A Presença do Estrangeiro nas Instâncias Educativas



O Ensino de Línguas

Acreditamos que atualmente, não é mais factível um verdadeiro ensino de línguas, seja o vernáculo ou uma língua estrangeira, em que o professor se coloque como detentor do conhecimento e o aluno mero e passivo depósito.O alto índice de reprovação, afirmações como 'eu não sei nem falar o português, quanto mais essa língua aí', indicando que a língua materna é também para ele uma dificuldade, denotam que ainda estamos, nós os professores de línguas, muito aquém de colocar a função interativa da linguagem como norteadora de nossas práticas pedagógicas. Em uma sociedade crescentemente multicultural não podemos deixar de considerar a 'função interativa' da língua. Como afirma Magnanti (2001:50),

Trabalhar a linguagem como processo de interação exige redefinição de papéis: o professor não pode ser visto como o agente exclusivo da informação e formação dos alunos, antes atuará como mediador. Seu papel é polemizar, discutir, ouvir as diversas vozes, desafiar. No processo de interação, as falas são imprevistas, elas constituem a essência do processo de ensino. Trabalhar nessa perspectiva é ver as interações verbais e sociais como espaço de construção de conhecimento.

Tal trabalho demanda um série de ações que nos movem de nosso comodismo e nos impulsionam a ir além do que temos em nossa memória como sendo a maneira 'correta de ensinar uma língua'. Por enquanto, mesmo com as leituras e discussões que a graduação ou um curso de especialização nos conduziram a fazer, ainda reproduzimos o mesmo discurso que nos tolheu em muito nossa criatividade e liberdade de expressão e que repetidamente retransmitimos às gerações que se sentam nos bancos das escolas.

Ora, se o papel o professor é 'ensinar' e o do educando é aprender – não é esse, ainda,nosso conceito sobre esses protagonistas da educação? - não há entre esses dois atores qualquer relação de igualdade. Ou seja, fazemos da escola um espaço de reproduções, uma fábrica como outra qualquer, com o professor como modelo e o educando conseqüentementea cópia.

A respeito disso REIS FILHO (1980) faz uma reflexão sobre o papel do professor que nos auxilia em nossa discussão. Normalmente a maioria de nós consegue se ver em uma dessas três funções colocadas pelo autor como as que pertencem a um professor:

a) função domesticadora – "Trata-se de desenvolver na criança (ou jovem) certos comportamentos de conformismo, de quietude, do chamado 'respeito' pelos mais velhos, e poda os impulsos da criança de modo que ela se transforme, o mais depressa possível, em um membro 'agradável' da convivência social" (p. 53).

b) função doutrinadora – "Trata-se de transmitir um certo volume de informação e a educação decorre desse número de informação acumulado. Então a transmissão de doutrina, a respeito de como escrever, como falar corretamente, como ler um texto, a doutrinação de como usar os instrumentais à disposição do aluno, passa a ser dominante" (p. 54).

c) função de treinamento – "Trata-se de treinar o aluno a realizar certas tarefas consideradas, pelo professor, e até, às vezes, pela sociedade, como sendo importante [sic]. Treinamento de falar corretamente, de ler um texto corretamente, de fazer uma redação corretamente" (p. 54).

Em todas essas funções o professor é o protagonista, o ser preparado e outorgado pelas instituições acadêmicas para instruir e conduzir os alunos ao 'caminho certo'. Quando falamos de professores de línguas esse aspecto é ainda mais marcante. Quem de nós não fora tolhido em criatividade quando colocou toda sua emoção numa pequena redação e a recebeu depois cheia de 'manchas' vermelhas sem nenhuma consideração escrita ou sequer verbal sobre o conteúdo do que escrevemos? Ainda não aprendemos a educar. Estamos ainda repetindo a mesma prática doutrinadora, domesticadora e/ou de treinamento. Reis Filho (1980) expõe em seu artigo a necessidade de transformação do papel de professor para assumirmos a de 'educador' preocupados com a formação de cidadãos consciente não simples cópias que perpetuam a situação social vigente.

As aulas de Língua Portuguesa ou, em grau maior ainda, as de Língua Estrangeira vêem deixando muitos alunos frustrados com sua incapacidade em aprender a língua que lhe obrigam a estudar. Nós, os professores de línguas, aparentemente estamos inconscientemente nos vingando de toda 'tortura' que nos fizeram passar até que finalmente, talvez na graduação, nos sentíssemos de fato capazes de falar nossa língua. Outorgados pelo diploma das universidades, nos sentimos com poder suficiente para imprimir em nossos alunos os mesmos traumas que trazemos da rotina vivida no ensino e aprendizagem de línguas quando éramos nós os alunos e parecemos nos deleitar em afirmar a um aluno que ele está errado, arrolando em seguida diante dele todas as regras gramaticais que justifiquem a correção.

Porém, vale lembrar, há os que conseguem não repetir essa cadeia, raros educadores, mas presentes em nosso meio.Não cremos que essa seja realmente uma vingança e que a maioria de nós realmente esteja ensinando línguas para diminuir através da dor do outro a sua própria. Nós simplesmente, ainda, não conseguimos romper com esse paradigma antigo de ensino de línguas em nosso cotidiano docente.

Se o ensino da língua materna tem essas seqüelas, o ensino de língua estrangeira está moribundo. Raros não são os alunos que concluem o ensino médio sem sequer distinguir em I am qual seja o verbo e qual o pronome, embora essa diferenciação não contribua muito, dependendo da discussão levantada pelo educador, para a formação de um cidadão consciente. Além das inúmeras reclamações do incômodo que significa o aprendizado de uma língua que 'em nada se parece com a língua portuguesa' e em que 'tudo se fala ao contrário' (referindo-se a língua inglesa).

Estamos vivendo um tempo em que urge a disposição para o aprendizado de uma segunda língua, e aqui não nos referimos especificamente ao inglês, a globalização e as infinitas possibilidades de acesso às informações que as tecnologias midiáticas globalizantes nos expõem diariamente.

Destacamos a seguir algumas razões pelas quais devem educador e educando se aventurar nesse desafio árduo – ambos como aprendizes - que é o ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira.

A Sala de Aula de Língua Estrangeira

Embora nosso intuito seja levantar uma discussão entre os professores de línguas sabemos que muito do que será discutido aqui é plenamente aplicável a qualquer situação pedagógica.Nessa parte de nosso artigo queremos inicialmente colocar uma afirmação de Larrosa (2004:154) que deveríamos ter diante de nós a cada início de trabalho docente:

A experiência é o que nos passa, ou o que nos acontece, ou que nos toca. Não o que passa, ou o que acontece ou o que toca, mas o que nos[1] passa, o que nos acontece ou nos toca. A cada dia passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que passa está organizado para que nada nos passe. (...) Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

O que essa afirmação tem a ver com nossa rotina pedagógica? Tudo. Larrosa defende a necessidade de ser 'sujeito da experiência' para podermos passar de cópias para sujeitos históricos conscientes de seu papel na sociedade. Ora, se em nossas aulas de línguas nada 'toca nosso educando', nada 'acontece' com ele, criamos nas salas de aula de língua estrangeira um espaço em que se impossibilita que o mesmo se torne sujeito da experiência e passe a ser 'sujeito' construtor de seu desenvolvimento cognitivo tendo o educador como mediador.Um sujeito que se expõe sem temor diante da novidade, se não pode deter o temor pelo menos o dá a categoria de obstáculo esse é o 'sujeito de experiência' que nossos educandos devem ser. Sem essa prerrogativa o ensino de língua estrangeira sempre ficará nos moldes de hoje, sem subsidiar os educandos para o pleno exercício da cidadania numa sociedade cada vez mais plural. Cabe a nós promover atividades que o incentivem a ser esse tipo de sujeito.

Imaginemos uma classe em que trinta e cinco alunos têm uma aula semanal de alguma língua estrangeira. Por não serem 'sujeito da experiência' não querem jamais se expor ao que para eles é simplesmente 'ridículo': tentar aprender, ou até falar uma língua que lhe é vista como identidade alienígena, distante de sua realidade e diferente em tudo do que ouve desde que foi gerado. Pelo fato de não se exporem não se tornam sujeitos da própria aprendizagem e se contentam com a nota suficiente para dar continuidade a sua vida escolar sem ter qualquer preocupação em assimilar ou entender o porquê se ensina uma língua estrangeira na escola pública, em que a clientela em sua maioria não tem acesso a uma escola de idiomas.

Por Que Aprender Uma Segunda Língua?

Não discutiremos aqui os objetivos porventura bastante discutidos de um ensino de língua estrangeira no ensino público como, por exemplo, aprender uma língua em que o educando, que freqüenta a escola pública, possa ter acesso à informação que a globalização disponibiliza. Aqui queremos levantar reflexão sobre a importância do ensino de língua estrangeira na formação da identidade e na autocompreensão de cada indivíduo que por anos se senta no banco de uma escola. Para alcançarmos esse intuito nos embasaremos em Larossa (2002) no texto "Para qué nos sirven los extranjeros?"[2] Segundo o pedagogo, o estrangeiro tem um papel fundamental na auto-compreensão do sujeito.

A presença de um espelho – como a própria língua - não auxilia muito na compreensão ou mesmo na simples definição, se possível do que seja "eu". Contudo o estar diante do outro – estudando a língua de um outro - que me é estranho, singular, essa sim é uma experiência que me instrumentaliza dizer de mim, de minha etnia. Sem a referência do outro a impossibilidade de uma auto-compreensão seria inevitável. Mas é a partir do outro que posso delimitar com mais definição o perfil de minha identidade passando, assim, a me perceber como OUTRO diferenciado do que está diante de meus olhos. Contudo é imprescindível, para tanto, que eu permita que o outro seja, mesmo que esse ser dele me toque tão profundamente que termine por causar sentimentos inquietantes por vezes de desprezo, asco, admiração ou inveja, retomando Larossa (2004) esses são sentimentos aos quais o 'indivíduo da experiência' está sujeito caso se disponha a ser.

Para Larossa (2002) a

'compreensão tem uma estrutura reflexiva, como um movimento de ida e volta. Toda compreensão é retorno. (p. 68) A verdadeira morada da compreensão está na região intermediária entre a estranheza e a familiaridade.' (p.77) A compreensão habita um lugar fronteiriço: o limite de onde se daria a tensão entre o familiar e o estranho, o que é ele mesmo, entre o idêntico e o diferente, entre o próprio e o alheio, entre si mesmo e o outro.

Se levarmos essa reflexão para o ensino de línguas concluiremos que compreender a própria língua se realiza em plenitude quando nos deparamos com a língua do outro. Não apenas em um contato superficial, mas em um contato que poderá inicialmente me causar estranheza e aversão. Para tanto é necessário que nos estranhemos a nós mesmos de forma que o encontro com o estrangeiro – através do estudo de sua língua em sala de aula - nos leve a apreender que, na realidade, nós também somos estrangeiros. (p. 69) A língua estrangeira geralmente é diante dos educandos um ser obscuro e sempre enigmático que tentam – e muitos conseguem - ignorar tão facilmente e cuja simples presença provoca reações contraditórias, inquietantes às vezes.

Segundo Larossa (2002)

o estrangeiro é o que não se deixa representar. Não permite que ninguém o represente (que nada fale em seu nome) e não quer representar nada nem ninguém. Não representa nada, senão que é ele mesmo a pura presença que burla toda representação, que não admite captura (p. 83). É o que te permite sentir-se em casa, te permite ser tu mesmo fazendo de ti proprietário da casa. (p.69)

Em suma, a estranheza, a presença do estranho, é indispensável para a auto compreensão. Somos incapazes de percebermos como somos sem que tenhamos o auxílio da presença do outro como o diferente, servindo-nos como parâmetro a própria identidade que só pode ser diferente havendo comparativos, senão é igual, mesmo. Não esquecendo a necessidade da dúvida. A compreensão exige o duvidar de si mesmo, de suas certezas e dogmas, embasados no principio de que não somos nós os detentores da 'verdade' nem o outro, estrangeiro.Compreender demanda, portanto, abandono de crenças e preconceitos a muito tempo arraigados em nossa prática cotidiana para que possa olhar e ver no outro o que ele é, não o que gosto que seja, nem apagando minha experiência de vida, minha razão, mas do entre-lugar do que seja eu e do que é o outro para, compreendendo ele, passar a compreender melhor a mim mesmo e ao mundo que me cerca.

A aprendizagem de uma língua estrangeira tem esse fator a ser considerado que passa despercebido a muitos profissionais do ensino de línguas.

Para muitos de nossos educandos que freqüentam a escola pública e têm dificuldades financeiras que os impedem de ter acesso a internet e nem sequer cogitam a possibilidade de viajar a um país estrangeiro, nem têm contato com os turistas que vêm em busca das belezas amazônicas, o contato com a língua estrangeira nas instâncias pedagógicas pode, desde que ele se sinta sujeito da experiência, auxiliá-lo a compreender melhor sua identidade, sua comunidade, valorizar sua cultura e a do outro dependendo de como o educador constrói em sua sala de aula um espaço de verdadeira aprendizagem da língua, não simples lugar de repetição de discursos opressores e mantenedores da situação vigente. De forma que o educando se sinta capaz de descontruir o destino que crera ser o seu. Acreditamos que todo ser humano é destinado para o pleno desenvolvimento cognitivo auxiliando na construção de um mundo mais humano e o ensino de língua estrangeira tem muito a contribuir nesse processo.

Palavras Iniciais

Temos a pretensão de encerrar nosso artigo intitulando nossas palavras finais como palavras iniciais, pois elas desejam suscitar o início de uma discussão que seja fruto da reflexão sincera de nossa prática pedagógica como professores de línguas, em especial os professores de língua estrangeira como os que têm em suas aulas o espaço do único confrontamento com o estrangeiro, propriamente dito, que muitos de nossos educandos que freqüentam a escola pública talvez possam ter. De forma que não podem, sob pena de sentirem-se eternamente frustrados – afinal de contas os anos que os educandos dedicam ao aprendizado por vezes sequer os instrumentalizam para conversas ou leituras simples – e perder também a oportunidade de a partir do estranhamento que a língua estrangeira traz aprimorar a compreensão da noção de pertencimento de si como 'sujeito' em relação à comunidade lingüística a que pertencem.

Os educandos que freqüentam a escola pública necessitam ter, nas instâncias pedagógicas, espaços em que sua identidade seja firmada para procurarmos reparar a desigualdade social a qual se acham destinados a perpetuar em suas vidas, e da qual não vislumbram como sair. Logo, o ensino de línguas estrangeiras em escolas públicas deve ser incentivado e estimulado por todos os atores das instâncias pedagógicas, independente de sua área específica, por ter em muito a contribuir para a construção de cidadãos conscientes e servindo, inclusive de pontapé inicial para que as nossas escolas deixem de ser 'fábricas de indivíduos' em que o que não sai exatamente igual ao protótipo proposto é rejeitado no setor de 'controle de qualidade'.

Referências

LARROSA, Jorge. Para qué nos sirven los extranjeros? In: Educação & Sociedade: revista quadrimestral de Ciência da Educação/ Centro e Estudos Educação e Sociedade (CEDES) Campinas: CEDES, 2002.

_____________. Linguagem e Educação depois de Babel. Traduzido por Cynthia Farina. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MAGNANTI, Celestina. O Que se Faz com a Llinguagem Verbal?. In: Revista Linguage

em (Dis)curso. Volume 1, número 1, jul./dez. 2001. Online: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem

REIS FILHO, Casemiro dos. O professor como educador. In: LEITE, Cília C. Pereira (Madre Olívia), SILVEIRA, Regina Célia P. da (coord.). A Gramática Portuguesa na Pesquisa e no Ensino nº 1. São Paulo: Cortez Editora, 1980. p. 53-62.




Autor: Queila Barbosa Lopes


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