Fanfarra Para o Homem Comum



Hatty Green, considerada a mulher mais rica de Wall Street, na virada do século 19/20, ficou famosa pela sovinice, que, apesar da fortuna imensurável, usava o mesmo vestido e levava o almoço num saco de papel.

“Não se trata de uma pessoa bem nascida nem sequer de um membro importante de sua comunidade. É um cidadão qualquer, possuindo muitos defeitos, apequenado pela burocracia e pela massificação do nosso tempo”. - Adriano de Paula Rabelo, sobre o personagem de Arthur Miller, em “A Morte do Caixeiro Viajante”.

Eis, portanto, uma definição plausível e até consensual, sobre o que se poderia catalogar de “homem comum”. Pesquisei vários autores, senão para fundamentar, para ilustrar esse artigo. A definição do Adriano me pareceu a síntese, reúne todos os ingredientes necessários para que o presente artigo possa navegar, por mares outros, é verdade, mas navegar é preciso, e para tanto a embarcação carece dos atributos que lhe permitam não soçobrar antes da hora.

Voltando – até que Hatty Green atingisse sua fortuna, ela se encaixa perfeitamente na definição acima.

Santos Dumont  foi até um relojoeiro e lhe pediu:  por favor, faça uma tira de couro para que eu possa usar esse relógio no pulso, (pois me parece o lugar mais prático para consultar as horas, talvez eu precise delas, quando for realizar o primeiro “ride aéreo” da história da humanidade - 56 km). O relojoeiro se chamava Cartier.
Santos Dumont gostava de  feijoada branca, em Paris o prato se chamava e ainda se chama cassoulet.
Dumont, que gostava de um prato comum, volta e meia se deslocava  a loja de penhores para arrematar as ferramentas dos jardineiros nativos, que por motivos pecuniários as empenhavam. Dumont lhes restituía o instrumento que lhes permitiria tornar ao ofício. Esses eram homens comuns, com certeza possuíam muitos defeitos (quem não os possui?) e não eram importantes para a comunidade. Santos Dumont, todavia, pai indiscutível da aviação (porque os gringos fazem questão de apadrinhar os “Irmãos Wright”), desencarnou num hotel em Santos, “apequenado pela burocracia e pela massificação do nosso tempo”. Ou seja, como um homem comum, profundamente entristecido por constatar terem transformado seu invento numa máquina de guerra. Porque a dor e a decepção são comuns, creio eu.

Chuck Yeagar – o piloto que venceu a barreira do som – um feito que não carecia apenas de coragem mas de extrema habilidade, tido entre os pilotos aéreos de todas as hierarquias como verdadeiro mago na arte de pilotar um jato, terminou seus dias fazendo propaganda de combustível em revistas inexpressivas no meio–oeste americano. No final dos 90, a filha dele bateu o recorde de vôo à distância num planador. Pessoas comuns? Comiam sucrilhos no café da manhã? Obviamente nutrição não entra nessa pauta, mas para que a mesma seja adquirida urge algum labor, ainda que esse não seja fora do comum.

Dulce Tupacyguara Mascarenhas, escritora, aos 75 anos  exibia a seguinte marca: 10 netos, 3 bisnetos,  220.000 livros vendidos, (dados de 2004), boa parte deles, não se sabe quantos, de mão em mão. Se dizia especialista em vender  livros de mão em mão nos aeroportos brasileiros. O sonho da Dulce: o cadastramento dos intelectuais desconhecidos do Brasil, sendo, nas palavras dela:  “levar essa idéia  a todos os rincões do Brasil e chamar os expoentes, as fênix da literatura, que estão desconhecidas, pois  precisam emergir para o patrimônio cultural da nossa nação”.
Desnecessário indagar, até porque você já sabe qual é a pergunta.
Assim, cabe a você decidir se a Dulce entra ou não no rol dos comuns. E de quebra ponderar se sonhar para os outros é tão relevante quanto sonhar para si mesmo. Isso porque, historicamente falando, larga monta daqueles que se destacaram em meio à turba, sonharam e concretizaram proezas. Mas sonharam para si próprios.

Há momentos que não é um sonho, trata-se apenas de uma decisão.
O engenheiro Sylvio Passarelli lançou mão de macacos hidráulicos para sustentar uma coluna, de um prédio não por ele construído mas por ele salvo, bem como as vidas de seus habitantes, e, a bem dizer, bem na hora H. Foi a presença de espírito, os meandros da mente de um engenheiro, ou ambos, talvez ambos, que naquele preciso instante se manifestaram, através de um quesito fora do comum, para atingir seu êxito. No mais, o engenheiro Sylvio deixou filhos, netos e bisnetos, além de pontes, viadutos, prédios de apartamentos e escritórios, túneis e estradas, produtos de sua estada nessa terra, que bem podem ter apresentado dificuldades extraordinárias. Extraordinário é o antônimo de comum. Espalhafatosamente ou não, ambos andam juntos. 

“A literatura contemporânea é pródiga em apresentar personagens impotentes diante da máquina do mundo, alienados, cínicos, zombeteiros, asquerosos, medidos por todas as coisas, extremamente solitários, abandonados à própria sorte, vítimas da burocracia, aniquilados, falantes de uma linguagem cotidiana, rebaixada, fragmentada ou mesmo mudos”. Eis mais um trecho de Adriano de Paula Rabelo, do mesmo artigo. O artigo de Adriano paira sobre a literatura, ainda que o título seja “ O século XX e a tragédia do homem comum”. A despeito de qualquer verdade, a literatura sorve no real para consubstanciar sua própria realidade. ACHO, em maiúsculas, pois esse é o tamanho da minha duvida, que não fizeram nada sobre Littré, que trabalhava 14 horas por dia para fazer o “Dictionaire de langue française”. Ele se deitava às 4 da manhã, não sem antes comer 2 potes de geléia. O extraordinário de um dicionário, que vai muito além da imaginação,  é que há alguém que se dê ao extenuante trabalho de elaborá-lo. E esse alguém, caso seja visto entre os passantes, será assim rotulado: lá vai um tipo comum.

Foi um militar comum, cujos nomes nesse parágrafo estão propositalmente omitidos, que enfrentou outro militar, de patente maior, e que estava no propósito de contaminar os reservatórios de água de uma das maiores cidades brasileiras - cujo resultado teria sido a morte de milhares de inocentes – apenas para conseguir um objetivo político. O militar comum conseguiu impedir a tragédia, mas foi abandonado à própria sorte. Falar um não em meio a um bando de lunáticos, com poderes e propósitos estapafúrdios, não é comum. É ato de heroísmo, com poucos precedentes numa cultura que não gosta de realçar, ou mesmo trazer à baila, os heróis. Isso é comum.

Ulisses Guimarães foi um homem comum? Muita gente da minha geração tem por ele grande admiração, me incluo nesta lista sem ser e nem nunca ter sido dado a esta ou aquela inclinação política. Foi, no entanto, uma atitude comum que escreveu a sua última página.
Quem o ajudou a escrever foi um piloto. Na tarde em que Ulisses resolve voltar, de Angra dos Reis para São Paulo, o clima não estava para brincadeiras e meteorologia é uma das principais matérias para se tirar o brevê. O piloto na verdade trabalhava para um mega empresário paulista, que gentilmente o “cedeu” ao político. O currículo do piloto era invejável, bem como sua experiência reconhecida em toda parte. Assim, ele sabia que “lá em cima” estavam acontecendo ventos de 220 km/hora. Como dizer “não” para um homem fora do comum? Um “não” que com certeza teria lhe custado a carreira, levando-o de imediato à lista do Adriano: “impotentes diante da máquina do mundo, (...) extremamente solitários”. Por conseguinte, comuns. O “não”, contudo,  teria lhe salvado a vida, bem como a do ilustre político. Ou a morte já estava escrita? Morrer me parece algo extremamente corriqueiro. Driblar o dia me soa insondável.

Nas suas memórias, o “diplomata” inglês conhecido como Lawrence conta a seguinte passagem. Durante a travessia do deserto, um dos integrantes cai do camelo e fica para trás. A caravana só se apercebe do fato horas depois. Lawrence decide fazer o caminho de volta e salvar o homem. É avisado: “não adianta. Chegou o dia daquele homem. Alá já decidiu”. O inglês não dá ouvidos, e horas depois volta com o homem, são e salvo. Na mesma noite, durante uma celebração,  aquele que foi resgatado morre em decorrência de uma briga.

Conheci a Tânia num churrasco, cerca de 2 anos atrás. Ela e o marido são professores. Casal comum. Filhos adolescentes, contas para pagar, pés de galinha, calvície, arroz com feijão. Entre uma calabresa e outra, me contaram sua jornada, de Petrolina até Macapá, de bicicleta. Sem patrocinador ou carro de apoio. Algo me diz que é um passeio inusitado.  O churrasco era para comemorar o lançamento de um modesto livro, sobre a imodesta jornada.

Bill Gates e Steve Jobs sequer tinham o produto, no caso, o DOS, (Disk Operating System), durante a reunião com os chefões da IBM e a venda da “idéia” do que viria a ser conhecido como computador pessoal. Quem tinha desenvolvido o produto era um gaiato (Tim Paterson), que morava numa choupana nos confins dos confins (Seattle). Bill e Steve apostaram alto naquela reunião. E quando eles falavam sobre o “mouse”, dizem que os figurões da IBM se contorciam na mesa, achando que a dupla iria edulcorar o evento com um rato de verdade. “A audácia, a fortuna ajuda”. Até então,  dois tipos comuns, que num momento de “ou tudo ou nada”, tornaram-se incomuns, lançando no mercado o que hoje é extramente comum.

Histórias não faltam. Estereótipos são apenas um registro momentâneo. Se a literatura insiste nisso, não posso atestar nem com todas nem com algumas letras. Porque  literatura é arte, e arte depende do olhar. Já o mortal, autor ou leitor, depende de muitas variantes, sendo que talvez uma das principais comece com a letra “o”, de opção.

Aaron Copland, compositor,  escreveu “Fanfarra para o Homem Comum”, na década de 40. 

Seja lá o que for que nos caracteriza como comuns ou não, até o presente,  não há o que fazer, porque, afinal, as opções já foram feitas.


Autor: Bernard Gontier


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