A Genealogia Moral de Nietzsche



Analisando as obras Genealogia da moral e Além do bem e do mal de Friedrich Nietzsche, detectamos alguns pontos das proveniências dos valores morais. Nietzsche ressalta a inversão sofrida por estes valores devida às oscilações nas relações de poder. Por isso, quase toda a obra girará em torno da questão do valor: o que é bom? Remete-se esta questão aos impulsos.

Como filólogo de formação, Nietzsche aprofunda-se no estudo do juízo de valor bom e, consequentemente, do juízo de valor ruim. O gênio provocativo de Nietzsche traz, assim, um texto com certo teor sarcástico. Verificamos facilmente este aspecto já na primeira das três dissertações de a Genealogia.

As questões levantadas pelos homens da época de Nietzsche, em especial pelos psicólogos ingleses, na avaliação nietzschiana, não trazem a proveniência do juízo de valor bom e de ruim, pois "[...] estão aplicados à mesma tarefa: [...] colocar em evidência [...](o lado vergonhoso) de nosso interior".[1] O que importa na psicologia nietzschiana é a busca da verdade de uma força imparcial, o oposto do pensamento dos psicólogos ingleses, conforme escreve:

[...] desejo de coração que se dê precisamente o oposto – que esses pesquisadores e microscopistas da alma sejam na verdade criaturas valentes [...], que saibam manter em xeque seu coração e sua dor [...] à verdade, a toda verdade, até mesmo à verdade chã, acre, feia, repulsiva, amoral, acristã... Porque existem tais verdades.[2]

Quando pensa em verdades, Nietzsche quer expressar a interpretação, a perspectiva a que cada um se pauta. O intuito de Nietzsche é o de construir uma história da moral, que ele expressara na obra Além do bem e do mal. Desse modo, a Genealogia é uma crítica, uma verificação que Nietzsche faz do duplo aspecto que existe nos juízos de valores.Sua crítica vai além da perda de um referencial (Deus), chegando à afirmação de uma diferença que se origina nas forças (ativas e reativas).

Na análise de Nietzsche, a moral nasce de duas aplicações: por aquilo que é útil, pois "[...] as ações não-egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis".[3] Essa perspectiva de uma moral útil é a que os psicólogos ingleses apregoam e é a primeira crítica nietzschiana, já que o utilitarismo não entra em sua moral. Esta aplicação da origem da moral no louvor e nas ações não-egoístas foi esquecida mais tarde. Isso fez com que se adquirissem ações altruístas através do costume da linguagem, como se as coisas fossem boas em si mesmas. Temos, aqui, a segunda aplicação da origem da moral, o que leva Nietzsche a fazer um corte com os universais, com a metafísica e com o cristianismo.

Atrelados à utilidade moral que os psicólogos ingleses consideram, estão o esquecimento, o hábito, e o erro. Isso tudo apenas serve para dar base a uma valoração da qual o homem se sente orgulhoso e um privilegiado. O orgulho a tal valoração deve ser humilhado e a valoração desvalorizada, pois é o que fundamenta a teoria que estabelece a fonte do conceito de bom no lugar errado, já que o juízo bom não provém daqueles que se fizeram o bem. Esse pensamento de que o conceito de bom nasce daqueles que através de uma prática que consideram como boa enquadra-se numa perspectiva utilitarista.

Toda a conceitualização do bom e do ruim, originada na antítese da divisão das classes sociais, nasce do pensamento de que o homem é um ser dominante. Isso está inteiramente intrínseco em seus impulsos. No impulso de dominação é que a Genealogia da moral encontrou sua real expressão. Para defender sua perspectiva de que a moral nasce da dominância, Nietzsche faz uso da filologia indo às análises morfológicas das palavras bom e ruim.

Nietzsche escreve que "[...] a origem do juízo de valor bom é historicamente insustentável, em si mesma ela sofre de um contra-senso psicológico".[4] O juízo de valor bom refere-se àquilo que é nobre, que traz felicidade, que é caro aos deuses. No alemão, Gut (bom) refere-se ao divino (Got)e ao homem de linhagem divina.

Analisando a palavra alemã schlecht (ruim), Nietzsche descobre que é idêntica a schlicht (simples). Então, ele chega ao schlechtweg (simplesmente) que, desde suas origens, traz a função de designar o homem simples, plebeu. Isso nos prova que as palavras nascem dentro das circunstâncias, revelando que a classe dominante acabou associando à classe plebéia o conceito daquilo que é ruim, o oposto, a antítese da classe nobre. Por isso, os homens que se sentem e são privilegiados, ou a classe nobre, são os que espalham o conceito do que é bom, do que é bondade, do que é nobreza.

Ao analisar a palavra mau, que vem de malus no latim e de melas (negro) no grego, percebe-se que ela é usada para designar "[...] o homem comum como homem de pele escura, sobretudo como de cabelos negros".[5] O bom, o nobre, o puro é o de cabelos loiros, o que faz oposição com o indivíduo de cabelos negros. Com isso, a conceituação ganhou um caráter estritamente político.

Em sua conceituação extremamente humana, colocando o homem no centro das ações, Nietzsche cria teses totalmente contrárias à dos psicólogos ingleses. No campo da religião, faz uma ferrenha crítica à chamada casta sacerdotal. Essa casta cria como que uma alienação nos indivíduos, pois arroga a si uma posição de preeminência espiritual, colocando-se como mais elevada e proferindo coisas que lembrem sua função e posição. Isso gera a contraposição entre puro e impuro, entre bom e ruim. Essa casta sacerdotal domina todos os estamentos da sociedade: a classe nobre e a classe plebéia.

Contra essa dominação, Nietzsche defende que a moral deve nascer da imparcialidade. Não há necessidade de se levar em consideração os valores trazidos pela classe dos sacerdotes nem tampouco pela classe dos nobres. Contudo, fazendo ainda um estudo psicológico da genealogia, Nietzsche constata que a verdade quanto ao que é bom e ao que é ruim adquire uma nova faceta se olhada pelo lado da plebe. Na classe dominada, o conceito de ruim se atribui à nobreza, pois esta, com suas repreensões, castiga, maltrata, despreza a classe mais baixa. Desse modo, se for perguntado ao escravo quem é o ruim, ele indicará seu senhor.

Tudo isso explica porque o homem só consegue pensar em relação ao pensamento de outros. O bom é aquilo que o homem achou útil para si, vindo do outro. A utilidade mesquinha, a referência a outros para pensar e agir tornam-se, para Nietzsche, uma origem marcada de uma inércia duvidosa e de um hábito sem graça. Isso somente distancia o homem daquilo que é realmente autêntico.

Essa dupla designação interpretada por Nietzsche a respeito dos valores de bom e de mal, bom e ruim abre duas perspectivas divergentes tanto em questão de interpretação quanto de avaliação. É da interpretação e da avaliação que procedem os juízos de valor. Notamos, então, tendo em vista as configurações morais das quais se edificam as interpretações e as avaliações, a existência de duas tendências morais distintas. Consequentemente, essa dupla interpretação e avaliação fará referências a dois tipos diferentes de homem: aquele que é nobre e senhor, e aquele que é desprezível e escravo.[6]

Dentre as diversas morais existentes, entre as mais finas e as mais grosseiras, Nietzsche reúne seus traços mais comuns e chega a, pelo menos, dois tipos básicos e uma diferença fundamental. Em Além do bem e do mal, obra escrita antes de a Genealogia, Nietzsche diz que "[...] Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos [...]"[7], ressaltando que em todas as culturas, sejam elas consideradas superiores e outras inferiores, percebe-se tentativas de mediação entre esses dois tipos distintos. O que não as isenta, também, de gerar, com freqüência, diversas confusões e incompreensões mutuas.

Na condição de que há duas fontes para o nascimento dos valores morais, um deles tem que prevalecer e estabelecer-se sobre a outra. Dentre as muitas diferenças que separam a moral de senhores da moral de escravos, uma das mais importantes relaciona-se à afirmação da diferença. A moral de senhores tem como base o sentimento de distância e superioridade para, assim, fazer as avaliações. Em contrapartida, a moral de escravos baseia suas avaliações na igualdade e na fraqueza. Isso desemboca num antagonismo, separando as duas morais e, também, explicando a relação entre senhor e escravo. O primeiro toma o segundo como desprezível, considerando-o covarde, medroso, mesquinho. Por outro lado, o escravo rebaixa-se a si mesmo, desconfia do senhor e se deixa maltratar.[8]

O fundamento da moral de escravo se dá no medo. Ele teme os que apresentam força e potência que sejam diferentes à sua. Diante desse temor, cria-se uma moral em defesa da coletividade. Por não possuir impulsos que possam colocá-lo acima da coletividade, o escravo opta por uma moral generalizada e não particularizada ou individualizada. A generalização que o escravo faz é uma reação de medo diante do que lhe é diferente.[9]

A moral de escravo torna-se uma moral de autodefesa e suas avaliações são sua evidente característica. A avaliação dessa moral estabelece que o bom é o que favorece a coletividade. O mau, em contrapartida, é aquilo que ameaça essa coletividade.

Já o homem nobre, junto com sua moral, consegue elevar o tipo de homem que é fazendo deste homem o criador dos valores. Isso o distingue dos demais, evidenciando o tipo de avaliações que estabelece sobre a vida e sobre si mesmo. O nobre acredita poder ser o responsável pelas bases às quais os valores se estabelecem, "[...] ele julga: 'o que me é prejudicial é prejudicial em si', sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores".[10] Os conhecimentos que faz de si são honrados, ou seja, o nobre constrói uma moral da glorificação de si mesmo, que consegue com prazer exercer com vigor e dureza consigo e venerando tudo o que é rigoroso e duro.

Mas a moral de escravo tende a se rebelar. Essa rebelião começa quando o ressentimento desse tipo de moral torna-se criador e gerador de valores. Na Genealogia, Nietzsche escreve que "[...] toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', um 'outro', um 'não eu' – e este Não é seu ato criador".[11] A inversão que estabelece valores é algo próprio do ressentimento. A moral escrava, para nascer, pede um oposto, uma exterioridade, requer estímulos exteriores para agir em absoluto, o que torna sua ação uma reação. Nietzsche escreve que esse contrário sucede no modo de valoração do nobre, agindo e crescendo com espontaneidade, buscando seu oposto para apenas dizer sim a si mesmo com maior júbilo e gratidão. Desse modo, o conceito negativo de o baixo, comum, ruim é apenas imagem de contraste em relação ao conceito positivo dos nobres, bons e felizes.

O homem, naturalmente, seja nobre ou escravo, avalia e confere sentido às coisas, pois é vontade de potência. O escravo, por seu lado, inverte, sem querer dizer que não realize uma avaliação, mas que não se torna criação. É uma inversão, uma transformação, uma transmutação dos valores. Ao transmutar, ou inverter, os valores de sua moral de escravo, ele estabelece sua moral como dada, como algo efetivo, além de qualquer reflexão. O objetivo de absolutizar sua moral está no fato de o escravo ter como pano de fundo aquela autodefesa citada anteriormente, que visa dissimular o medo através da universalização de seus próprios preceitos. Dessa forma, toda interpretação moral será vista como a moral única e de validade incondicional, o que torna os preceitos dessa moral intocados e inquestionáveis. Em contrapartida, é uma moral que disfarça a antipatia da vida e que tem como mote uma vida degenerada em que a diferença e a afirmação são substituídas pela igualdade e pela negação. O escravo, por ser considerado um desprezível, avalia sua realidade a partir de seu tipo de vida decadente. Para Nietzsche, remover a máscara é algo necessário e se faz pela identificação da moral que prescreve um valor como valor. Com esse desmascaramento é possível de se determinar qual o valor dos valores. É o absolutizar dos valores e considerá-los como supremos, supervalorizando-os acima de qualquer outra perspectiva ou interpretação contrária.

Em Nietzsche notamos a percepção que tinha de que, mesmo que todos os valores e ideais considerados supremos anteriormente na história humana tenham se desvalorizado, a vida do homem continua. É certo que não vivemos sem referencial: precisamos de valores que sejam ponto de referência para nossas ações, afinal, não vivemos sozinhos, não vivemos isolados, por mais individualista que esta nossa sociedade queira se proclamar. Os valores, contudo, não se constituem num algo-em-si. São pontos de vista, são aquilo que, conforme uma perspectiva, colocam-se como preservação e progresso da vida.

Quando Nietzsche diz que Deus está morto, retira da sociedade toda e qualquer base de valoração. É necessário buscar, então, um novo parâmetro para os valores. Caso contrário, as pessoas vão se tornando cada vez mais materialistas, individualistas, mercantilistas. Não somos máquinas, tampouco somos meras mercadorias. A dignidade humana cada dia mais vem perdendo seu espaço e significado em nossas sociedades, em nossas vidas, em nossas relações.

Com sua obra, Nietzsche não só demonstra um gênio perturbado com as relações dos homens, mas também nos perturba, levando-nos a questionar os laços relacionais que todos temos. O intuito de a Genealogia da moral é o de despertar no leitor uma reflexão e uma ação mais consciente da realidade. Os valores necessitam ser repensados.

Para repensar os valores, é preciso que encontremos, agora, conceitos extremamente imparciais, desligando-nos de qualquer tipo de moral que aprisione.As morais baseadas em conceitos metafísicos tendem ao nada. Os valores tendem a se deteriorar e surgirem novos valores.

A proposta nietzschiana de um ideal ascético, um asceticismo diferente do propagado pelos religiosos, é aquele que coloca o homem no centro. A finalidade desse ideal está nas ações humanas que se baseiam tão somente nas suas relações, não mais com a vontade divina. Essa proposta de Nietzsche é radical. Traz uma mudança essencial das tendências que nos leva a uma antítese.

A salvação deve ser procurada em outra parte. A obra, quando já elaborada, não necessita do artista para ser tomada a sério. Por isso, o filósofo nos leva às origens da moral, para, dali, partirmos para novos valores. Sem isso, o homem estará fadado a sempre encontrar o fracasso, os valores perderem seus sentidos (niilismo), já que transitamos entre os valores de acordo com nossas necessidades.

Fica-nos, neste momento, uma questão: Nietzsche realmente inverteu os valores com algum saldo positivo ou, ao contrário, sua posição não passa de um niilismo destrutivo levado às ultimas conseqüências? Nietzsche concebe o que ele chama de vontade de potência, que é a superação do niilismo. A metafísica da vontade de potência parece ser a superação do niilismo, uma vez que este é pensado como apenas uma derrubada dos valores supremos.

Nietzsche nos abre os olhos da razão e dos sentimentos para algo mais chão, mais próximo da realidade humana. Resgatar as origens da moral do homem é resgatar a ele próprio, colocando-o em sua dignidade de igualdade. As classes existentes apenas distanciam os homens uns dos outros. Parece até mesmo que Nietzsche pressentia, ou intuía, toda a sociedade contemporânea em que vivemos hoje. Dia após dia, o homem vai se tornando mais solitário, mais fechado em seu mundo individual, perdendo valores, esvaziando-se. Nisso tudo, cada vez mais se perde o sentido da vida, a finalidade das coisas. Tudo é efêmero, transitório. É a humanidade destruindo a própria humanidade.

Referências bibliográficas:

AZEREDO, Vânia Dutra. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso; Ijuí: Unijuí, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: Um escrito polêmico. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.

___________. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.



Autor: Anderson Rodrigo Oliveira


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