A Inconstitucionalidade da Norma Geral Antielisão



Indira Shiva Reis Muricy[1]

RESUMO: O presente artigo cuida da problemática em torno da norma geral antielisão introduzida no ordenamento jurídico e que suscitou grandes dúvidas acerca da sua constitucionalidade frente aos princípios da legalidade estrita e vedação ao confisco. Expõe uma análise sobre o conceito e aplicação da interpretação econômica no direito tributário, bem como dos conceitos de elisão e evasão fiscal propostos pela doutrina Propõe-se ainda uma reflexão acerca do princípio da autonomia privada em confronto com a norma antielisiva além de suscitar a inconstitucionalidade desta em confronto com o sistema jurídico tributário constitucional.

PALAVRAS-CHAVE: princípios constitucionais, interpretação econômica, norma geral antielisão, inconstitucionalidade.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO E SEUS PRINCÍPIOS NORTEADORES; 2.1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE; 2.2 PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA; 2.3 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO CONFISCO; 3 A INTERPRETACÃO E SEUS LIMITES NO SISTEMA JURÍDICO TRIBUTÁRIO; 4. A ELISÃO FISCAL; 5 ANTAGONISMO DA NORMA GERAL ANTIELISÃO COM O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA; 6 A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA GERAL ANTIELISÃO; 7 CONCLUSÃO; 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1 INTRODUÇÃO

A Lei Complementar nº 104 introduzida no ordenamento tributário brasileiro a partir de um projeto de lei formulado pela Secretaria da Receita Federal, modificou, dentre outros, o artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), introduzindo no seu corpo o parágrafo único, trazendo assim, ao cenário jurídico do país, a norma geral antielisão.

Tal norma autoriza o Fisco a desconsiderar a forma dos negócios jurídicos realizados com a finalidade de elidir a incidência do tributo, dispondo que a autoridade administrativa poderá desprezar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Este parágrafo único reacendeu de imediato a discussão doutrinária acerca da possibilidade, ou não, de se admitir uma norma antielisiva no sistema jurídico pátrio. A questão acerca do direito do contribuinte a um planejamento fiscal vem há muito sendo debatido no campo da doutrina, com posicionamentos dos mais controvertidos. Contudo, a positivação de uma norma para coibir a elisão acaba inevitavelmente por ter sua constitucionalidade contestada por diversos autores, sob a alegação de atentar contra princípios não só entabulados na Carta Magna, mas também previstos em dispositivos infraconstitucionais.

Outra questão debatida de forma acirrada pela doutrina é acerca do método da interpretação econômica do fato gerador, utilizado para justificar a norma antielisiva e sua implementação no direito tributário a partir do artigo 116, parágrafo único, bem como a possibilidade de sua utilização num Estado Democrático de Direito.

Os argumentos utilizados por ambas as correntes contrárias e defensoras da antielisão são os mais variados possíveis. Para se fazer um estudo acerca do tema impende empreender uma análise dos princípios constitucionais da legalidade, segurança jurídica, vedação ao confisco, livre iniciativa e autonomia da vontade, utilizados para atacar a constitucionalidade da norma geral antielisão, bem, como os princípios da igualdade e capacidade contributiva, que justificam a utilização da interpretação econômica e referendam a norma antielisiva.

Afirmam alguns juristas ser a norma geral antielisão plenamente justificável no ordenamento como meio de evitar a fuga ao tributo, utilizando-se para tanto do argumento da interpretação econômica, que faria justiça aos princípios da igualdade e capacidade contributiva. Tais princípios, por sua vez, balizariam os limites do direito do contribuinte em organizar suas finanças e planejar sua economia tributária. Outros, entretanto, atacam este posicionamento invocando o princípio da estrita legalidade bem como a segurança jurídica que a previsão legal do fato gerador confere às relações tributárias.

Outro ponto a ser apreciado é o confronto da norma antielisão com o princípio constitucional da autonomia privada, que assegura ao sujeito optar pela forma que mais lhe aprouver para realizar seus negócios jurídicos, não podendo o Fisco, com base na interpretação econômica, desconsiderar a vontade do indivíduo para obrigá-lo a lançar mão de determinada forma, de molde a instituir a cobrança de tributo.

Sob este enfoque se discutirá a configuração de conduta abusiva da Administração Fazendária consubstanciada no desrespeito à autonomia da vontade, em afronta à norma constitucional.


2 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO E SEUS PRINCÍPIOS NORTEADORES

Sistema é um conjunto de elementos inter-relacionados, tendo por referencial um princípio unitário, que se entrecruzam de forma a externar uma diretriz comum.[2] Nesta linha intelectiva Harada[3] oferece semelhante conceito, acrescentando-lhe a organização harmônica e uniformidade do sistema.

Pode-se entender por sistema constitucional o conjunto ordenado de princípios, normas e regras de conduta que estabelecem direitos e deveres recíprocos, que por sua vez encontram-se normatizados no texto fundamental, a Constituição.[4] Esta harmonização e uniformidade do sistema jurídico existem por conta de um fundamento superior de validade, ou norma fundamental, assim denominada por Kelsen.[5] Este fundamento superior de validade concretiza-se na própria Constituição.

Consoante o entendimento de Paulo de Barros Carvalho:

Todas as normas do sistema convergem para um único ponto - a norma fundamental -, que dá fundamento de validade à constituição positiva. Sua existência imprime, decisivamente, caráter unitário ao conjunto, e a multiplicidade de normas, como entidades da mesma índole, lhe confere o timbre de homogeneidade. [...] [6]

Vale ressaltar que o sistema constitucional tributário representa, de fato, um subsistema, inserto no sistema jurídico global da Constituição Federal, e por este motivo não se pode imaginá-lo como um sistema autônomo, desconexo dos demais, e sim um subsistema que transpassa todos os outros (e que por eles é transpassado), tendo por matriz a Constituição Federal. [7]

Desta forma, pode-se identificar o sistema constitucional tributário como a organização de normas erigidas sob uma natureza comum, que versam sobre matéria tributária em sede constitucional.

No sistema constitucional tributário encontram-se normas rígidas, principalmente acerca dos princípios que regem o ordenamento jurídico tributário pátrio. Estes princípios devem ser estritamente observados pelo legislador tributário infraconstitucional ao criar, respeitando a competência constitucional, novos tributos ou efetivar mudanças nas características dos já existentes.

De acordo com Ricardo Lobo Torres[8] "O sistema tributário nacional há que se afinar perfeitamente com os valores e os princípios constitucionais, máxime com os da capacidade contributiva, custo/benefício, desenvolvimento econômico e economicidade.". Ou seja, a inobservância destes princípios pelo legislador importa na inconstitucionalidade da criação ou mudança das características destes tributos, sem contar com a quebra da estabilidade, necessária à segurança jurídica.

2.1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade é um dos princípios basilares na composição do Estado Democrático de Direito. Trata-se de verdadeiro instrumento assecuratório da justiça material e segurança jurídica, protegendo o sujeito contra possíveis arbitrariedades que o Estado possa vir a cometer.

O direito tributário, como sói acontecer com os demais ramos do direito, atém-se a princípios constitucionais, dentre os quais o da legalidade. Previsto no artigo 5º, II da Carta Magna, ele preconiza de forma abrangente que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

A legalidade tributária também encontra berço constitucional nas linhas do artigo 150, I, in literis: "Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;"

O dispositivo acima transcrito está inserto na Seção II, Título VI, da CF/88, sob o nome de "Das Limitações ao Poder de Tributar", muito embora se trate de verdadeira vedação ao poder de tributar e de majorar tributo por outro instituto normativo que não a lei em sentido estrito.

No âmbito tributário, este princípio é expresso com maior rigor, exigindo-se como veículo único de ingresso no ordenamento jurídico pátrio, tributos (ou sua majoração), apenas lei stricto sensu. Este entendimento pode ser retratado na máxima nullum tributum sine lege [9], ou seja, não há tributo sem lei que o institua. Vale ressaltar que a lei a que se refere o princípio é lei material, consubstanciada pela existência do comando impessoal e lei em sentido formal, realizada por ato do Poder Legislativo[10].

Neste sentido são as palavras de Geraldo Atalibaao conceituar hipótese de incidência como o mandamento legal da criação tributária:

A hipótese de incidência é a descrição hipotética e abstrata de um fato. É parte da norma tributária. É o meio pelo qual o legislador institui um tributo. Está criado um tributo, desde que a lei descreva sua h.i.,a ela associando o mandamento "pague". [11]

Através disto, busca-se atingir o ideal de justiça e conferir segurança jurídica ao contribuinte na sua relação tributária com o Estado. Sem a existência de princípios norteadores ou vedações impositivas, correr-se-ia o risco de abrangente discricionariedade por parte do Poder Público ao tributar, rompendo-se valores e garantias fundamentais dos administrados.[12]

Mas a função deste princípio não se limita apenas aos aspectos acima expostos. A lei precisa não somente criar o tributo, mas defini-lo abstratamente com todas as suas características e abrangências, tais como os requisitos pertinentes à sua exigibilidade, a quem deve pagar, a quem se deve pagar, o quanto pagar e onde se pagar o tributo. Estes itens devem obrigatoriamente ser explicitados no mesmo diploma legal. Desta forma, obtém-se maior segurança para se exigir corretamente o tributo, evitando-se cobranças abusivas ou indevidas.

O CTN aborda o princípio da legalidade em seu art. 97, estabelecendo a necessidade da lei em descrever não só as características do fato gerador, mas também todos os aspectos necessários para cobrança do tributo. Nos dizeres de Luciano Amaro:

Em suma, a legalidade tributária não se conforma com a mera autorização de lei para cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador, necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita na lei.[13]

Desdobrando-se esse pensamento, conclui-se que à administração tributária não cabe decidir se o tributo será cobrado ou como será cobrado. A incidência, ou não, do tributo ao caso concreto respeitará o quanto descrito na hipótese normativa. Deverá haver adequação do fato à lei para se configurar a devida cobrança, estando a administração adstrita ao seu cumprimento. Para tanto, a norma instituidora do tributo deverá ser feita com integral caracterização e descrição do fato gerador que enseja a sua aplicação.

Este preceito de adequação do fato imponível, ou como queira chamar Geraldo Ataliba[14], à norma hipotética recebe da doutrina jurídica o nome de princípio da tipicidade ou princípio da legalidade estrita na dicção de Paulo de BarrosCarvalho[15], inserido para alguns ou abstraído para outros do próprio princípio da legalidade.

A lei deve ainda estabelecer de forma taxativa e completa todos os requisitos necessários para que se abarquem situações mais genéricas que o legislador não queira excluir do âmbito da tributação, já que é vedada ao aplicador da norma sua interpretação extensiva e por analogia para se alcançar fatos ocorridos além da esfera legalmente descrita.[16]

Por estar sediado na Constituição Federal, o princípio da legalidade somente permite ser excepcionado nos casos por ela expressamente previstos. Qualquer outro afastamento da legalidade tributária, não vislumbrado pela Carta Magna, implica em verdadeira afronta a esse princípio e sofrerá conseqüente inconstitucionalidade.

2.2 PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

O direito tributário encontra-se também vinculado aos princípios da igualdade e da capacidade contributiva. O aspecto de abrangência geral do princípio da igualdade está consubstanciado no art. 5º, caput, onde se afirma que todos são iguais perante a lei, vedadas distinções de qualquer natureza.Ao assim dispor, a CF proíbe discriminações ou tratamento desigual entre os cidadãos.

O princípio da igualdade aplicável ao campo tributário encontra-se positivado no art. 150, II da CF, e preceitua a vedação de tratamento desigual entre os contribuintes que se encontrem no mesmo patamar de igualdade em determinada situação.

O que se deflui a partir da leitura deste inciso é a tributação de forma igual, equânime, que decorre justamente dos aspectos inerentes a todas as normas, a generalidade e a abstração. Tais aspectos garantem que todas as pessoas que venham praticar o fato imponível, previamente descrito em lei como passível de tributação, sofrerão a incidência desta norma de forma indistinta e igualitária.

Luciano Amaro[17]divide a diretriz deste princípio primeiramente ao aplicador da lei e em seguida ao seu legislador. Quando direcionado ao aplicador, este princípio veda a diferenciação de pessoas para excluí-las ou inseri-las no mandamento legal à sua discricionariedade. Por sua vez, quando dirigido ao legislador, proíbe que este confira tratamento diferenciado a pessoas em situações equivalentes e que ocupem o mesmo patamar de igualdade. Ou nas palavras de Celso AntônioBandeira de Mello: "Assim, nem pode o aplicador, diante da lei, discriminar, nem se autoriza o legislador, ao ditar a lei, a fazer discriminações. Visa o princípio à garantia do individuo, evitando perseguições e favoritismos."[18]

Contudo, há que ser observado um ensinamento corrente, admitido pela quase totalidade da doutrina jurídica ao comentar o princípio da igualdade. Tal pensamento se resume no axioma segundo o qual para se obter a isonomia, necessário se faz tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, pois só assim se alcançará a verdadeira igualdade ou igualdade material. Alguns autores, dentre eles Sacha Calmon Navarro Coêlho[19], atribuem conotação de aspecto positivo na interpretação e aplicação do princípio em estudo.

Para se atingir a isonomia desejada, os autores convergem quase unânimes para um outro princípio, o da capacidade contributiva, pois, de acordo com Sacha Calmon[20]"[...] O princípio da isonomia tributária não tem condições de ser operacionalizado sem a ajuda do princípio da capacidade contributiva [...]".

Seguindo este raciocínio, o princípio da capacidade contributiva faria o papel de um indicador de igualdade ou desigualdade. Corroborando com este pensamento estão as palavras de Luciano Amaro: "Hão de ser tratados, pois, com igualdade aqueles que tiverem igual capacidade contributiva, e com desigualdade os que revelem riquezas diferentes e, portanto, diferentes capacidades de contribuir." [21]. A capacidade contributiva indicaria a desigualdade em dada situação, e ao mesmo tempo estaria a impor um limite objetivo à intensidade da tributação. Desta forma, paga mais tributo quem possuir maior condição para tanto, e menor tributo quem tiver menos condição. De acordo com Sacha Calmon: "A idéia de capacidade contributiva, o seu conteúdo, serve de parâmetro para analisarmos o maior ou menor teor de injustiça fiscal existentes nos sistemas tributários." [22]

Estaria assim sendo feita a aplicação prática do princípio da igualdade, tributando-se de forma diferenciada os sujeitos que se encontram em desigualdade econômica para, desta forma, igualá-los materialmente.

2.3 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO CONFISCO

Outro princípio igualmente importante e de observância estrita é o da vedação ao confisco. O art.150, IV da CF abarca o princípio que veda a cobrança de tributos com efeitos confiscatórios. Confiscar, segundo Luciano Amaro[23] é "[...] tomar para o Fisco, desapossar alguém de seus bens em proveito do Estado". Neste sentido, é vedado ao Estado absorver a propriedade do particular como meio de pagamento de tributos. O enunciado constitucional tem por finalidade proteger a propriedade do indivíduo contra a tributação excessiva,passível de anular seu patrimônio.

Esta vedação ao confisco se justifica pela roupagem que reveste a figura dos tributos, qual seja a de caráter não sancionatório. Não se confundindo com a sanção por ato ilícito, o tributo não pode caracterizar restrição patrimonial mais gravosa que o cominado para inibir essa prática.[24] Desta mesma forma, ensina Hugo de Brito Machado:

Porque constitui receita ordinária, o tributo deve ser um ônus suportável, um encargo que o contribuinte pode pagar sem sacrifício do desfrute normal dos bens da vida. Por isto mesmo é que não pode ser confiscatório. Já a multa, para alcançar sua finalidade, deve representar um ônus significativamente pesado, de sorte a que as condutas que ensejam sua cobrança restem efetivamente desestimuladas. [...][25]

Vale ressaltar que esta restrição constitucional é dirigida principalmente ao legislador, que ao instituir ou majorar tributos deverá observar o limite da capacidade contributiva para que não se configure o confisco.[26] Dirige-se ainda ao intérprete da norma que, em face da situação concreta, verificará se o tributo cobrado adentra a esfera do confisco.[27]

3 O PAPEL DA INTERPRETAÇÃO E SEUS LIMITES NO SISTEMA JURÍDICO TRIBUTÁRIO

A interpretação da norma tributária é feita nos moldes dos artigos. 107 a 112 do CTN, em um capítulo intitulado "Interpretação e Integração da Legislação Tributária". Os referidos artigos apresentam um norte para o aplicador da lei tributária, sempre que se fizer necessário interpretá-la ou integrá-la, em caso de lacunas.

Vários são os métodos apresentados pelo CTN como uma solução ao problema da interpretação. São eles a analogia, os princípios gerais do direito tributário, os princípios gerais do direito público e a equidade. A doutrina ainda aconselha outros métodos, como o da interpretação literal ou gramatical, o histórico, o lógico, o teleológico e o sistemático[28].

Nesse contexto doutrinário surge o método denominado interpretação econômica, idealizado na Alemanha por Enno Becker, acolhido por vários doutrinadores e rechaçado por outros[29].

De acordo com este método interpretativo, ao se deparar com situação jurídica tributária, deve-se desconsiderar a forma jurídica que reveste o negócio e verificar seu real conteúdo econômico que prevalecerá em detrimento da forma. No conceito formulado por Hugo de Brito Machado:

De acordo com a denominada interpretação econômica, [...] deve o intérprete considerar, acima de tudo, os efeitos econômicos dos fatos disciplinados pelas normas em questão. Na relação jurídica tributária há uma relação econômica subjacente, e esta é que deve ditar o significado da norma[30].

Dessa forma, a interpretação da norma tributária seguindo o critério econômico consiste na apreensão dos institutos e seus conceitos jurídicos, de acordo com a realidade econômica por trás destas formas jurídicas[31]. Prevaleceria, então, não o conceito e forma dos institutos jurídicos, mas seu sentido econômico.

Vale ressaltar aqui o pensamento de Sacha Calmon ao afirmar que, sequer existe uma interpretação chamada econômica, pois, na realidade, toda interpretação é jurídica. Ou seja, a interpretação que se extrai de um fato jurídico que ocorreu no mundo fenomênico nada mais é que uma interpretação jurídica. Ou, ainda, nas palavras do autor: "[...] Ora, uma vez jurisdicizado o real, isto é, uma vez que um fato é posto no programa da lei, a interpretação que dele se possa fazer só pode ser uma interpretação jurídica. [...]".[32]

Os defensores da tese da interpretação econômica justificam sua posição com base na leitura do art. 109 do CTN, que dispõe acerca dos princípios gerais de direito privado, cujo conteúdo e alcance dos seus institutos, conceitos e formas, serão pelo próprio direito privado interpretados, não podendo, contudo, tal interpretação alcançar a definição dos seus respectivos efeitos tributários. Para estes operadores do direito, o referido dispositivo abraça a interpretação econômica permitindo que institutos de direito privado sejam interpretados levando-se em conta seu real efeito econômico, ignorando-se a forma jurídica adotada[33]. A interpretação deveria, então, ser feita de maneira a levar em conta a consistência econômica do fato gerador, buscando a relação econômica subjacente à forma elegida para o negócio jurídico.

Contrapondo-se a esta tese, doutrinadores de peso dão outra interpretação ao mesmo texto de lei, afirmando que, a partir da sua leitura, deflui-se exatamente o contrário, a interpretação, pelo direito tributário, dos institutos de direito privado não têm o condão de modificar sua forma, alcance e conteúdo, permanecendo, para tanto, a forma que o direito privado lhes confere[34]. Neste sentido vale reproduzir o ensinamento de Luciano Amaro:

Já vimos que o art. 109 timbra em dizer que os institutos de direito privado (quando referidos pela lei tributária, obviamente) não se modificam. Pelo contrário, sua definição, conteúdo e alcance são pesquisados de acordo com os princípios de direito privado, vale dizer, uma compra e venda, embora mencionada em lei tributária, é identificada como tal de acordo com os princípios de direito privado; em suma, continua sendo compra e venda também para o direito tributário; e o que não é compra e venda não passa a sê-lo no campo fiscal.[35]

Esta posição se confirmaria pelo próprio CTN no artigo subseqüente, o artigo 110, que veda à lei tributária alterar a definição, conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados pela legislação para definir ou limitar competências tributárias.

Na realidade, permitem os artigo 109 e 110 que institutos de direito privado, tais como pagamento, mora e compensação, dentre outros, possam assumir características próprias quando aplicados em sede de direito tributário para efeitos fiscais. Veda, contudo, que o direito tributário alcance esses institutos, conferindo-lhes outra interpretação, que não a sua própria do direito privado para, desta forma, fazer nascer uma obrigação tributária.

Outro argumento utilizado para sustentar a interpretação econômica no direito tributário é dado por um dos seus maiores defensores no Brasil, Amílcar de Araújo Falcão. Segundo ele, a interpretação econômica se justificaria na medida em que funcionasse como inibidor das denominadas evasão e elisão fiscal o que, por sua vez, garantiria os princípios da igualdade e da capacidade contributiva sem ferir a estrita legalidade em matéria de fato gerador,[36] ou, em outras palavras:

[...] tem por finalidade buscar o significado econômico das leis tributárias com base no princípio da igualdade e da capacidade contributiva. Em outras palavras, a interpretação econômica é o instrumento de aplicação do princípio da igualdade, em que situações econômicas iguais devem ser tratadas de forma igual, independentemente da forma jurídica adotada na operação, visando a uma distribuição uniforme dos encargos sociais.[37]

Desconsiderando-se a forma dos negócios jurídicos realizados com o intuito de elidir determinado tributo, poder-se-ia tributar situações que, embora possuindo distintos fatos geradores, teriam o mesmo sentido econômico como pano de fundo. Desta forma, na visão desse tributarista, estar-se-ia resguardando os princípios da capacidade contributiva e da igualdade de tributação ao tributar situações de formas jurídicas distintas, mas de igual conteúdo econômico, o que demonstraria situações de equivalente capacidade econômica.

4 A ELISÃO FISCAL

A doutrina brasileira especializada em direito tributário conceitua a elisão fiscal de diferentes formas, de acordo com cada entendimento particular. Mas há quase consenso em definir a elisão fiscal como o ato lícito realizado para elidir um tributo, ou seja, escapar da ocorrência do fato gerador de um tributo.

Elidir, como ensina Marcelo Magalhães Peixoto[38], advém do latim elisione, ato ou efeito de elidir, eliminar ou suprimir. Desta forma, elisão é a prática lícita de ato que elimine ou suprima a ocorrência do fato gerador. Mais precisamente, é a prática de ato lícito que não faz consubstanciar a hipótese de incidência de tributo, vale dizer, o ato praticado não enseja a ocorrência do fato gerador.

Não há consenso entre os doutrinadores ao conceituar elisão fiscal, mas, a maior parte destes tributaristas aceita tratar-se de ato sempre lícito, realizado pelo sujeito de forma a evitar, reduzir ou retardar a ocorrência do fato gerador do tributo. A elisão é a economia do tributo feita através da prática de um ato revestido de uma forma jurídica não prevista pelo legislador como hipótese de incidência de tributo. Busca-se, desta forma, fugir da incidência do tributo, utilizando-se de meios sempre lícitos, não vedados pelo legislador. Neste sentido, Sacha Calmon ensina que:

[...] A evasão comissiva lícita, finalmente, também chamada de economia fiscal ou, ainda, elisão fiscal, ocorreria quando o agente, visando certo resultado econômico, buscasse por instrumentos sempre lícitos, fórmula negocial alternativa e menos onerosa do ponto de vista fiscal, aproveitando-se de legislação não proibitiva ou não equiparadora de formas ou fórmulas de Direito Privado (redução legal das formas ao resultado econômico). [...][39]

Os autores acima mencionados apresentam ainda uma diferenciação sutil entre elisão e evasão, sendo que a primeira se configura com a prática de atos lícitos não previstos na lei como hipótese de incidência do tributo, enquanto que a segunda se caracteriza pela omissão da prática de determinado ato que, se realizado, faria incidir o tributo. Uma minoria afirma ainda ser a evasão sempre ilícita, pois se trataria da fuga do tributo após a ocorrência do fato gerador.

O chamado divisor de águas entre a elisão fiscal, atividade lícita, e a simulação ou sonegação fiscal, sempre ilícita, é o fato gerador. "Uma vez ocorrido o fato gerador e o sujeito dele se esquiva, com a finalidade de burlar o Fisco e não adimplir com a obrigação tributária gerada incorre em sonegação fiscal, que por sua vez constitui-se crime."[40] Na simulação, encontra-se caracterizado o dolo do contribuinte em ocultar a ocorrência do fato gerador, fraudando, desta forma, a obrigação tributária.

Situação diferente acontece com a elisão, quando o sujeito realiza ato com a intenção não de burlar sua obrigação para com o Fisco, mas de forma a evitar a ocorrência do fato gerador, quando sequer haverá o nascimento da obrigação tributária.

A norma inserta no artigo 116, parágrafo único do CTN, introduzido pela Lei Complementar número 104 de 2001, trouxe ao ordenamento jurídico tributário o instituto nomeado pela doutrina de "Norma Geral Antielisão", encarada de diversas formas pelos doutrinadores tributários.

Para uma determinada corrente, o parágrafo do art. 116 em nada inovou na ordem jurídica tributária, posto que estaria tratando não de elisão fiscal, mas de simulação e fraude, práticas já combatidas pelo art.149, inciso VII do mesmo diploma legal, não tendo a norma alcançado sua real finalidade, qual seja a elisão fiscal. Doutra forma, posiciona-se a corrente de pensamento que encara este parágrafo único como uma porta aberta ao ingresso da interpretação econômica no ordenamento pátrio, acarretando sérios riscos ao princípio da legalidade estrita e da segurança jurídica, além do que não passaria de uma tentativa de tributação por analogia[41].

Seguindo esta linha de entendimento, o referido artigo abarcaria a possibilidade de se desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ainda que válidos e lícitos, realizados com a finalidade de evitar a tributação, para que se faça incidir o tributo. Esta norma recebeu a conotação de antielisiva, pois visa evitar a elisão fiscal quando permite a descaracterização de negócios jurídicos a fim de alcançar, na expressão de Sacha Calmon,[42]uma "compreensão econômica" dos mesmos.

Esta norma teria sido formulada tendo por guarida a teoria da interpretação econômica, explicitada linhas acima. Com base nesta interpretação, o CTN passou a autorizar o Fisco a desconsiderar formas jurídicas próprias do direito privado com a finalidade de tributar os negócios realizados sob a roupagem dessas formas.

Os adeptos da aplicação da interpretação econômica, tais como Amílcar Falcão, julgam ilícitas as tentativas de cunho elisivo praticados pelos sujeitos com o fito de não pagar tributo, e, por isto mesmo, devem ser desconsideradas. Com base nesta ilicitude, estaria o intérprete tributário autorizado a ignorar a forma adotada pelo sujeito para realizar determinado negócio jurídico e buscar a realidade econômica por trás dele. Para este autor:

Em Direito Tributário, autoriza-se o intérprete, quando o contribuinte comete um abuso de forma jurídica [...], a desenvolver considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o enquadramento do caso concreto em face do comando resultante não só da literalidade do texto legislativo, mas também do seu espírito da mens ou ratio legis.[43]

Na visão deste tributarista, a elisão fiscal é um verdadeiro abuso de formas jurídicas realizado com o fim de burlar o Fisco e, portanto, padece de ilegalidade, o que justificaria sua descaracterização. Mas deste pensamento discordam alguns autores, suscitando a inconstitucionalidade da norma antielisiva.

5 ANTAGONISMO DA NORMA GERAL ANTIELISÃO COM O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA

Segundo a doutrina corrente, os contratos assentam-se no princípio da autonomia privada, que se traduz na liberdade que os particulares possuem para disciplinar seus interesses disponíveis como lhes aprouver. Apesar de todas as restrições modernamente impostas à liberdade de contratar, esse princípio permanece ainda como fundamento e essência do direito privado. Consoante o magistério de Orlando Gomes: "A liberdade de contratar propriamente dita é o poder conferido às partes contratantes de suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei imponha os preceitos que traça."[44]

Isto significa que os particulares são livrespara determinar o conteúdo do contrato, sempre obedecendo aos limites impostos pela lei. Na fixação deste conteúdo está contemplada a possibilidade de escolha da modalidade contratual ou, no dizer de Maria Helena Diniz, "[...] a liberdade de fixar o conteúdo do contrato, escolhendo qualquer uma das modalidades contratuais reguladas por lei".[45]

O contrato é, por excelência, o instrumento da iniciativa privada, estabelecido entre as partes com submissão à ordem jurídica, no qual se compreende as limitações impostas pelos preceitos de ordem pública. O contrato cumpre uma função social relevante como instrumento capaz de assegurar a estabilidade das relações jurídicas, que tem como objeto principal a propriedade.

A norma geral de antielisão inserida no art. 116 do CTN, na verdade se constitui em verdadeira violação ao princípio da autonomia privada, na medida em que a possibilidade de se desconsiderar atos ou negócios jurídicos ainda que válidos e lícitos importa na interferência direta e indébita da liberdade contratual, exorbitando a área do direito público para atingir um dos cânones mais importantes do direito privado.

Realizado o contrato, ele se torna fonte de obrigações com tal força vinculante que se costuma dizer, tem força de lei entre as partes. Este é seu maior efeito, estabelecer obrigações que devem ser honradas e que só podem ser alteradas por novo acordo de vontades. Conquanto não vinculem terceiros, todos devem respeitar seus efeitos. Perfeito e acabado, o contrato há de prosseguir rumo à sua execução. Tornou-se um ato jurídico perfeito protegido pela lei ordinária e pela lei constitucional.

Deste modo, se o contrato firmado obtiver pleno reconhecimento da ordem jurídica, a sua forma, conteúdo e modalidade hão de permanecer íntegros, e seus efeitos não podem ser desconhecidos ou alterados unilateralmente por terceiros, incluindo-se a administração pública.É o caso da norma geral antielisão. O dispositivo legal inserido no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional se coloca em franca testilha com a lei civil que disciplina e protege a relação contratual de natureza privada, violando, por fim, os artigos 1º, inciso IV, 170, caput, e o art. 5º, inciso XXII da Constituição Federal, asseguradores da livre iniciativa privada e do direito de propriedade.

Quando tal dispositivo desconsidera atos e negócios jurídicos livremente estipulados e amparados pelo ordenamento jurídico, na realidade está ignorando a existência de institutos normatizados pela lei civil. É como se a lei tributária declarasse expressamente que aquele ato ou negócio jurídico não existisse no mundo do direito, negando validade à sistemática do Código Civil que criou e estabeleceu sua disciplina. Evidentemente que o CTN não pode desconsiderar um ato jurídico lícito amparado pela lei civil, visto que sua normatização restringe-se às normas tributárias. Na disposição preliminar, o CTN em seu art. 1º, cuida logo de traçar a finalidade da lei e seu campo de ação:

Art. 1º Esta Lei regula, com fundamento na Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, o sistema tributário nacional e estabelece, com fundamento no artigo 5º, inciso XV, alínea b, da Constituição Federal, as normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sem prejuízo da respectiva legislação complementar, supletiva ou regulamentar.

Outro equívoco da norma geral antielisão deriva do seu conteúdo nuclear, pois, ao desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador, o dispositivo admitiu a incidência do tributo sobre ato ou negócio jurídico diverso do ocorrido, conferindo ao órgão fiscalizador o direito de "interpretar" qual teria sido a vontade do agente. Sabe-se, todavia, que a incidência da norma civil ou tributária se dá sobre fatos e não sobre o exercício da vontade. Um fato assume a qualidade de fato jurídico exclusivamente quando é apanhado pela norma, um fenômeno em direito denominado de subsunção.

Deste modo, se o agente optou pela realização de uma doação, ao invés de uma compra e venda como ato translativo de bem imóvel com a finalidade de fugir à ação fiscal, a motivação da escolha só existe no mundo subjetivo do agente e não importa ao direito, pois o que haverá de prevalecer é a modalidade contratual escolhida, um contrato nominado cuja formalidade e disciplina se encontram perfeitamente regidas na lei civil, único fato concreto que se projetou no mundo jurídico. À ação fiscal resta verificar se o ato jurídico realizado constitui fato gerador que obriga ao pagamento de um tributo e, quanto à escolha da modalidade contratual, ela não passa de uma economia lícita de tributos, uma conduta legalmente viável do contribuinte.

6 A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA GERAL ANTIELISÃO

Apesar da aplicação da interpretação econômica estar fundamentada nos princípios da igualdade e capacidade contributiva, por outro lado, os argumentos contra a norma geral antielisão são pautados também nos princípios constitucionais da legalidade, segurança jurídica e vedação ao confisco e autonomia privada.

A corrente defensora da elisão fiscal invoca o princípio da legalidade que, por sua natureza, obsta à aplicação da interpretação econômica. A definição do fato gerador da obrigação tributária por si só guarda respeito ao princípio da legalidade ao permitir a tributação apenas daqueles fatos que estejam previstos na lei como capazes de fazer nascer a obrigação tributária. Vale dizer, o fato jurídico apenas será passível de tributação quando exista lei expressa que assim o determine. Como ressaltado anteriormente, este entendimento deriva da CF em si quando dispõe acerca do princípio da legalidade ao vedar a cobrança de tributos sem lei que assim o estabeleça. Desta forma, o fato gerador há de estar previsto na lei, quando ocorrerá a subsunção do fato à norma legal, ou hipótese de incidência, para dar origem à obrigação de pagar o tributo.

Diante disto, caracteriza-se verdadeira afronta ao princípio da legalidade estrita a tributação de um determinado negócio jurídico cujo fato gerador não está previsto em lei, apenas para assegurar a igualdade de tributação e alcançar a capacidade contributiva do sujeito, como quer a interpretação econômica.

Não se trata, contudo, como poderia transparecer, de desrespeito aos princípios da igualdade e capacidade contributiva em detrimento ao princípio da legalidade. Pelo contrário, não há violação àqueles princípios quando se veda a tributação por analogia. Trata-se de questão onde não se justifica a tributação, por meio de hermenêutica, ainda que haja razão legítima para tanto. Não cabe ao Estado se utilizar de construção exegética para invocar o princípio da igualdade e tributar situação não prevista em lei. [46] Desta forma:

Ademais, se o intérprete pudesse pesquisar o conteúdo econômico deste ou daquele negócio, para, à vista de sua similitude com o conteúdo econômico de outro negócio, estender para o primeiro a regra de incidência do segundo, o fato gerador do tributo deixaria de corresponder à precisão abstrata proposta na lei (princípio da reserva de lei); o campo estaria aberto para a criação de tributo por analogia (já que a "razão econômica" seria a mesma nas duas hipóteses) [...].[47]

Como acima demonstrado, a quebra do princípio da legalidade acarreta insegurança jurídica das relações travadas pelos sujeitos, além de dar margem a possíveis condutas arbitrárias da Fazenda Pública, que podem acarretar sérias violações a direitos e garantias individuais.

Neste mesmo sentido é o entendimento de Hugo de Brito Machado ao afirmar que a noção de Estado Democrático de Direito em si não comporta uma norma antielisiva, tendo em vista que estaria referendado à autoridade da administração tributária desconsiderar os negócios jurídicos realizados dentro do campo da licitude, com a finalidade de alcançar a capacidade contributiva do sujeito. Este procedimento não seria permitido em face da Constituição Federal, já que a definição legal do fato gerador de um tributo é garantia fundamental do contribuinte contra o arbítrio. [48]

Outro aspecto que acarreta a inconstitucionalidade da norma antielisiva é a questão posta no artigo 150, IV da CF ao vedar a tributação com efeitos confiscatórios. Na realidade, a norma geral antielisão nada mais é que uma tentativa do Estado de arrecadar mais receita para os seus cofres, de desrespeitar os cânones dos princípios constitucionais já mencionados. Não se poderia admitir que, para a consecução dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, agisse o Fisco de forma a romper com outro princípio que veda o excesso de tributação, indo além do que permitiu a hipótese de incidência tributária, já que este princípio, como todos os outros, é um mecanismo de defesa do contribuinte contra a voraz necessidade do Fisco em angariar receitas em angariar receita para o erário.

Por fim, reputa-se ainda inconstitucional a aludida norma, por afronta ao princípio da livre iniciativa, consagrado mais uma vez pela CF em dois de seus artigos, quais sejam, o 1º. e o 170º. Este princípio, anteriormente explicitado, possibilita aos particulares a eleição da forma jurídica que mais se adéqüe aos seus interesses, desde que permaneça no campo da licitude. Desconsiderar a forma lícita adotada para tais negócios jurídicos é desconsiderar o princípio em si. Vale dizer, é negar a liberdade de escolha dos particulares que lhes foi assegurada pela própria Carta Magna.

Ainda de acordo com este cânone, pode-se argumentar o absurdo advindo da circunstância de se obrigar o contribuinte a praticar os atos negociais de direito privado segundo a forma que lhe for mais gravosa, mesmo lhe sendo lícito praticá-lo por meio menos oneroso, quando é sabido que o lucro é a pedra basilar da livre iniciativa e, por conseqüência, do direito privado. É ferir de morte o Texto Maior.

7 CONCLUSÃO

Uma vez introduzida no ordenamento jurídico tributário pátrio, a norma geral antielisão cindiu a doutrina em defensores e confrontores da sua compatibilidade vertical com a Norma Ápice. Os primeiros socorrem-se da interpretação econômica do fato gerador, com respaldo nos princípios da igualdade e da capacidade contributiva. Os últimos entrincheiram-se nos princípios constitucionais da legalidade estrita e na segurança das relações jurídicas, além de invocarem o princípio da autonomia privada como óbice à legitimidade constitucional da norma geral antielisiva.

Como o sistema constitucional tributário norteia-se pelos princípios invocados por ambas as correntes, sobejam argumentos em prol das teses antagônicas. Porém, os raciocínios mais sólidos embasam o entendimento daqueles que contestam a constitucionalidade da reportada norma. É que a interpretação econômica da norma tributária, de origem germânica, carro chefe dos defensores da constitucionalidade da norma antielisiva, pode ser eficazmente contestada ante a impossibilidade de se conferir sentido econômico a um instituto jurídico, pois a autonomia inconteste de todo fato jurídico é o de ser eminentemente jurídico.

Ademais, a elisão fiscal é o exercício de um direito, e como tal pauta-se nos lindes da legalidade. E quem age dentro da lei não é passível de sofrer qualquer sanção. É perfeitamente aceitável que o contribuinte, no exercício de suas atividades lícitas, elabore como melhor lhe aprouver seu planejamento fiscal. Ninguém pode ser punido pelo exercício regular de um direito.

Nesse diapasão, com fulcro nos princípios que regem as atividades econômicas dentro de um sistema jurídico garantidor do direito de propriedade, não se pode obrigar o contribuinte a praticar determinado ato negocial de direito privado de forma excessivamente onerosa. O mesmo não se poderia dizer, por óbvio, num sistema jurídico que não contemplasse o direito à propriedade privada.

A interpretação econômica do fato gerador, longe de contribuir para o aperfeiçoamento da igualdade e da capacidade contributiva, como atestam os adeptos da antielisão, desvirtuam-nos na medida em que se admite numa situação que não comporta tributação, por analogia e exegese econômica que o tributo passe a ser exigido.

Caso viesse a ser corroborada a legitimidade constitucional da norma geral antielisão, estar-se-ia subvertendo o direito constitucional à propriedade, subvertendo-se também o consectário lógico das vantagens patrimoniais dali decorrentes.

A par disso, o princípio da legalidade estrita impede que se possa tributar determinado fato não previsto em lei como passível de tributação.

A norma geral antielisiva nada mais é do que uma voraz tentativa do Estado de gerar receita, desconsiderando um ato jurídico válido, conferindo-lhe nova roupagem, em desrespeito à vontade do agente. Tal atitude é, sem dúvida, uma forma de se instituir o confisco.

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Autor: Indira Shiva Reis Muricy


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