inteligência das Forças de Ocupação, em São Paulo, no prédio onde outrora funcionava o colégio Sant Paul. Lembro de ter achado um tanto irônico os gringos terem escolhido esse local embora não saiba dizer por que. Tão logo solicitei a presença do oficial encarregado e este se apresentou, meu discurso esvaíra como se tivesse sido ensaiado por toda uma vida. Primeiro, ele riu na minha cara, mas fora um riso nervoso, que rapidamente se diluiu em espanto. Há um tipo de discurso cujo timbre, a postura, a incisão e sobretudo, no caso, a qualidade das informações nele embutidas, não cedem margens à dúvidas. Meia hora mais tarde já não era apenas o vulto do oficial encarregado, que não outro senão o capitão Callaghan, que fincava os calcanhares na "sala de interrogatório". O sub-comandante das Forças Especiais, general Arnold Singer, bebia litros de café, oferecendo-me vez por outra uma pequena xícara. Tom Dawson, o homem forte da CIA em terras tupiniquins competia com o general Singer pelo mesmo café, embora sua cortesia para comigo deixasse muito a desejar. Estavam ambos insones, recendendo a álcool e tabaco, praticamente recém-saídos da grande festa de "reveillon" ocorrida no Palácio dos Bandeirantes, evento que reuniu, ou antes mesclou, a elite de nativos e invasores para o brinde de final de ano. Ainda que sob velada censura a mídia soube tecer comentários picantes sobre a essência confraternizadora de tal sarau.

Nunca o meu inglês soara com tamanho asseio, dir-se-ia uma roupa elegante e muito bem passada, o meu inglês. Ao menos no que tange à transmissão, já que a recepção, devido a irritante rapidez com que os homens falavam, obrigou-me a concluir que o domínio de outros idiomas tem muito em comum com a percepção musical, ou seja, questão de ouvido. Em mais de uma ocasião fui obrigado a interromper com firmeza a verve dos inquisidores. Que falassem com vagar e retidão, exigi.

– Vamos repassar tudo mais uma vez... – disse Tom Dawson, com ar rancoroso.

Não saberia estabelecer com precisão qual dos fatores foi o maior responsável pelo que me aconteceu em seguida. Quem sabe uma pressão monstruosa, embora ali impressentida, venceu-me as forças com o peso de um guindaste. Ou talvez, o que se mostra aparentemente provável, o jejum prolongado mesclado a horas e horas de meditação, sem mencionar a estupenda concentração de deblaterar com aqueles homens na sua própria língua, o caso é que, tão logo o sr. Dawson falou "vamos repassar tudo...", o universo tornou-se a princípio cinza, depois ondulante e então disforme. Em suma, desmaiei. Chegaram a supor algo de grave. Contaram-me que ao abrir os olhos tudo o que dizia era incoerente, num misto de inglês – português, mas que clamava com fervor por um prato de arroz com feijão e um copo de água. Nada disso me vem à memória. É pena. Mas parece que fui bem alimentado, daí tornando a dormir, sem ajuda de qualquer medicamento, vindo acordar apenas no meio da tarde. O que se deu durante esta "ausência" culminou por determinar minha ida para Maresias. Acertaram o seguinte: de momento, nenhuma palavra deveria vazar. Silêncio absoluto. Aquilo, ou melhor, o nosso encontro, não havia acontecido.

– Você não vai contatar o seu pessoal, Dawson. Se ousar encostar nesse telefone... E você Callaghan, adivinhe, aquele sujeito deve estar sob tremenda pressão. Leve-o daqui, o mais depressa possível.

– Fort Summer...- grunhiu Dawson.

– Exatamente – enfatizou o general Singer – acho que é desnecessário enfatizar a importância de tudo isso, a importância desse homem...Veja bem, Callaghan, trate-o com o mesmo cuidado que teria por um recém-nascido. Nada de celas ou algemas, pelo contrário, trate-o com dignidade, coloque-o nos melhores aposentos de Fort Summer, cuide da sua alimentação, do seu bem estar, da sua saúde. Não o quero resfriado, de porre, sequer com insolação ou uma simples diarréia. Reúna uma equipe médica de primeira para um plantão permanente, dentro da base. Fico apavorado de pensar no nosso homem nas mãos daqueles açougueiros...

– Pelo amor de Deus, Singer – exasperou-se Dawson – você perde o senso de realidade. Esse rapaz ainda não completou 30 anos!

– E daí? – reagiu o general, cuja cabeleira branca e os olhos azuis pareciam inflamados – e se ele comer ostras estragadas?

Dawson virou-se para Callaghan e disse:

– Você se fodeu, capitão. Terá até mesmo de provar a comida do rapaz. Vais virar um provador, como nos tempos de Cleópatra.

– Fará o que for preciso – sentenciou secamente o franzino general – haverá questionamento por parte de todos, capitão, sobretudo por parte de seus superiores. Sua resposta será sempre a mesma: assunto confidencial e caso lhe aborreçam, faça com que entrem em contato comigo.

Callaghan estava cansado, aturdido com as últimas horas e exasperado ante as vindouras. Fazia menção de se retirar alegando que haviam ainda uma série de preparativos a serem feitos, solicitar um helicóptero, por exemplo...

Singer rodopiava pela sala com o cenho franzido, parecia não escutá-lo. Depois de alguns segundos ele repetiu, absorto:

– Helicóptero? Em hipótese alguma. Vocês vão por terra, a 30 milhas por hora, escoltados...hummm ora, veja o que há por aí mais à mão. Em todo caso eu quero um helicóptero na escolta. Ah, vamos ao óbvio – vigilância permanente e discreta, discretíssima. Recrute gente leal a você. Que sejam eficientes e não façam perguntas. Outra coisa capitão, diga-lhe que concordamos com tudo, que seus termos são razoáveis e que o atenderemos prontamente, mas...por outro lado também temos nossas exigências – a mais importante delas – para que ele não pense que está se transformando em prisioneiro, refere-se a sua permanência em Fort Summer. Diga-lhe que dentro de 2 ou 3 dias iremos ao seu encontro para acertarmos os detalhes finais.

– Você se esquece de uma coisa, Singer – comentou Dawson com displicência – o rapaz quer escrever. É sua exigência primordial. O que ele pensará de nós se, quando chegar ao litoral, deparar-se com um homem provando-lhe as ostras, uma equipe médica tomando-lhe o pulso e nenhum computador em seus aposentos?

Singer sempre detestou o pessoal da CIA e a figura de Tom Dawson não consistia exceção, sobretudo agora, com o corpo estirado na cadeira, os pés cruzados sobre a mesa, um palito entre os dentes. Além do que, o olhar que lançou sobre o agente deixava isso bem claro, o que não o impediu de dizer, em contrapartida...

– Você faz jus ao seu salário, Tom. Computador para o rapaz, capitão. Computador, lápis, caneta, borracha, gravador, pilhas de fitas cassete, resmas de papel, o que ele quiser. Ele vai mesmo precisar de outras coisas e conto contigo para providenciá-las. Mesmo com o comércio fechado não será difícil...hummm....vá até esse lugar aqui perto, "Iguatimi Mall", acho que é esse o nome, ou os comerciantes com lojas na rua, sei lá, convença o pessoal a abrir as lojas, pague-lhes o dobro se for preciso...

– Para que isso, Singer?

– Porque eu não quero que o nosso homem tenha, a partir de agora, o menor contato com o seu mundo – sua casa, seus conhecidos, sua família...Também não o quero em Fort Summer em trajes militares, ou mesmo nu, eis porque. São exatamente 13:05 h...Apresse-se cap. Callaghan, hoje será um dia cheio...

– Humpf – fez o homem forte da CIA. E para infortúnio de Harry Callaghan, já em vias de sair do recinto, Tom interrompeu-o com vigor.

– Espere um minuto – exclamou ele, levantando-se com agilidade para a porta e retirando a mão de Harry da maçaneta. Depois de duas voltas na chave, sob a apreensão dos militares, disse:

– Não adianta você me olhar com essa cara, Singer. O capitão aqui será testemunha do que tenho a dizer.

– Contanto que seja breve – bufou o general, ciente de que seria inútil protestar.

Dawson deu de ombros. O mais importante, segundo ele, era que a permanência dos quase 2 milhões de americanos aqui instalados tivesse um fim, ou antes, que ao menos começasse o estágio do início do fim.

– Você, Callaghan – voltou-se para o capitão, amargurado, por mais essa agora – há quanto tempo você está no Brasil? Três anos? Mais? Você é do Missouri, certo?

– Virgínia. E estou aqui há 3 anos, 10 meses, 22 dias.

– E então Singer, percebe? Já se começa a contar os dias...

– E daí? Como se isto fosse um grande fenômeno. Abrevie Dawson, abrevie, pare com esse sentimentalismo barato, está pretendendo chegar aonde?

– Bem, vou lhe dizer onde. Uma das maiores invasões militares de todos os tempos, e com certeza das mais peculiares também, considerando o incrivelmente reduzido número de baixas. Invasão esta que culminou na mais abrangente, onerosa e vultuosa ocupação da nossa história militar, pelo menos desde a Segunda Guerra, e todo o universo de reações aí implícito, em suma, tudo isto hoje, a partir de hoje, pode estar prestes a se acabar. Este maldito jogo terá enfim um termo, nós...nós...

Ele parou para esfregar os olhos. As palavras não lhe vinham mais. Sentia-se perdido, profundamente perdido, esmagado por duas vontades opostas – a de agir de imediato, implacável, e terminar tudo aquilo, e a de ir para casa, tomar um banho e dormir. Havia um nó em sua garganta e um tom avermelhado em seus olhos.

O capitão respirou fundo. Aquilo ia demorar, pensou aflito. A resolução de ano novo era não fumar, não importa o que acontecesse. Tal determinação fora por ele mentalizada repetidas vezes, à exaustão, sobretudo na noite de ano novo. Ora! Talvez no ano seguinte, no acalanto de um pequeno rancho lá na Virgínia, quem sabe. Agora, o ato de fumar transformava-se num dever quase patriótico. Filou, portanto, um cigarro de Dawson.

– Acho melhor você se sentar, Callagham.

– Estou bem de pé, general.

– Ok, ok...- murmurou Singer, andando bem devagar.

O que pairava ali entre eles estava longe de se qualificar como um silêncio constrangedor mas sim uma espécie de vácuo. A própria expressão de Dawson consistia num nada composto de carne e orifícios. Singer voltou-se para o agente da CIA e perguntou-lhe a idade. Trinta e sete este respondera.

– ...então, sou 29 anos mais velho que você. Ou 23? Porque daqui a alguns dias farei 66...mas não, que tolice a minha, afinal você completa 37 este ano...Bem, são idades interessantes a minha e a sua. Ocorre que o dígito 66 já vem com a famigerada tarja conhecida como velhice. E a velhice, embora possa não parecer, tem lá as suas vantagens. Será que uma delas é eu saber, com plena segurança, a essência do seu palavrório inacabado? Em alguns pontos eu lhe dou razão. Estamos todos cansados, loucos para voltar, loucos para terminar esse maldito jogo. Reaver o que é nosso, motivo supremo de estarmos aqui...e ponto final. Particularmente, estava prestes a perder as esperanças.

– De voltar para casa?

– Não, mas de voltar de mãos abanando. E no entanto hoje, ou melhor, ontem...é engraçado...acho que foi minutos antes de soltarem os fogos, veio-me algo parecido com o que se diz premonição. Algo dentro de mim ressoou várias vezes, expressando assim: em 98 será diferente, em 98 a claridade que faltava... Contei para minha esposa quando fomos nos deitar, há algumas horas atrás. Estava praticamente amanhecendo e havia um pássaro com trinado tão forte que me deu vontade de apedrejá-lo, de xingá-lo...O caso é que adoro pássaros, o que tem em muito suavizado a minha estada por aqui. Mas vejam vocês, eu tinha certeza de que o telefone ia tocar. Não me perguntem como mas eu lhes juro – sabia do telefone e da relação com a claridade pela qual tanto ansiava...Se é que vocês me entendem. Quanto a você, Dawson, não posso censurá-lo, porém o seu breve falatório pretendia mesmo era atingir a minha conduta.

– Você nem ao menos tem certeza de que ele não está blefando – resmungou Dawson, de rosto inchado e ar de derrota.

– Mas você conseguiria essa certeza, não é? Em 10 minutos você e seus rapazes obteriam essa certeza. E, caso ele não estivesse blefando, bastariam outros dez minutos para que ele nos desse todas as informações de que precisamos, sem barganhas, sem acordos, sem diálogos...

(Trecho do Capítulo 1 do livro "Os Detalhes da História", à disposição dos leitores no site recanto das letras)


Autor: Bernard Gontier


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