Frei Vicente Salvador E A História



A primeira História do Brasil escrita em finais do século XVII pelo Frei Vicente do Salvador dá uma visão oficiosa do cenário da chegada dos portugueses na Bahia: "ali desembarcou o dito capitão com os seus soldados armados para pelejarem, porque mandou primeiro um batel com alguns a descobrir campo, e deram novas de muitas gentios que viram; porém não foram necessárias armas, porque só de verem homens vestidos e calçados, brancos e com barba (do que tudo eles carecem) os tiveram por divinos e mais que homens, e assim chamando-lhes Caraíbas, que quer dizer na sua língua coisa divina, se chegaram pacificamente aos nossos."

Aquele que redigiria a primeira obra denominada História do Brasil nasceu na Bahia por volta de 1564, tendo sido batizado Vicente Rodrigues Palha. Formado em teologia e cânones pela Universidade de Coimbra, retornou à sua terra natal em fins dos anos oitenta do século inicial da colonização. Tendo tomado ordens sagradas, serviu de cônego, de vigário-geral, de governador de bispado, sendo que em 1597 tomou o hábito de São Francisco.

Ao mesmo tempo em que se tornava frei Vicente do Salvador, lia os autores contemporâneos, recolhia as tradições orais, ouvia aqueles que participavam de modo direto e indireto da faina colonizadora, anotava suas próprias vivências e experiências, tornando-se capaz de atender à solicitação de Manuel Severim de Faria, no sentido de redigir um tratado "das cousas do Brasil". A 20 de dezembro de 1627 frei Vicente do Salvador assinava a dedicatória de sua História do Brasil àquele erudito português.

Dividida em cinco livros, que abrangem desde o Descobrimento até a época do governo de Diogo Luís de Oliveira, a História de frei Vicente do Salvador não apenas constata e lamenta que "como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome Santa Cruz e lhe ficasse o de Brasil"; por meio dela o frei também não se esquiva em censurar os portugueses por não ocuparem as terras do sertão, uma vez que "sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos"

De estilo simples, o livro de frei Vicente do Salvador permaneceria inédito por mais de dois séculos, sendo publicado integralmente pela primeira vez em 1888, nos Anais da Biblioteca Nacional, com um estudo inicial de Capistrano de Abreu. Ao mesmo historiador incumbiu a preparação da edição definitiva de 1918. 

A História do Brasil de frei Vicente do Salvador, de acordo com Capistrano de Abreu, se apresenta como "uma coleção de documentos antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do que história do Brasil". E ao assim caracterizá-la o historiador cearense tanto punha em relevo a concepção de história do franciscano quanto a sua própria.

O primeiro brasileiro conhecido que escreveu prosa num gênero literário, qual é a história, e de feitio a se lhe poder qualificar a obra de literária, foi Frei Vicente do Salvador. É por ele que começa a nossa literatura em prosa.

Vicente Rodrigues Palha, como no século se chamava Frei Vicente, segundo as escassas notícias que dele temos, nasceu em Matuim, umas seis léguas ao norte da cidade da Bahia, em 1564. Como a maioria dos homens instruídos da época, estudou com os jesuítas no seu colégio de São Salvador, e depois em Coimbra, em cuja Universidade se formou em ambos os direitos e doutorou-se. Voltando ao Brasil ordenou-se sacerdote, chegou a cônego da Sé baiana e vigário-geral. Aos trinta e cinco anos fêz-se frade, vestindo o hábito de São Francisco e trocando o nome pelo de Frei Vicente de Salvador. Missionou na Paraíba, residiu em Pernambuco e cooperou na fundação da casa franciscana do Rio de Janeiro, em 1607, sendo o seu primeiro prelado. Tornou posteriormente a Pernambuco, onde leu um curso de artes, no convento da ordem, em Olinda. Regressando à Bahia aí foi guardião do respectivo convento, em 1612.

 Eleito em Lisboa custódio da Custódia franciscana brasileira, no mesmo ano de 1612 teve de voltar a Pernambuco. Após haver estado em Portugal, regressado novamente à Bahia, como guardião, tornado ao Rio e mais uma vez à Bahia, aí faleceu entre os anos de 1636 a 1639. Estas diferentes viagens, este trato de diversas terras e populações devia ter-lhe completado a educação escolar com aquela, a certos respeitos melhor, que se faz no comércio do mundo. A ela podemos atribuir a singular objetividade do seu estilo. Foram grandes e bons os seus serviços à sua ordem e à sua pátria por vários lugares e postos da sua atividade. Passou por excelente religioso e bom letrado. A sua obra faz acreditar merecida esta reputação.

Essa obra, História do Brasil, concluída a 20 de dezembro de 1627, ficou inédita até 1888. Escreveu-a o bom e douto frade a pedido, poderíamos dizer por encomenda, de Manoel Severim de Faria, um dos mais considerados eruditos portugueses contemporâneos, que lhe prometera publicá-la à sua custa.

Como ninguém melhor que Varnhagen conheceu o Tratado descritivo do Brasil de Gabriel Soares, ninguém melhor que o sr. Capistrano de Abreu conhece a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, cujo foi se não o revelador, glória que cabe também a Varnhagen, o divulgador a capacíssimo editor. Com igual autoridade ao seu ciente predecessor na historiografia brasileira, julga assim o sr. Capistrano de Abreu a obra do frade baiano: "Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do território em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito municipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples fato de aqui ter nascido um mazombo, se de algum corpo se reconheciam membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a tendência dominante: Brasil significa para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta idéia como o século XVIII é a maturação.

"Mas esta pecha resgata-a por qualidades superiores. A História possui um tom popular, quase folclórico; anedotas, ditos, uma sentença do bispo de Tucumã, uma frase do Rei do Congo, uma denominação de Vasco Fernandes. Mais ainda: vê-se o Brasil qual era na realidade, aparece o Branco, aparece o Índio, aparece o Negro; o preto Bastião percebe-se que fez rir a boas gargalhadas o nosso autor. Informações por que suspirávamos, e que não esperávamos encontrar, ele as oferece às mãos cheias, ora num traço fugitivo, ora demoradamente: leia-se por exemplo o último capítulo do livro IV, relativo a construção de engenhos: antes nada se sabia a tal respeito. Há também o pensamento que a prosperidade do Brasil está no sertão, que é preciso penetrar o oeste, deixar de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição do bandeirismo ao transoceanismo: e daí a porção de roteiros que debalde se procuraria em outras obras."26

"Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que hão feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores da Guiné por uma caravelinha que lá vai e vem, como disse o rei do Congo, do Brasil que não quiseram intitular. Nem depois da morte de el-rei Dão João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos."

É do mesmo espírito e tom a sua observação, já atrás citado do desapego dos moradores à terra.

Não é só historiador que reconta, observa e reflexiona, é também moralista avisado que sem biocos fradescos, compara, aprecia e generaliza, e sabe fazê-lo com graça natural e frase que desta mesma naturalidade tira a elegância. São outro documento destes seus dotes, e até da sua perspicácia psicológica, estas suas finas observações sobre a obra da catequese, com que também inculca o que era no fundo a superficial cristianização do selvagem. Soube o seu espírito realista discernir, e dizer sem os rebuços que lhe punham os jesuítas, alguns motivos da passividade com que o índio se prestava a certas práticas religiosas. É demais dizê-lo com uma deliciosa sem-cerimônia.

 "Confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância, porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção com que acudiam à igreja e quando lhes tangiam o sino, à doutrina ou à missa, corriam com um ímpeto e estrépido que pareciam cavalos, mas em breve tempo começaram a esfriar de modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são muito amigos de novidades; como dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas, dia da comemoração geral dos defuntos, para ofertarem por eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente das endoenças para se disciplinarem, porque o tem por valentia. E tanto é isto assim que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente uma semana santa, chegando à aldeia nas oitavas da Páscoa e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então presidia, dizendo:

 "Como havia de haver no mundo que se disciplinasse até os meninos e ele sendo tão grande e valente, como de feito era, ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar." Respondia-lhe eu que todas as coisas tinham seu tempo, e que nas endoenças se haviam disciplinado em memória dos açoutes que Cristo senhor nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe que fizesse o que quisesse, com que logo se foi açoutar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam por festas metendo de vinhos nas ilhargas.(P.27) .

È precioso o texto, assim pela arguta observação de certos característicos hoje muito conhecidos do selvagem, a sua inconstância de propósito, o seu amor da novidade, o seu ponto de honra de valentia bruta, como pela língua que sendo boa, conforme a melhor do tempo, escapa entretanto aos feios vícios desta do empolado, das construções arrevesadas e do estilo presumidamente pomposo. A sua frase é ao contrário chã, sem artifício e já, como viria legitimamente a ser brasileira, quando não se propusesse indiscretamente a arremedar a portuguesa, menos invertida, mais direta do que esta. Mais um exemplo para acabar com a comprovação das qualidades do nosso primeiro prosador. Descreve-nos no cap. XLIV a primeira missão jesuítica à Ibiapaba, dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira.

"Estes se partiram de Pernambuco o ano de mil seiscentos e sete em o mês de janeiro, com alguns gentios das suas doutrinas, ferramenta e vestidos, com que os ajudou o Governador para darem aos bárbaros. Começaram seu caminho por mar e prosseguiram ao longo da costa cento e vinte léguas para o norte o Rio de Jaguaribe, onde desembarcaram. Daí caminharam por terra e com muito trabalho outras tantas léguas até os montes de Ibiapaba, que será outras tantas aquém do Maranhão, perto dos bárbaros que buscavam, mas acharam o passo impedido de outros mais bárbaros e cruéis do gentio tapuia, aos quais tentearam os padres pelos índios seus companheiros com dádivas, para que quisessem sua amizade, e os deixassem passar adiante, porém não fizeram mas antes mataram os embaixadores, reservando somente um moço de dezoito anos que os guiasse aonde estavam os padres, como o fez seguindo-os muito número deles. Saindo o padre Francisco Pinto da sua tenda, onde estava rezando, a ver o que era, por mais que com palavras cheias de amor e benevolência os quisesse quietar, e os seus poucos índios com flechas pretendiam defendê-lo, eles, com a fúria com que vinham mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe nem defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais e tantos golpes na cabeça que lha quebraram e o deixaram morto.

O mesmo quiseram fazer ao padre Luís Figueira, que não estava longe do Companheiro, mas um moço da sua companhia, sentindo o ruído dos bárbaros o avisou, dizendo em língua portuguesa: "Padre, padre, guarda a vida" e o padre se meteu à pressa em os bosques, onde, guardado da Divina Providência, o não puderam achar, por mais que o buscaram, e se foram contentes com os despojos que acharam dos ornamentos que os padres levavam para dizer missa, e alguns outros vestidos e ferramenta para darem, com o que teve lugar o padre Luís Figueira de recolher seus poucos companheiros, espalhados com medo da morte, e de chegar ao lugar daquele ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendido, a cabeça quebrada e desfigurado o rosto, cheio de sangue e lodo, limpando-o e levando-o. E composto o defunto em uma rede em lugar de ataúde lhe deram sepultura ao pé de um monte, que não permitia então outro aparato maior o aperto em que estavam; porém nem Deus permitiu que estivesse assim muito tempo, antes me disse Martins Soares, que agora é capitão daquele distrito, que o tinham já posto em uma igreja, onde não só os portugueses e cristãos, que ali moram, é venerado, mas ainda dos mesmos gentios."28

28 As citações são respectivamente de págs. 7, 169 e 178 da edição dos Anais da Biblioteca Nacional, cit.


Autor: Wellington José Campos


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