Teuto-brasileiros, Um Ethos de Trabalho, Versus Afro-Brasileiros, Um Ethos de Vadiagem



"A transformação que sofre uma dada relação social não ocorre porque a relação que a ela se segue é melhor" (...).

Aléxis de Toqueville

No processo de regularização fundiária, através dos procedimentos previstos no Decreto n. 4.887/03, das comunidades remanescentes de quilombos ou quilombolas São Miguel e Martiminianos junto á Superintendência do INCRA no Estado do Rio Grande do Sul (SR-11) foram abertos dois processos administrativos[1] sendo que no processo referente á Comunidade de Martiminianos, não foi apresentada contestação no prazo legal - 90dias a contar da publicação do RTID - mesmo tendo sido notificados os autores e/ou seus representantes legais. Os motivos de serem divididas formalmente, embora sejam, enquanto comunidade de sentido e significados, uma só comunidade, aqui nos referindo especificamente ao sentido sócio - antropológico da palavra, parecem ter se dado de forma a indicar que, internamente, havia a possibilidade de clivagens sociais, políticas, e, por que não, étnicas.[2]

Dos documentos acostados, intitulados (pretensiosamente) como "Laudo Histórico daComunidade de São Miguel - Sesmaria-Colonização alemã e remanescentes de Escravos" chamou-nos a atenção, não apenas a ausência de pré-requisitos mínimos, formais, do que se pretenda apresentar como "laudo" ou "contra-laudo", mister de quem se intitula historiador, e, portanto, há de ter, obrigatoriamente freqüentado os bancos acadêmicos para saber que existem formalidades a serem estabelecidas, além do domínio dos conceitose do contexto com os quais se quer manejar.

Ora, emque pese o art. 10 da IN-20 dispor que o RTID será composto por informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, os contestantes optaram por um 'laudo' elaborado por três historiadores, a maioria licenciada ou bacharel, um geógrafo, um médico veterinário e uma secretária administrativa. Não há um sociólogo, muito menos antropólogo na equipe, o que deveras, não é vedado aos contestantes, mas demonstra se não dificuldade em encontrar profissionais dessa área que se prestassem a elaborar um 'contra-laudo', ou mesmo ignorância sobre o tema abordado, e, em última instância, um desprezo pela causa que lhes foi demandada.

Entretanto, há que se esclarecer que a multi-disciplinariedade, e, aqui, principalmente, a adoção de uma perspectiva antropológica para embasar ou orientar a atuação do Estado (in casu, o INCRA) não é tão somente, emboratambém o seja, sob o ponto de vista político, uma questão de opção, mas também se trata de uma imposição jurídica, formal e material, uma vez que esta disposta em ato jurídico formal, ou seja, um decreto federal[3] editado pelo Chefe do Poder Executivo Federal, ainda vigente, uma vez que ainda não foi julgado inconstitucional pelo STF[4], exceto para afastar a liminariedade pretendida, sendo, portanto, ato jurídico perfeito, em nada se lhe afetando a validade e eficácia. Isto sem esquecermos da IN nº 20 do INCRA, que regulamenta e disciplina o Decreto nº 4.887/05, nos fornecendo um rito a ser seguido.

Ou seja, essa norma existe, é válida, ao menos até que a Suprema Corte julgue-a inconstitucional, e estará a produzir seus efeitos até decisão contrária, ou revogação do mesmo pelo próprio Executivo, através da expedição de outra norma que o substitua, na íntegra ou parcialmente.

Assim que, a diferente formatação ou composição das peças, seja esse um laudo ou contra-laudo, e, principalmente, a divergência ou o descompasso da formação acadêmica dos signatários do contra-laudo não se dão em virtude de uma suposta formação ideológica 'comunistóide'[5] dos técnicos e pesquisadores do INCRA/UFRGS. Entretanto, de algum modo, demonstram o juízo de dês-valor com que os contestantes lidam com a questão, mesmo diante do Estado e da Lei.

E isso se percebe até mesmo pelos documentos acostados, majoritariamente artigos de jornais, de cunho meramente opinativo e especulativo, geralmente visando desacreditar pesquisadores e cidadãos, além dos próprios agentes de estado envolvidos na chamada "questão quilombola", aliás, tal como historicamente acontece com indigenistas, arqueólogos, ambientalistas, etc.

Diante de certos argumentos e posturas (e de muitos 'lados') o certo é que há no ar um saber e um fazer impregnados de uma "paranóia delirante", onde valores, signos e símbolos, mas, principalmente, interesses de ordem patrimonial material, além de imaterial, estão envolvidos, sempre numa relação originariamente conflitante e altamente verticalizada.

Já alertava BOBBIO: conquanto uns procurem habitualmente lançar a culpa do dissídio nos outros, o dissídio esta na própria natureza das tarefas e das responsabilidades de cada uma das partes, e é a expressão, nada mais e nada menos, do plano diverso em que se colocam a teoria e a prática, o pensamento e a ação." [6]

O que se esta a discutir, de fato, são visões de mundo ou concepções diferenciadas do próprio conceito (e sua extensão) do que seja "ciência", e a nós interessando sobremaneira as opiniões, no mínimo desairosas, acerca da antropologia enquanto disciplina acadêmica ou ofício, principalmente vindo de artigos de um membro da mesma universidade ou 'academia' a que esta a desacreditar. São o saber e o fazer acadêmicos que estão sendo postos em xeque. A produção do saber, pretensamente tida como universal ou universalizante e a própria disputa do e pelo campo do saber, ou, simplesmente a fogueira das vaidades humanas que ficam à mostra quando se esta operando no caso concreto, com vidas humanas, e não personagens fictícios.

A nosso ver, é o próprio Estado Democrático de Direito, que, através de sua atual Constituição Federal, que ainda cremos, Social Democrática, mesmo remendada para transmuta-la em constituição liberal, admite e garante a oitiva e, conseqüentemente, a participação desse sujeito coletivo, a comunidade quilombola, uma minoria política, porém maioria étnica no Brasil, seja no processo jurídico, social, e, portanto, histórico do país, seja, indireta e subjetivamente, através das suas cláusulas pétreas, as quais referem e referendam princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, insertos nos artigos 1º a 4º. Ou, ainda, pela teleologia dos artigos 215 e 216, que lidam com o patrimônio imaterial. E, finalmente, pela interpretação dada ao art. 68 do ADCT e ás Convenções Internacionais, como a 169, que, ratificadas pelo Brasil, se tornam leis federais através do fenômeno da recepção.

A partir dessa ótica da própria Constituição, nos parece ultrapassada a visão histórica exposta no contra-laudo de São Miguel, acerca não apenas da escravidão propriamente dita, mas da própria colonização alemã no Rio Grande do Sul. Nenhuma outra comunidade de imigrantes, ao menos no Rio Grande do Sul, como a dos "colonos" alemães ou deutschers, sentiu na pele a incompreensão acerca de sua concepção identitária, ou seja, do desejo e da possibilidade real de um duplo pertencimento: á etnia alemã, mas também e simultaneamente á cidadania brasileira. Ou seja, ser teuto-brasileiro ou deutschbrasilianer.[7]

A pleiteada identidade teuto-brasileira nada mais significava que um modo diferente de ser brasileiro. Tratava-se de uma concepção de etnicidade ancorada no ideário da colonização, e que tendia a anular possíveis clivagens internas. A elite, no Rio Grande do Sul os latifundiários, queriam os imigrantes, os chamados antes pejorativamente de 'colonos', circunscritos ao meio rural, muitas vezes perais, de onde pouco se pode extrair (daí porque a concepção utilitarista de muitos colonos sobre a natureza, o mato).E não olvidemos do pós - Guerra, quando nossos ancestrais, esses mesmos colonos temiam falar a língua alemã e foram tratados, de forma discriminada, como potenciais ou efetivos criminosos de guerra, mesmo que nascidos no Brasil, atrelados indistinta e genericamente ao pan-germanismo ou ao nazismo.

O que se ressalta na concepção do contra-laudo é a exaltação do "ethos" de trabalho alemão, em contraposição ao ethos de não-trabalho atribuído aos negros, seja no passado, seja na atualidade, afinal a comunidade contemporânea, além de seus ancestrais, ainda é percebida e descrita dessa forma pejorativa.

Ora, a deutschbrasilianertum enquanto ideologia étnica,trás consigo, justamenteuma proposta de pluralismo étnico-cultural, onde a origem nacional é a base da identidade étnica que englobarão elementos da cultura germânica, que são ou foram re-elaborados no Brasil.

Repetimos que, nenhuma outra comunidade (descartamos aqui os indígenas) como a colônia alemã, sofreu, historicamente, os efeitos, tão nocivos da perspectiva do enquistamento ou da assimilação, que resultaram em visões preconceituosas contra este segmento da população, os imigrantes.[8]

O professor Sergio Teixeira observou que inicialmente, a agricultura colonial era vista com discriminação relativamente á pecuária, sendo considerada até mesmo uma atividade "degradante", "socialmente inferior", havendo uma oposição entre as categorias sociais: gaúcho e colono. Alias, as colônias situavam-se perto das cidades e centros urbanos, justamente para estarem bem distantes dos latifúndios, visando manter a hegemonia política e econômica desse segmento. Segundo SEYFERTH (1991), havia um perfil idealizado pela política imperialista, que acabou por constituir "verdadeiras hierarquias étnicas de europeus capazes de praticar uma agricultura racional de base familiar. Logicamente, que os alemães, invariavelmente ocuparam o primeiro lugar nessas hierarquias", ainda que quantitativamente os números da imigração tenham sido pouco significantes, face á outras etnias, como portugueses, italianos, etc.

Por isso mesmo, se mostra inconcebível que esta mesma visão histórica enaltecedora do ethos trabalhador dos colonos alemães de São Miguel, alije do processo social histórico, uma outra minoria, in casu, os negros, cujo ethos que lhes foi e está sendo atribuído é o da vadiagem, e que também se vêem com a possibilidade dessa dupla identidade ou duplo-pertencimento, no caso, ser afro-brasileiro, pois assim se percebem, e, portanto, exigem este reconhecimento por parte do (s) outro (s), com os direitos advindos dessa qualidade ou status de cidadãos ou de comunidades remanescentes de quilombos ou descendentes de escravos. Essas pessoas buscam, desde sempre e ainda, existir, e, nada mais fazem agora que contra-discursar, usando exatamente o discurso étnico para acessarem direitos que a Constituição lhes afirma e garante: um território étnico, dentro de um Estado Nacional.

Afinal, as liberdades são ou devem ser solidárias.

Toda identidade é contrastiva, relacional, é uma construção política conforme a concepção de Weber. Assim que, só mesmo um pensamento e uma práxis cultural excessivamente etnocêntrica é capaz de tornar invisível o 'outro', tornando-o tão distante de 'mim' e da minha visão de mundo.Isto é o preconceito racial.

A crença na comunidade étnica se funda justamente nas diferenças culturais, as quais se tornarão visíveis numa situação de contato e contraste com a sociedade envolvente . No caso, "os colonos alemães", reparem.

Quando o colono ou mesmo o quilombola se refere ao outro, esta marcando diferenças e fronteiras, situando, inserindo ou excluindo. Logicamente que ressaltará sempre o seu estilo de vida, a sua cultura para diferenciar-se. O que não é concebível é que o faça para desqualificar ao 'outro', tão cidadão quanto aquele, sob todos os aspectos, exceto pelo principal de todos: os negros vieram para o Brasil sem qualquer manifestação de vontade, na condição de escravos. Os colonos emigraram através de políticas estabelecidas pelo Império e pela República. Eram cidadãos, em tese, livres, embora tenham sofrido imensamente nessa promessa de um "Novo Mundo", que se lhes apresentou, por ora verdadeiramente selvagem e distante, e por outras, imenso, generoso e abundante. O negro foi rés: coisa. A abundancia não se lhes foi apresentada senão quando fugidos ou alforriados, mas aí também eram lançados à própria sorte e à total marginalidade social.

Como prelecionava o historiador Sergio Buarque de Holanda[9], é preciso que a história seja contada também pela massa dos oprimidos, e não penas pela historiografia 'oficial', narrada sob a ótica da classe dominante. Dizia FEBVRE, que é preciso que essa categoria ou segmento social tenha "direito á história". Aliás, a história, sob o ponto de vista dos contestadores, não passa de uma alusão e afirmação da tese do bom selvagem, onde ora o negro aparece como pacifico, indolente e vagabundo, ora como marginal e violento (ainda no século vinte capoeiristas eram presos como criminosos).

O historiador gaúcho Décio Freitas[10] ressalta a importância dessa classe impotente- escravos- para o "sucesso" desse sistema de produção- a escravidão- que teve como pressuposto básico a exploração de um segmento enorme da massa de "trabalhadores" forçados: homens, mulheres e crianças submetidos às mais vis condições de trabalho e de vida das quais jamais a humanidade teve noticias e na história social do Brasil, ao menos nos chamados "tempos modernos". Confesso que, depois da Escravidão, só consigo pensar em Hyroshima, Nawasaki e no Holocausto, passando, claro, pelo Vietnam, revolução vermelha maoísta, na Guerra do Paraguai, enfim.

A idéia distorcida e falaciosa de que os africanos, e depois, os afro-brasileiros, negros e escravos, além dos índios, eram dóceis ou indolentes, refratários ao trabalho, ou de que não lutariam contra tais condições, talvez surja justamente das mesmas causas que geraram o lapso temporal de duração da escravidão no Brasil, relativamente ao resto do mundo: mais de três séculos, como se esses seres jamais se rebelassem ou fossem apenas "hóspedes hostis". Trata-se de essencialização e naturalização inconcebíveis num mundo tão diverso e plural.

Sobre o trabalho escravo no Rio Grande do Sul, é esclarecedora a obra do historiador e arquiteto, mestre em história pela PUC do RS, Profº Gunter Weimer [11] onde o autor, através da análise de anúncios de jornais, quantifica a participação do contingente escravo na constituição da população com vistas a avaliar a dinâmica da sua evolução, analisando, dessa forma, a evolução percentual dos diversos segmentos étnicos, comprovando a inconsistência da tese de que foram os imigrantes os causadores do "branqueamento" da população do Rio Grande do Sul, e, conseqüentemente, leva á uma revisão da ótica preconceituosa existente na historiografia oficial acerca do contingente de escravos. O autor traz á baila, dentre outros, jornais produzidos até mesmo antes da Guerra dos Farrapos, que dão conta da alta especialização dos escravos, que decai antes mesmo da abolição, quando o sistema já havia colapsado, sendo a abolição um 'ato político que chegou com quatro anos de atraso em relação ao Rio Grande do Sul...'.

Ademais, é preciso não esquecer que a exploração do trabalho escravo não se reduziu ao meio rural, em que pese aí tenha predominado, mas que, chegando aos principais portos brasileiros: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luis eram redistribuídos aos portos de Rio Grande, Desterro, Belém e outros[12] sendo vendidos em diversas transações, até mesmo no interior, seja para fins de atuarem no comércio ou atividades como sapataria, carpintaria, fins domésticos, minas, charqueadas, etc. O certo é que, tanto nas grandes ou mais acanhadas cidades, quanto nas fazendas, no litoral ou no sertão, o escravo era a pedra de torque das mais variadas atividades. Aliás, na vida citadina, era praticamente inconcebível uma vida sem escravos, sem mucamas, amas de leite, sendo que seus proprietários chegavam a ensinar-lhes algum oficio, tal como carpintaria, afim de 'administrar-lhes' as habilidades. Havia até mesmo uma categoria socioeconômica: a dos escravos de oficio ou de aluguel, os quais trabalhavam nas construções das cidades, nas sapatarias, nas armações, dentre outras atividades.

Moacyr Flores[13], assim se refere:

  "Os escravos exerciam as mais diferentes tarefas, eram domésticos (ama de leite, mucama, cozinheira, carregador, moleque), de ganho (sapateiro, carpinteiro, calafate) agricultores (cuidavam das hortas e pomares das chácaras), campeiros (peão, domador, tropeiro, trabalhadores nas charqueadas e soldados. Os negros construíam as casas e depois limpavam, carregavam a água, despejavam os dejetos, cozinhava e administravam para os brancos. (...)."

Em suma:

"As formas, níveis e conteúdos das lutas sociais dependem e são determinadas pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas e pelas relações sociais de produção. Exigir da luta de classes, em contextos pré-capitalistas, determinações próprias aos movimentos sociais em formações capitalistas-oprimidos, etc. - é ignorar que a vida material determina a consciência possível do homem de suas necessidades. O escravo, brutalizado na produção, viveu e lutou como um bruto. Apesar de ter lutado, no fundamental, pela defesa de sua existência biológica, determinou o desenvolvimento, a crise e a superação da produção escravista".[14].

 

Já prelecionava Ruy Barbosa: "não há numa constituição, cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos".

Como afirma AFONSO DA SILVA, "Todo principio inserto numa constituição rígida adquire dimensão jurídica, mesmo aqueles de caráter mais acentuadamente ideológico-programático", como é o caso do art. 215 da CF de 1988.

Conforme o constitucionalista português CANOTILHO[15], os princípios jurídicos fundamentais não se resumem a princípios gerais de Direito ou regras jurídicas gerais, sequer estando inscritos em uma ordem suprapositiva, seguindo enquanto normas jurídicas positivas e fonte de Direito, são "princípios fundamentais historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica geral e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, conhecimento e aplicação do direito positivo".

Os princípios políticos constitucionais que dizem sobre a ordem econômica e social, são programáticos apenas quanto à definição das bases da finalidade e atividades estatais, determinando que, tanto uma, quanto outra, visam realizar a justiça social, norma-fim que permeia todos os direitos, sejam estes econômicos ou sociais. Outros princípios, como o da "função social da propriedade", a "redução das desigualdades regionais e sociais", se harmonizam a este principio-fim, sendo plenamente eficazes e diretamente aplicáveis, e, assim, se travestem de condição de justiça social.

Tal força contida nestes Direitos Fundamentais acaba por gerar uma proibição de omissão dos Poderes Públicos, sendo passível de invocação judicial, conforme previsto no parágrafo 1º do art. 5º da CF.[16]

O Titulo II da CF de 1988 trás em seu bojo os direitos fundamentais e suas garantias de realização, sendo gênero, cujas espécies são: os direitos individuais, coletivos, sociais, nacionais e políticos. A posição destes direitos fundamentais na Carta Magna indica de antemão o grau de sua relevância, estando posto até mesmo antes da Organização do Estado Nacional. Esta verticalização não seria relevante, quando favorável aos despossuidos?

Ora, Direitos Sociais são Direitos Fundamentais dos homens enquanto organizados em sociedade, e mesmo que dependessem, na práxis, de regulamentação pelo Poder Público para se realizarem, não perderiam tal natureza. Portanto, sendo tais direitos normas ou regras jurídicas, podem perfeitamente ser diretamente aplicáveis, vinculando a todo o Estado. Tais direitos são públicos e subjetivos, por serem fundamentais, não deixam de existir e valer juridicamente pela simples omissão no que tange ás condições materiais e institucionais necessárias ao seu gozo e fruição.

Nunca é demasiado repetir a lição do Profº Dr. INOCENCIO MÁRTIRES COELHO[17]:

"As normas constitucionais são normas jurídicas, isto é, são objetos culturais ou realidades significativas; por isso, a sua apreensão, como a de qualquer outra objetivação do espírito humano, exige a utilização de um método adequado, de natureza empírico-dialética, que se constitui pelo ato gnosiológico da compreensão. Desta forma, o significado de tais normas, assim como o de todo objeto cultural, revela-se num processo dialético, num ir e vir da materialidade do seu substrato à vivencia do seu sentido espiritual, isto é, do seu texto, tal como lingüisticamente estruturado, aos motivos que inspiraram a sua promulgação e respondem pela sua continuada vigência. Esse ir e vir dialético manifesta-se, metaforicamente, como um balançar de olhos entre texto e realidade, entre norma e situação normada, num processo aberto e infinito, significativamente ilustrado pela figura geométrica da espiral. (...)Como decorrência da velocidade crescente em que se dão as transformações sociais, exigindo soluções imediatas, que não podem esperar as sempre demoradas respostas legislativas, é cada vez mais intensa a criação judicial do direito, apesar de todos saberem que juízes e tribunais desenvolvem essa atividade como instancias heterônomas e ilegítimas de produção jurídica. A satisfação com os resultados, no entanto, tem conferido legitimidade aos modelos jurídicos surgidos desse ativismo judicial, pelo que, nessa perspectiva, a atividade interpretativa pode ser considerada um prolongamento ou até mesmo uma fase do processo legislativo. Para os que privilegiam a dimensão eficacial do direito, este é o momento culminante da experiência jurídica.(...) Como diferentemente das leis-que possuem uma estrutura proposicional do tipo se A, então B-, as normas constitucionais se limitam a enunciar princípios, que, por isso, não contêm elementos de previsão que possam funcionar como premissa maior de um silogismo subsuntivo, a sua aplicação exige que sejam não apenas interpretadas, mas, sobretudo, densificadas e concretizadas pelos operadores da Constituição. Em razão, também, dessa peculiar estrutura normativo-material, que a distingue das leis-cuja aplicação está subordinada á lógica do tudo ou nada-, as normas constitucionais apresentam-se como mandatos de otimização, que, não só permitem como, de certa maneira, até mesmo exigem uma aplicação diferenciada, do tipo 'realiza-se o ótimo dentro do possível'. Por isso na aplicação dos princípios o interprete não escolhe entre este ou aquele, apenas atribui mais peso a um do que a outro, em função das circunstancias do caso, num juízo de ponderação que não implica desqualificar ou negar validade ao princípio circunstancialmente preterido, o qual, por isso mesmo, em outra situação, poderá vir a merecer preferência. (...)

 

Ademais, basta que se re-visite o próprio Texto Constitucional vigente para que se verifique a possibilidade da desapropriação, em tese, independentemente de qualquer outro diploma legal:

"Inciso XXIV- a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade publica, ou por interesse social, mediante justa e previa indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição";[18]

Em optando o INCRA pelo Instituto da Desapropriação, lembre-se que o processo desapropriatório é totalmente autônomo e sequer guarda relação causal com os registros anteriores, modo de aquisição originário da propriedade que o é. E mesmo se considerando modo derivado de aquisição, a indenização a tornará aquisição de um proprietário anterior.

A utilidade publica ou interesse social pode recair sobre bens necessários ou simplesmente convenientes ao poder público, á finalidade pública, desde que não sejam de natureza personalíssima (o que não é o caso). Afasta-se no processo expropriatório, qualquer discussão relativa ao mérito do decreto expropriatório, quanto á sua oportunidade, conveniência, utilidade ou necessidade, e até razoabilidade da medida extrema.Conforme renomado administrativista Cretella Jr.:

 

"No processo de desapropriação é interdito ao Poder Judiciário decidir se ocorrem ou não os casos de utilidade pública, de necessidade pública ou de interesse social. Estes aspectos, que dizem respeito ao mérito do ato administrativo declaratório, são insuscetíveis de exame jurisdicional, porque situados na esfera discricionária e, pois, impenetrável da Administração Pública. Impenetrabilidade, vedação, interdição no campo do mérito, ou seja, proibição de revisão, pelo Poder judiciário, de ocorrência de causa expropriatória. O Poder Público expropriante é arbitro inconteste da valoração dos bens particulares, apreciando-os sob o angulo do mérito, em seus desdobramentos de oportunidade e da conveniência, resguardado da intromissão indébita do Poder judiciário no setor subjetivo e sutil da escolha daquilo que é necessário ou útil, ou do que se localiza na esfera do interesse social".[19]

Cabe ao Judiciário, portanto, apenas verificar se a fundamentação, as justificativas e a finalidade apontadas estão presentes ou não.

 

  • O conceito de ocupação: propriedade privada versus território étnico.

Creio que os dois grandes problemas, de ordem conceitual e prática, envolvendo a questão da regularização das comunidades remanescentes de quilombolas, são: a interpretação que se dá ao termo "ocupação" de suas áreas, bem como a diferenciação do que seja "território" para o cientista social, no caso antropólogos, daquilo que significa território em termos jurídicos ou políticos, aqui envolvendo e problematizando conceitos de Teoria Geral do Estado, de Supremacia Territorial e Soberania Nacional.

Na concepção do Estado Nacional, o território só pode ser concebido como nacional, com atributos de supremacia e soberania, em face de outros Estados Nacionais, e relativamente ao próprio cidadão: o Povo, um dos elementos constitutivos do Estado.

Portanto, identidade étnica, aqui, no caso dos quilombolas, esta se construindo não apenas em termos de sentimento de pertença, de crença em uma origem e num destino comuns, compartilhados, mas também através de um território sobre os quais estes atributos subjetivos fazem sentido e lhe emprestam outro caráter, que não se contrapõem á supremacia ou soberania nacionais, mas sim a interesses particulares, pois reivindicam posses e propriedades privadas, também tuteladas pela Carta Constitucional.

Há que se fazer um exercício constante de relativização de conceitos jurídicos e políticos que já estão cristalizados, mais que positivados, no imaginário do próprio corpo jurídico-administrativo do Estado Nacional e aqueles que fazem parte da efetivação de direitos humanos e, portanto, fundamentais dos cidadãos, detentores do poder originário.

Diante dessas reivindicações de direitos materiais e imateriais por parte do segmento negro, autodenominado e auto-reconhecido como quilombola, percebe-se claramente que se esta diante de um impasse, por parte do Estado. Na verdade, uma clara e evidente crise de representatividade e por que não legitimidade, pois a práxis do Estado no que tange á interpretação dos conceitos que fundamentam esse reconhecimento que implica na regularização fundiária das áreas ocupadas por negros remanescentes de quilombos, ou seja, descendentes de escravos, tem demonstrado a falta de consenso dentro do estado/governo, bem como reflete a imensa pressão que uma dada minoria socioeconômica, minoria étnica no país uma vez que se diz branca, exerce sobre o tema, tratado como questão de segurança interinstitucional, ou por que não dizer, sem medo de errar: como assunto de segurança nacional.

  • A Desapropriação e pequenas e médias propriedades

O fracionamento excessivo do território em áreas que, majoritariamente, não chegam a perfazer um hectare, restando muito aquém do modulo rural regional, inclusive, indica a forma como a comunidade remanescente vem sendo expropriada de seu legado, material e imaterial, e paulatinamente re-apropriados pelos 'brancos' e não-quilombolas, seja de modo sutil, através de mecanismos de pressão socioeconômica, seja diretamente, através de apropriação ou alienações a preços irrisórios.

Verifica-se que, no caso em comento, também a maioria das propriedades pertencentes à não-quilombolas, as quais compõem ou comporão o território reivindicado, são, em princípio, passiveis de serem categorizadas como pequenas propriedades ou minifúndios, Portanto, acaso comprovem os proprietários ser esta a sua única propriedade, são, ao nosso ver, insusceptíveis de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária ou a chamada desapropriação-sanção (artigos 182 e 184 da CF), por determinação constitucional, art. 185 da CF, afastando-se, então, a incidência da lei 8.629/93, senão vejamos:

"Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I-a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; (...) "".

 

A inexpropriação da pequena propriedade, portanto, é uma limitação em função da extensão ou dimensão física da propriedade aliada e condicionada à questão de ser o único imóvel do proprietário.[20] Portanto, entendemos que somente não será aplicável a desapropriação nestes casos, se comprovado pelo (s) proprietário (s) que a propriedade em questão é única.

Sob este prisma, entendemos que, após a expedição do decreto presidencial, deverá o INCRA proceder em nova vistoria para verificação desta condição e, então, ato-consequência, se negativa a hipótese, da própria produtividade dos imóveis rurais. Do contrario, o Estado apenas estaria jogando uma minoria contra outra minoria. Nesse caso concreto, envolvendo pretensões de identidades étnicas: afro-brasileiros e teuto-brasileiros.

Ainda quanto ás propriedades que conformam o território étnico o laudo agronômico nas suas conclusões repara:

"(...) a condição de uso dá-se fundamentalmente com estabelecimentos residenciais (casa de moradia.) e pequenas lavouras de subsistência, troca ou comerciais. Também, como caracterização que é, não se poderia deixar de registrar que no aspecto da sustentabilidade da Comunidade Quilombola ali residente, através das atividades agropecuárias é de toda impossível, dada a carência de área compatível com a demanda".

Enfim, o espaço físico aqui é demasiadamente politizado, sendo palco de conflitos reais e imaginários que, ao fim e ao cabo, nos remetem à questão do racismo brasileiro, que nesse caso, vem se mascarando como burocracia.Portanto, o conceito de ocupação aqui há de ser conjugado e coadunado com outros conceitos e princípios, principalmente o da sustentabilidade sócio-econômica do território. Entendemos que com a teleologia da Carta de 1988, se estará relativizando o conceito de propriedade e ocupação, conjugando propriedade com função social.

"A única construção que até agora resistiu ao tempo, por ser uma autentica construção de catedral pedra por pedra (não terminou ainda) é a Constituição. Antes que ela seja tocada ou retocada, desejaria que houvesse menos corrupção e maior senso de responsabilidade, uma ânsia mais generalizada de ajudar o país, mais do que o próprio partido ou o grupo, uma forte vontade de dar vida a alianças menos caducas e menos impotentes. Mas se tudo isso se verificasse, haveria necessidade de se mudar a Constituição?".[21]

Admitamos que isso já nos aconteceu algumas dezenas de vezes, e, portanto, só nos resta confessar que são os homens e a sociedade brasileira quem estão a necessitar de mudanças profundas, não apenas estruturais, mas de essência ou de conteúdo.

Luciana Job - antropóloga e advogada pública.



Autor: Luciana da Costa Job


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