Impactos Sociais e Econômicos da Demarcação de Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul – Experiência da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima



1. Introdução

A sociedade sulmatogrossense e o entendimento jurídico contemporâneos defrontam-se com um intricado dilema face à possibilidade da demarcação de terras indígenas no estado de Mato Grosso do Sul.

Observa-se, nesse ínterim, a colisão dos interesses de dois grupos sociais distintos: a população indígena que, de um lado, encontra-se marginalizada e clama por seu direito ao acesso a terra, previsto na Constituição; e a sociedade ocidental colonizadora, na figura dos proprietários rurais que se apoderaram e lograram a propriedade das antigas terras indígenas, os quais temem pelos impactos econômicos e sociais inerentes a um processo demarcatório que afeta sobremaneira as atividades econômicas estabelecidas nas regiões delimitadas.

Desta feita, faz-se necessária uma análise criteriosa dos impactos sociais e econômicos da provável demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul, bem como das conseqüências futuras de tal processo demarcatório no Estado em voga. Para fins de comparação e solidificação de um entendimento, apresentam-se os efeitos práticos da homologação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

2. Demarcação de Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul

Mesmo com toda dificuldade em sobreviver e resistindo aos avanços da modernidade, seis nações indígenas de Mato Grosso do Sul ainda mantém seus costumes, tradições e sua língua nativa. As etnias Kadiwéu, Guató, Terena, Ofayé, Caiowá e Guarani somam mais de 60 mil índios no território do Estado, colocando-o como o segundo mais populoso do país, atrás apenas do Amazonas, segundo dados da Fundação Nacional da Saúde.

A despeito de tamanha expressividade, os indígenas de Mato Grosso do Sul encontram-se relegados à vivência em aldeias distantes dos grandes centros, afastadas umas das outras, sem as mínimas infra-estruturas básicas de sobrevivência, pequenas e inapropriadas para o cultivo agrícola e preservação de sua cultura. Assim sendo, muitos índios são obrigados a migrar para as regiões urbanas e ocupar subempregos como forma de obtenção de renda, o que acarreta em sua marginalização.

Em face de tal situação deprimente dos índios sulmatogrossenses, há a emergência de uma política de governo que vise a salvaguardar os interesses das etnias indígenas estabelecidas no Estado.Desta feita, justifica-se a realização de estudos antropológicos que visem a analisar a possibilidade de demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul, o que representa um direito dos índios, previsto constitucionalmente.

Conforme versa o artigo nº 231 da Constituição do Brasil de 1988:

Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

O supracitado dispositivo constitucional considera, pois, a necessidade de se pensar nos índios como indivíduos dotados de uma cultura específica, ligados permanentemente à terra e que, assim sendo, devem ter suas especificidades observadas pelo Poder Público.

A demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul encontra seu fundamento no fato de que as nações indígenas, tendo hábitos tipicamente agrícolas, necessitam de áreas que lhes possibilitem a perpetuação de suas culturas e costumes. Ademais, há que se levar em conta o fato de que muitos índios são, em essência, nômades, e, assim sendo, devem ter condições para que perpetuem tais peculiaridades.

Nesse viés, áreas específicas de domínio indígena representariam, pois, a segurança de que os índios, sob tutela do Estado, teriam sua cultura preservada e suas condições básicas de sobrevivência garantidas, o que acarretaria em sua fixação na terra a qual nasceram, e a qual pertencem seus ancestrais.

Entretanto, saliente-se que preservar a cultura dos índios não significa somente alocá-los em uma quantidade razoável de terra, isolada de todo e qualquer resquício da cultura do homem branco. Há que se garantir aos indígenas também, por intermédio de uma política indigenista de Estado, certos direitos básicos de qualquer cidadão, como o acesso à saúde e educação, que são requisitos previstos na Constituição.

Ressalte-se, para fins de conclusão, que não há como se pensar no desenvolvimento do Estado de Mato Grosso do Sul sem considerar as questões sociais de seu território, ocupado por etnias e grupos os mais variados possíveis. Desta feita, é extremamente pertinente um estudo com vistas à demarcação de terras indígenas em observância aos direitos desses povos.

Porém, é essencial que se leve em consideração, por sua vez, os impactos econômicos e sociais inerentes a um processo de demarcação de terras. Como se sabe, devido a uma política de governo adotada desde o período da colonização brasileira, boa parte das áreas que antes eram territórios indígenas foram expropriadas desses povos e passaram a fazer parte do processo produtivo de uma série de bens essenciais a nação, como um todo.

Desta feita, faz-se necessária uma análise minuciosa dos impactos sociais e econômicos de um processo de demarcação de terras em Mato Grosso do Sul. Para tanto, utiliza-se o caso da demarcação e homologação da reserva indígena Raposa Serra do Sul, em Roraima, para fins de exemplificação e solidificação de um entendimento acerca do tema em voga.

3. Impactos Sociais e Econômicos da Demarcação de Terras Indígenas – O Caso de Roraima

É sabido que boa parte das terras que antes eram ocupadas pelos índios foram integradas às mais variadas formas de atividades produtivas, sobretudo durante o período militar da década de 70, sendo que um atual processo de "reintegração de posse" em favor dos indígenas representaria uma série de prejuízos econômicos para a nação brasileira, como um todo. Ademais, há o permanente risco de conflagrações sociais entre os grupos afetados por uma decisão governamental desta abrangência.

No caso de Roraima, observa-se que o processo de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, que ocupa área contínua de três cidades num total de 1,74 milhão de hectares, é alvo de contestações judiciais e disputas entre índios e fazendeiros. Nos últimos dias, a resistência de produtores agrícolas da região tem aumentado, levando a conflitos armados.

Sobretudo em tempos onde a necessidade de produção de alimentos tornou-se imperativa, os impactos da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol na produção agrícola de Roraima tomam uma relevância ímpar. Conforme dados da Associação dos Rizicultores de Roraima, cerca de 40% da produção agrícola da região concentra-se nas terras hoje pertencentes aos índios de Raposa Serra do Sol. Portanto, há que se observar essas questões de cunho produtivo e econômico inerente a um processo demarcatório.

Ressalte que Roraima é uma região que tem suas bases econômicas alicerçadas na agricultura. Isto posto, a homologação de Raposa Serra do Sol causou prejuízos nesse setor e, por conseguinte, diminuiu as receitas do Estado em questão, comprometendo possíveis investimentos do governo roraimense à população, como um todo.

No caso particular de Mato Grosso do Sul, que está na iminência de um processo de demarcação de terras indígenas, há projetos de maciços investimentos, sobretudo no setor sucroalcooleiro, para áreas que seriam alvo de estudos antropológicos. Se a demarcação se efetivar em definitivo, as estimativas apontam que o Estado perderá recursos correspondentes a 20% de seu Produto Interno Bruto, perfazendo um total de aproximadamente R$ 4.368.400.000,00 (estimativas de 2008).

Uma peculiaridade no caso da demarcação de terras indígenas de Mato Grosso do Sul concerne à continuidade, ou não, de toda a área demarcada neste Estado. Algumas estimativas um tanto quanto exageradas apontam que, se tal processo demarcatório for contínuo, ou seja, em uma área global, sem falhas, cerca de 33% de Mato Grosso do Sul passariam a constituir reserva indígena.

Nesse viés, um modelo de demarcação nos moldes da delimitação da área de raposa Serra do Sol, ou seja, de forma contínua, seria desastroso para o caso de Mato Grosso do Sul, uma vez que englobaria grandes extensões de áreas agricultáveis. Assim sendo, é passível de análise a problemática da constituição de prováveis reservas indígenas em território sulmatogrossense.

4. Desastre do modelo de Raposa Serra do Sol em Mato Grosso do Sul

No que tange ao processo de demarcação de terras indígenas, há duas modalidades básicas para se efetivar tal procedimento. De acordo com as especificidades dos índios, identificadas pelos estudos antropológicos, o Poder Público pode demarcar áreas contínuas, globais; assim como pode demarcar áreas fragmentadas, em "ilhas", sempre levando em consideração os recursos básicos para a preservação da cultura dos povos indígenas.

No caso da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, os estudos antropológicos identificaram que havia a carência pela constituição de reserva indígena em áreas contínuas, uma vez que os índios daquela região apresentavam hábitos nômades, bem como tinham uma convivência pacífica, necessitando, nesse ínterim, de livre-trânsito para circulação de um local para outro, e de áreas fartas para manterem seus hábitos coletores e de cultivo extensivo.

Já no que se refere à Mato Grosso do Sul, um processo de demarcação em áreas contínuas representaria um desastre em virtude das especificidades dos indígenas dessa região. As etnias sulmatogrossenses apresentam hábitos completamente heterogêneos e, historicamente, sempre mantiveram ferrenhos conflitos entre si. Assim sendo, um processo de delimitação de áreas indígenas de forma global acirrariam disputas entre índios de diferentes grupos.

Ademais há que se levar em conta o fato de que, no caso de Mato Grosso do Sul, um processo de demarcação territorial de cunho global abrangeria áreas urbanas de alguns municípios sulmatogrossenses, o que provocaria deslocamentos populacionais, desemprego e demais prejuízos econômicos decorrentes destes eventos.

Portanto, em Mato Grosso do Sul, são necessários, pelas características já elucidadas, estudos pontuais que visem à delimitação de áreas específicas e fragmentadas de domínio indígena. Ademais, há que se levar em consideração o fato de que não basta somente fornecer fartas terras aos índios como mecanismo para que se solucionem todos os problemas atinentes à questão indígena brasileira.

Para que se tenha uma idéia da quantidade de terras que já encontram-se sob domínio dos índios, estimativas indicam que aproximadamente 13% de todo o território brasileiro são partes constituintes de reservas indígenas. Portanto, nota-se a expressividade das áreas sob usufruto indígena em detrimento da precariedade e condição marginalizada de vivência de muitos desses povos.

Deste dado, depreende-se, pois, que os problemas indígenas são mais ligados à questões de produção e obtenção de recursos básicos e práticos que lhes possibilitem sua sobrevivência, do que à posse de terras propriamente dita.

Desta feita, com base no que foi elucidado, faz-se mister que o governo do estado de Mato Grosso do Sul, no que tange aos conflitos indígenas de seu território, forneça apoio aos índios no sentido de fornecer-lhes infra-estrutura e recursos básicos que lhes possibilitem sobreviver com dignidade, mantendo, sempre, sua cultura preservada. Claro que isso deve ser feito sempre levando-se em consideração as especificidades de cada povo, evitando-se, assim, conflitos.

5. Conclusão

Face ao exposto, observa-se que é delicado o processo de demarcação de terras indígenas no estado de Mato Grosso do Sul, por envolver interesses de grupos visivelmente antagônicos, quais sejam os índios e os proprietários de terras, que gozam, cada qual, de seus direitos legalmente previstos.

Ademais, ressalte-se que é de âmbito da sociedade, de uma maneira geral, este processo de demarcação de terras, uma vez que seu impacto econômico é generalizado, daí sua importância "global".

Portanto, por se tratar de matéria comum a todos, faz-se necessário um amplo debate público acerca da demarcação de terras indígenas no estado de Mato Grosso do Sul para que se estabeleça, democraticamente, uma situação favorável à maior quantidade de pessoas possível, levando em conta sempre os preceitos legais pertinentes ao tema e os impactos econômicos e sociais inerentes ao mesmo. Este debate deve ser promovido pelo Poder Público, com vistas ao diálogo entre todos os grupos sociais afetados.

5. Referências

Brasil, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Texto Constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988 – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006. 448p.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do Índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987.


Autor: Dyego de Oliveira Arruda


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