O Menino Que Queria Ser Avião



O MENINO QUE QUERIA SER AVIÃO

Uma história de superação.

Eliene Silva dos Santos

Era um menino, não mais que um menino, 10 anos talvez lhe coubessem bem. Não era loiro, pretotambém não o era. Bonito até seria, se não lhes escurecessem o sorriso os pedaços dos dentes que restavam. Mas era um menino, e meninos são alegres. Ao menos quando brincam.E o que não faltava naquele beco era lugar para brincar. Pular as manilhas dos raros esgotos na redondeza; descer as calçadas nos carrinhos de rolimãs, balançar nos pneus amarrados às árvores. Mas dentre muitas outras felicidades, o menino tinha uma preferida: olhar os aviões do alto da laje do barraco. Certo dia,fez até uma pipa e colou uma foto sua. Razão pela qual ganhou uma bronca da mãe – a foto era para a escola – mas valeu a pena, assim o menino iniciava o seu sonho: podia ser um avião.

Nas poucas vezes que conseguia ir à escola, preferia as aulas de arte; desenhava aviões de todos os jeitos: grandes, pequenos, magrelos, pesados, com nomes em Inglês, logomarcas, bandeiras de países nunca conhecidos. E fora das aulas de arte, sua carteira tornava-se um céu de brigadeiro para o seu sonho na ponta do seu lápis. O menino queria ser avião.

Nem ele mesmo sabia quando começou a vontade de ser um meio de transporte. Não, ele não queria ser piloto, comissário, tripulação ou passageiro. Ele queria ser o próprio avião.

Em seus momentos de inspiração, deitado na beliche do barraco olhava as luzes piscando no céu e as acompanhavaaté sumirem no infinito. Nesta hora, não ouvia os gritos do pai bêbado que ameaçava bater na mãe. Ignorava a irmã de 13 anos que estava grávida do namoradinho de 15 que se "casou" com ela e agora dormem na beliche ao lado. Seu irmão da cama de baixo, só dormia e mamava os flácidos e tristes peitos de sua pobre mãe.

Mas a vida do menino não era só de sonhos com aviões. Ele tinha amigos, camaradas mesmo. Daqueles que dividem tudo. Se achavam uma bituca de cigarro, partilhavam, uma garrafa de refrigeranteganhada no boteco ou um cachorro quente que sobrou do "Seu Paulo" era festa da turma.

O melhor amigo do menino era o Marcelo que tinha 15 anos. A diferença de idade entre os dois era grande, mas conveniente para os dois. Marcelo deixava o menino das uns beijinhos nas meninas que ficavam com ele e em troca disso bastava o menino lhe fazer alguns favores. Nada de mais: às vezes Marcelo estava ficando com uma mina e pedia o menino pra vigiar o beco. O mesmo acontecia quando Marcelo fumavao seu baseado. Noutras, quando a polícia passava e a turma do Marcelo tava com algo que os "ôme" não gostariam de encontrar, eles jogavam na mochila da escola que sempre ficava com o menino. Afinal saía sempre de casa para a escola, entrar lá era outra estória.

E assim o menino crescia, já estava com 14 anos, sua irmã já estava grávida de novo. Sua mãe também. Mas algo era novo. Seu pai não batia mais em sua mãe. Agora era outro homem que lá vivia.

A mochila da escola ainda andava nas costas do menino, mas agora ele nem se dava ao trabalho de colocar cadernos lá dentro. Além das encomendas de Marcelo, agora ele transportava pequenos pacotes para toda a sua turma, e para os amigos da sua turma e a gente que nunca conhecera antes. Agora não precisava mais fazer favores para ficar com as meninas, já tinha as suas próprias.

E os sonhos do menino? Estavam em algum lugarzinho da sua mochila, dos buracos cada vez maiores do barraco. Mesmo que agora não tivesse mais tanto tempo para olhar para o céu: as luzes dos carros da polícia brilhavam mais.

E numa destas noites em que tudo parecia calmo, o menino lembrou-se que já tinha um nome na comunidade: Valério, este era o seu nome, embora alguns o chamavam de "o cara". Mas ele ligou pela primeira vez a palavra avião com "avião". Ele realizara o seu sonho. Valério é um avião. Um dos mais jovens do morro. Ganhava pouco ainda pois era moleque demais e não arriscava muito. Pois dentro da pequena mochila junto com os diversos sonhos esquecidos, dormia a sua paixão por aviões.

Num mês qualquer, num dia muito violento, Marcelo foi atingido num tiroteio com a polícia e morreu. Na roda de seus amigos, depois do enterro, enquanto a turma usava drogas, menos Valério que apesar de viver dela não consumia, um dos moleques filosofou: "é Marcelo começou sendo avião no morro, agora pousou no céu". Todos riram do momento de reflexão do "nóia", todos não, Valério ouviu, pensou, e foi para casa.

Naquela noite Valério voltou a ser menino. não dormia mais na beliche, ficava na laje num quartinho. Então viu aquela luzinha de anos atrás, um avião ia para algum lugar levando vidas, guiado por vidas e pelo qual vidas esperavam. E o menino entendeu, ele não queria ser avião, ele queria viver, ser livre para voar, deixar um facho de luz por onde passava, ter um ponto de partida e um ponto de chegada. E comparou seu sonho com o avião no qual se tornara. Não tinha liberdade, levava mortes; as pessoas que o esperavam recebiam morte. Valério ficou de pé, olhou ao seu redor e se lembrou de quando, ainda menino,queria coisas boas, enfrentava as dores da vida dura com o coração aberto porque sonhava. Mas fez algo imperdoável.Deixou a vida real sufocar a vida do menino. Tudo bem, ainda tinha 17 anos. Não precisa levar a vida tão a sério. Mas e Marcelo que morreu tão jovem? E se acontecesse o mesmo consigo? Não, ele não iria ter o mesmo fim do amigo. O menino-homem decidiu virar o jogo. Mas como fazer isso? Hoje o expediente terminou cedo, todo mundo ficou entocado por causa do tiroteio. Mas amanhã cedo tinha que prestar contas dos pacotes, fora a "clientela" que já estava rondando o barraco. E olha que nem era 4 da matina.

Quem iria ajudá-lo? O pai foi embora. A mãe só vivia para os meninos e o novo marido, coitada, não dava conta nem dela e dos netos.

Lembrou-se de "Seu Paulo" que pelo menos umas dez vezes nesses anos lhe disse: "menino , menino, sai dessa vida, quem planta chuva colhe tempestade". Mas o que ele queria dizer com aquilo? Por que não falava o Português correto?

Saiu cedo e foi procurar"Seu Paulo". A esposa disse que este estava na lanchonete do outro lado do morro, em frente à escola técnica. Valério sabia onde era, já havia arriscado entregar lá, mas a polícia não dava trégua então desistira há muito tempo. Hoje poderia ir lá que não era manjado. Pegou uns trocados e sentou na mesa mais escondida da lanchonete. "Seu Paulo", meio cabreiro, se aproximou e puxou assunto: - Pois é, você soube do Marcelo?, quem planta chuva colhe tempestade.

Lá vinha ele com a mesma frase- decidiu perguntar de vez o que ele queria dizer com aquilo.

"Seu Paulo" começou a explicar:

-Tudo o que fazemos volta para nós como conseqüência.Se fazemos o bem recebemos o bem como recompensa. Se andamos direito com as pessoas, elas farão o mesmo conosco. O Marcelo estava vendendo drogas, destruindo vidas, matando pessoas, transgredindo regras. Com isso nada de bom poderia retornar para ele. A lei estava contra ele, a comunidade tinha medo e revolta, ninguém poderia defendê-lo. Entendeu Valério?

-Acho que entendi isto logo após o enterro dele. Por isso que eu vim lhe procurar. Eu não quero colher tempestade. Quero colher paz, vida, liberdade e segurança. Como posso conseguir isso "Seu Paulo".

-O primeiro passo é querer, Valério. Você já começou. Só que você sabe que este mundo onde você se embrenhou é muito perigoso.

-Sei muito bem como é.

-Muitos só conseguem deixar com a morte. Se você chegar lá hoje para entregar as suas mercadorias e "pedir demissão" será bem aceito pelos chefes do morro?

-É o que tenho medo. Quando comecei jurei não entregarninguém, eles dizem que ali é bom, mas só se entra pra ficar. Vou ter que fugir do morro. Me ajude!

-Tenho como te dar um emprego, mas você tem que andar na linha evoltar a estudar, você garante?

-Claro! Deixa eu irlá no morro e aos poucos sair dessa vida.

-Tudo bem, eu espero você.

No caminho Valério pensou e encontrou a única maneira de sair do tráfico. Adoecer de mentira. Começou a faltar ao "trabalho". Fingia passar mal e sumia uns diasdizendo estar internado. Até que os chefes da boca não quiseram mais ele como avião. Valério ficou livre, agora era o fracote da boca, mas sua força só aumentava a cada dia.

Até que enfimpoderia voltar à escola. E não foi difícil pois entrou no curso supletivo de meiode ano. Procurou "Seu Paulo" e este lhe contratou das 9 às 17 horas. A jornada não era fácil, para quem vivia só na moleza no morro. Mas Valério não desistia. Com o salário que ganhava atendendo na lanchonete, ajudava a mãe e os irmãos a viverem melhor.

Mas e o avião? E os sonhos do menino? Estes continuavam lá dentro. Só que agora diferentes. Quem sabe quando concluir os estudos ele busque uma carreira como piloto? Por enquanto Valério já voava alto. Voava longe das más companhias e era um cidadão de verdade.

E para ajudar outros meninos como ele, se associou à ONG que dá aulas e palestras para evitar que os outros jovensdo morro entrem no tráfico.

Seu lema é: UM SONHO BUSCADO SALVA UMA VIDA!!

Literatura Juvenil


Autor: ELIENE SANTOS


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