A Medicina Como Instrumento de Humanidade nas Obras de Erico Veríssimo



Resumo: A literatura é uma fonte rica de informações sobre a medicina e a relação médico-paciente. Assim, tendo como ponto de partida a leitura e análise de algumas obras de Erico Verissimo (1905-1975), a saber, dois contos: “A ponte” e “O navio das sombras”, bem como o romance Olhai os lírios do campo, tentar-se-á a realização de um estudo acerca do modo como a medicina está circunscrita na literatura. A partir do histórico de Verissimo como farmacêutico e como pessoa que conviveu com médicos nessa atmosfera que envolve enfermidades/médico/cura/vida-morte, já se detecta marco inicial interessante para a abordagem dessas obras, o que culminará, de fato, na busca da relação médico-paciente, a qual pode ter ou não um cunho realista; buscar-se-á também elucidar e entender o comportamento tanto do médico quanto do paciente, a fim de se comparar a profissão propriamente dita com aquilo que ela realmente representa, sua simbologia, pensando num possível resgate da humanidade presente nessa profissão que, outrora um mito, hoje tem sido tão afetada pela exacerbada tecnificação. Palavras-chave: medicina e literatura; interdisciplinaridade; teoria literária; humanidade na medicina; comportamento humano.

O homem é um ser complexo. Cada pensamento, sentimento e ação estão intimamente relacionados com experiências pessoais, com o contato com o mundo e com os outros.

A capacidade de refletir sobre si e sobre questões relacionadas à vida, à morte, à doença e ao medo de um modo geral caracteriza não uma qualidade dispensável, mas um verdadeiro e vital instrumento para o estudo do homem. A qualidade de vida excede um diagnóstico clínico de simples ausência de patologia física. A mente, campo excessivamente incerto, pode ser considerada até mesmo mais perigosa do que a ação dos incontáveis patógenos e antígenos (substâncias detectadas como estranhas pelo organismo,ou seja, representam perigo para o corpo).

Entendendo as pessoas e seus sentimentos nessa linha de raciocínio, o presente trabalho objetiva despertar o senso de humanidade por meio de uma investigação tanto subjetiva quanto científica da temática que aborda o conceito de morte, o suicídio e os efeitos que a doença promove no paciente, principalmente no caso de pacientes portadores de doenças terminais, tais como o câncer.

Em primeiro lugar, é preciso buscar compreender o conceito de morte. De acordo com uma perspectiva médica, morrer é seria suprimir a vitalidade, entorpecer. A morte, como elemento definidor do fim da pessoa, não parece poder ser explicada pela parada de um órgão isoladamente, por mais indispensável que seja. É na extinção do complexo pessoal, representado por um conjunto, que não era constituído só de estruturas e funções, mas de uma representação inteira, dada a complexidade do corpo. O que morre é o conjunto, é a integração de uma personalidade. Daí a necessidade de não se admitir em um único sistema o plano que determina a morte.

Estudos recentes na área de psicologia revelam que no paciente oncológico (portador de câncer) pediátrico, a percepção da morte geralmente muda proporcionalmente com o desenvolvimento do pensamento e da linguagem. Já no adulto, a concepção da morte é dependente da experiência física e psicológica pela qual se está passando. No idoso, contudo, a morte é mais facilmente aceita, assim a percepção dessa temática depende principalmente da satisfação obtida com a vida, depende das experiências individuais. A literatura científica aparentemente apóia a teoria de que a percepção da morte deve ser considerada subjetiva, única e complexa para cada paciente. Ocorrem transformações da percepção da morte ao longo do desenvolvimento, fortalecendo a noção da presença da morte como parte integrante da vida, algo natural.A idéia de Homero de que os homens são como ondas: quando uma geração floresce, a outra declina,  parece aqui fazer sentido. Há ainda outra reflexão aparentemente muito pertinente à abordagem aqui demonstrada, que é a afirmação de Emil Cioran de que a morte seria a coisa mais segura e firme que a vida inventou até agora.

Fazendo uma conexão entre vida real e literatura, podemos citar como exemplo o trabalho de Erico Veríssimo (1905-1975), o qual lida com essas questões em sua ficção, mas nos traz elementos essenciais para uma análise do comportamento humano frente às patologias.Não se pode deixar de lado a noção de que os cientistas, antes de serem dotados de razão, são dotados de sentimentos e emoções, posto que são homens e, conseqüentemente, estão também sujeitos às incertezas e inseguranças com que todos se deparam ao longo da vida.

Morrer pode também ser interpretado como algo menos objetivo e mais simbólico, tese que se comprova através de trechos do conto "A ponte", do escritor gaúcho Erico Verissimo. No trecho: "Sim, morrer talvez fosse nascer às avessas. Voltar", por exemplo, o autor incita o leitor a pensar na morte, não como a simples resposta à insuficiência dos órgãos e sistemas, mas como uma passagem; a morte, cujo processo aparece representado pelo próprio título do conto, é uma ponte, mas sendo assim haverá um ponto de partida e também um ponto de chegada, ou seja, outra temática acaba sendo abordada, a questão aqui colocada diz respeito à espiritualidade. As evidências textuais parecem fazer com que o leitor seja silenciosamente desafiado a refletir sobre sua própria condição de mortalidade, e incitado a tomar uma decisão quanto às suas crenças em relação ao que se segue ao processo do falecimento do corpo. Algumas pessoas revelam uma crença inabalável, como CHAURI (2001) o que se expressa no trecho que se segue.

"Existe um amor maior. Existe uma bondade maior. Existe um poder maior. A nossa mente está ligada com o Universo. Nós não somos uma parte isolada do Universo. Nós estamos juntos com todas as partes. Nós fazemos parte da mesma respiração – a grande respiração. A nossa pequena respiração pulmonar é apenas ilusória. O nosso movimento é apenas ilusório. O nosso real movimento é mental, espiritual. É até onde nós conseguimos ver do todo que nos cerca e do qual fazemos parte" (Charuri, 2001).

A passagem da vida para a morte pode ainda ser entendida como uma solução, o fim de todos os problemas que assola as pessoas, sempre presas às suas obrigações. Esse sentimento de libertação é perceptível no conto "A Ponte".

"Cruzarei a ponte." "Podiam vir. Estava pronto. Nada, nada mais importava. Fosse como fosse ele voltaria. Para onde? Para onde? Para o quarto? Para casa?" (VERISSIMO: 1972, p. 318; 358)

o narrador realça novamente a busca, a curiosidade por descobrir o que há depois da falência física.

"Talvez a morte afinal de contas seja nossa mãe legítima, a verdadeira, a definitiva."

"Se tenho medo de morrer? Claro que não, menino. Primeiro não costumo pensar na morte, e quando penso é sem nenhum pavor. Morrer é uma coisa tão natural como nascer. Acontece que não estamos preparados para encarar a morte como devíamos. Não me lembro de quem foi que disse que o longo hábito de viver nos indispõe a morrer. Pode crer que o mais que sinto com relação à morte é uma pequena 'indisposição'."(VERISSIMO 1972, p. 302)

Muito embora a definição do limite existente entre o estar vivo e morto se mostre muito vaga na compreensão das pessoas, tanto na Medicina e na lei, há uma separação bastante clara. A morte é o momento em que conseqüências concretas ocorrem, incluindo ausência de requisição legal para suprimento de reanimação ou tecnologias de suporte vital, ocorre a perda de identidade pessoal e de direitos pessoais, potencial para doação de órgãos e autópsia, execução de testamento legal e bens, seguro de vida e despojamento do corpo através do sepultamento ou cremação.

Para sintetizar essa dualidade na forma como se pode perceber a morte, o conto traz duas descrições que se seguem, as quais são perceptivelmente distintas da mesma cena, a morte de M.M.M., (Mário Meira Moura), o protagonista da narrativa.

Numa visão metafórica tem-se o trecho:

"O comboio saiu do túnel para a manhã luminosa. Mário perguntou ao chefe de trem:

– Que horas são?

O homem tirou do bolso o relógio de platina e olhou o mostrador:

– Son lãs cinco de La tarde.

– Por que estamos tão atrasados?

– Porque levamos no trem o cadáver de um toureiro.

– Ah!

– Um touro rasgou-lhe o estômago com as aspas.

Mário olhou para fora. Reconhecia as paisagens da infância.

– Que é isso no peito? – perguntou o chefe de trem.

Mário abriu mais a camisa e disse:

– Uma tatuagem. Uma flor. É para a minha namorada que está me esperando do outro lado da ponte." ."(VERISSIMO: 1972, p. 361)

Vale lembrar que a flor, que no excerto apresentado aparece como uma tatuagem, na verdade se refere à "flor maligna", que é a forma como o personagem se refere a seu tumor no estômago durante toda a história. Uma simbologia clara da "morte", propriamente dita. Paciente, implacável, inexorável. A cena continua:

"– Quantos anos você tem, menino?

– Vinte.

– Em que trabalha?

– Sou marinheiro.

– Donde vens?

– Das Índias.

O homem sacudiu lentamente a cabeça, compreendendo. Depois sumiu-se. O trem apitou. Mário meteu a cabeça para fora do carro e avistou a estação. Lá estava o boné vermelho do agente, o velho sino, a tabuleta com o nome da vila..." (VERISSIMO: 1972, P. 361)

Ao que se percebe, tudo parece significativo, cada objeto citado pelo narrador traz aparentemente em si um significado a ser explorado. Por fim, o momento tem o seguinte desfecho:

"O trem parou, resfolegando como uma besta cansada. Mário precipitou-se para fora do carro, saltou para a plataforma

– E a sua bagagem? – perguntou alguém.

Ele soltou uma risada.

– Não tenho. Só essa flor.

Mostrou a tatuagem. Respirou o ar que cheirava a folhas secas queimadas. Devia ser abril. Desceu apressado a encosta, acenando para os conhecidos. De todos os lados brotavam vozes: "o Mário voltou!" As vozes espraiavam-se pelo vale, subiam os cerros, o eco as repetia longe. 'O Mário voltou...ou...ou...ou...'

Mário sentia no corpo a força dum potro. Não se conteve: rompeu a correr. Bebia o vento como quem bebe água. Avistou longe o vulto da mãe, negro e imóvel diante da casa. Ela o esperava. Nada tinha mudado." (VERISSIMO: 1972, p. 361; 362)

A sensação de liberdade que a perspectiva subjetiva que a literatura oferece em relação ao processo de mudar do plano material para outro desconhecido é evidenciada pela possibilidade de, no campo da imaginação, até mesmo o tempo, implacável na realidade, poder ser parado, pois nada havia mudado. A felicidade se mostra mais acessível.

"Viu a ponte e estacou, temendo que Antônia não o estivesse esperando. Seu coração teve um súbito desfalecimento. Mas não! Lá estava ela parada do outro lado da ponte de pedra, o vento modelava-lhe as formas, soprava-lhe os cabelos, seu corpo dourado resplandecia. Pomona!

Mário abriu os braços e, correndo e sorrindo, cruzou a ponte." (VERISSIMO: 1972, p. 362)

A mesma situação foi descrita pelo narrador de "A ponte", agora sob uma perspectiva mais racional, limitada ao que se passa no ambiente hospitalar, ainda na sala de cirurgia.

"O relógio elétrico na parede da sala de operações marcava nove horas e vinte e cinco minutos. A intervenção estava terminada e agora o cirurgião e o clínico, despidos os aventais e as luvas, conversavam numa sala contínua à de operações.

– Acho que tudo correu perfeitamente bem – disse o primeiro. – Fiz a resseção do tumor e a olho grosso não vi nenhum sinal de metástase. Acho que vamos botar nosso homem outra vez de pé.

Arreganhou mais os lábios e as presas de javali avançaram.

– Merecemos um cafezinho – sorriu Fonseca.

Foi exatamente nesse momento que uma enfermeira entrou intempestiva e, com um tremor de alarma na voz, disse-lhes que o anestesista os chamava com urgência. Os dois médicos precipitaram-se para a sala de operações.

O corpo do paciente estava rígido e imóvel sobre a mesa. Seu rosto havia tomado uma cor violácea.

– Que é que há? – perguntou Silva-Gonzaga

– Não posso compreender...– balbuciou o anestesista.

– Houve parada cardíaca...

O suor escorria-lhe pelas faces e havia uma torva expressão de medo em seus olhos." ."(VERISSIMO: 1972, p. 362; 363)

É importante ressaltar que, por mais que os médicos dominem o conhecimento, certas situações são imprevisíveis e até mesmo inevitáveis. Uma parada cardíaca nesse caso não fora pensada, todavia, os cirurgiões tiveram que enfrentá-la. A situação prossegue:

"O cirurgião aproximou-se da mesa, encostou o ouvido no peito do operado, enquanto o clínico lhe segurava o pulso.

– Não ouço o coração.

– Não sinto o pulso.

Silva-Gonzaga olhou para o colega.

– Não há dúvida – disse.– Ele fez uma parada cardíaca. Vou abrir o tórax...

– Não há outra solução – murmurou Fonseca.

Sem tornar a vestir as luvas ou o avental, pois não havia tempo a perder, o cirurgião apanhou o bisturi e, sem hesitar, fez com ele um corte transversal à altura do mamilo esquerdo de Mário Meira Moura." ."(VERISSIMO: 1972, p. 363)

Apesar de todas as tentativas e de todo o esforço dos profissionais, a vida parece desaparecem inevitavelmente. A morte seria uma conseqüência certa, como se comprova posteriormente.

"Depois, com outro golpe mais fundo, seccionou-lhe os músculos intercostais e pleura e, a seguir, com ambas as mãos, afastou as costelas. Depois meteu a mão esquerda na cavidade, procurou o coração, segurou-o e começou a fazer massagens ritmadas, enquanto o anestesista procurava manter o fluxo de oxigênio através da cânula metida na traquéia do paciente.

Com mãos trêmulas, Fonseca preparava uma injeção de adrenalina numa seringa de agulha longa.

– O coração não reage – disse Silva-Gonzaga, sem cessar a massagem.

Com a mão direita segurou a seringa que o colega lhe entregava, introduziu-a também na cavidade e enfiou a agulha no músculo cardíaco e com o polegar empurrou lentamente o êmbolo.

Consultou com o olhar o anestesista.Este sacudiu negativamente a cabeça. Silva-Gonzaga continuava a massagem cardíaca. A um canto da sala o Dr. Fonseca, lívido, limpava com o lenço o suor que lhe umedecia a testa.

O relógio marcava nove e quarenta e cinco quando Silva-Gonzaga largou o coração do operado.

– É inútil – murmurou.– Está morto."(VERISSIMO: 1972, p. 361; 362)

É importante perceber que todo o procedimento médico é meticulosamente pensado e avaliado com a finalidade de evitar erros, preservando a vida do paciente, conforme o Princípio da Beneficência objetiva. O Princípio da Beneficência é o que estabelece que a conduta médica tem o dever de fazer o bem aos outros, independentemente de tal ação ser desejada ou não. Entenda-se, aqui, "fazer o bem" como sendo o prolongamento da vida. Há um valor moral nessa forma de proceder.  Beneficência é fazer o bem, Benevolência é desejar o bem e Benemerência é merecer o bem. A partir disso, pode-se pensar sobre a motivação que move cada médico. Do livro Olhai os lírios do campo, também de autoria de Erico Veríssimo, podemos extrair uma reflexão sobre o assunto:

"Fora ainda lendo a história dos grandes benfeitores da humanidade que Eugênio decidira estudar medicina. Havia, entretanto, outra razão mais poderosa que essa. Desde menino vivia impressionado com o sofrimento do pai e com a figura do Dr. Seixas, um médico que se sacrificava pelos pobres, que era ele mesmo um pobre, pois aos quarenta e vários anos não tinha automóvel, não possuía um tostão de seu, vivia crivado de dívidas e atormentado por compromissos de dinheiro que vinham dos tempos de estudante. O Dr. Seixas não tinha inventado nenhum soro, nem descoberto qualquer micróbio, mas era à sua maneira um benfeitor da humanidade. Havia uma grande e dramática beleza na sua vida de renúncia. Ficava furioso quando algum dos clientes pobres lhe falava em dinheiro, ficava agressivo quando alguém lhe queria testemunhar gratidão. Eugênio admirava-o. Queria ser médico para seguir os passos do Dr. Seixas e para curar o Pai. Pelo menos assim pensava nos tempos dos preparatórios.

Mas hoje... Agora via o mundo com outros olhos. A função de repórter pusera-o em contato com a verdadeira miséria. A pobreza de sua gente chegava a ser riqueza, comparada com a indigência que ele agora conhecia. Como lhe era difícil aproximar-se daquelas casinholas fétidas, daquela gente repugnante!Olhava de longe, anotava, fazia perguntas apressadas e depois sua fantasia completava a reportagem.Mas quando um médico que se quisesse dedicar aos pobres seria obrigado a botar o dedo naquelas feridas, respirar longamente o ar viciado daquelas casas, sentir na cara o ar pestilencial daquela gente. Eugênio já não via mais beleza na profissão do Dr.Seixas. Além disso, a amizade com Alcibíades lhe abria as portas dum novo mundo. E ele reconhecera nesse mundo o seu clima ideal. A primeira vez que fora à casa do amigo chegara a ficar comovido. Como era bom afundar nas poltronas fofas daquele palacete."(VERISSIMO: 1966, p. 41;42)

De fato, a literatura exerce a capacidade de despertar questionamentos diversos no leitor. A partir do excerto pode-se avaliar a fidelidade pessoal à índole, ao caráter e à vocação que motivaram a escolha profissional, não apenas do médico, mas o pensamento é cabível para todas as áreas de trabalho.

Uma questão também não claramente definível é a do suicídio. Além das salas de cirurgias, o procedimento do profissional da saúde frente ao paciente psiquiátrico suicida é bem definido. Quando um paciente que tentou suicídio entra no consultório, a primeira linha de ação está atrelada ao manejo das complicações médicas decorrentes do ato, tais como cortes, fraturas e intoxicações. No caso de ingestão de medicamentos o nível de consciência é o primeiro aspecto a ser avaliado. A seguir devem-se buscar informações acerca do tipo, quantidade, tempo decorrido e velocidade de consumo da medicação, bem como associações com outras drogas, álcool etc. Caso o paciente esteja em coma um diálogo com acompanhantes ou familiares é de fundamental importância. Recursos para diminuir a absorção devem ser tentados como indução de vômitos ou lavagem gástrica. O uso de substâncias antagonistas, que são substâncias capazes de bloquear ou reverter a ação de outras, pode ser útil. A segunda parte do manejo do paciente suicida é a avaliação do risco de uma nova tentativa. A psicanálise traz a seguinte avaliação do assunto: Frente à tentativa de suicídio, a pessoa encontra-se no terreno da psicopatologia. A palavra patologia deriva do grego pathos, que significa sofrimento, e da qual também se derivam as palavras paixão e passividade. A relação entre estes três sentidos da palavra pathos parece destacar-se na situação de uma tentativa de suicídio que se pretende ilustrar. Ao considerar-se a tentativa de suicídio como um ato decorrente da força traumática que resulta na incapacidade de dar vazão à dor psíquica, destaca-se a dinâmica singular de um ato. Busca-se compreender a relação entre sofrimento, paixão (excesso) e passividade, considerando o tema do trauma e de seus efeitos no psiquismo. A escuta do ato da tentativa de suicídio pode ajudar o paciente a criar e a desenvolver sua potencialidade simbólica. Daí, o que é descarregado no ato de tentar acabar com a própria vida tem íntima relação com um excesso de vivências dolorosas às quais não foi possível dar uma atribuição de sentido ou obter uma captura no mundo representacional do indivíduo. O que torna todo o conhecimento a esse respeito demasiadamente complexo é o fato de, na realidade, o limite entre o que é ser normal e o que é ser louco ser muito obscuro. Assim sendo, a literatura se coloca mais uma vez como objeto de ajuda para a compreensão prática do indivíduo louco, do típico paciente suicida e outros exemplos. Isso é feito através das situações que as narrativas abordam, permitindo aos leitores identificarem certas características de cada personagem.

O suicídio é o tema do conto "O Navio das Sombras", também da autoria de Erico Veríssimo. O excerto a seguir traz uma importante característica dos pacientes potencialmente suicidas, que é a sensação de silêncio, solidão, um vazio que parece habitar a alma dos indivíduos: "O transatlântico vai partir. O transatlântico apita. É um gemido rouco, longo, doloroso, desesperado, irremediável. Debruçado à amurada, Ivo olha o vácuo. Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O vento do grande mar desconhecido varre o barco dos suicidas. E todos eles ali vão em silêncio, enquanto na ponte o fantástico capitão olha com seus olhos vazios a noite insondável." (VERISSIMO: 1972, p. 235)

Apenas no final do conto nos damos conta do que realmente está se passando, do que se tratam as figuras-tipo da narrativa. O que chama atenção quanto ao médico aqui é que ele não tem nome, é chamado sempre como "o doutor", é o estereótipo, aquele sobre o qual se cria a expectativa de cura, de solução. Esse médico é distante, não conversa, apenas "age", realiza um procedimento, até que percebe: "Sinto muito. Já não há mais nada a fazer". (VERISSIMO: 1972, p. 235)

Por fim, é plausível afirmar que as doenças, em especial aquelas que trazem grande probabilidade de morte ao paciente, causam uma mudança na compreensão do indivíduo quanto ao mundo e quanto a si mesmo. Ou seja, o contato com a morte iminente acaba provocando em muitas pessoas um maior grau de consciência quanto à importância do ser. Do conto "A Ponte", percebe-se que a descoberta de um tumor gerou no personagem Mário uma série de reflexões, o que se expressa no excerto:

"E se voltasse ao mundo dos vivos, qual seria seu primeiro movimento? (...) conquistar o filho – essa era a grande meta. Depois iria ao Rincão de Santa Rita, visitaria a sepultura da mãe, reveria os amigos que porventura ainda estivessem vivos.Mandaria construir por sua conta um colégio e um hospital na vila. Daria bolsas de estudos a estudantes (...)" , em outro momento, o protagonista passa ainda a aceitar a possibilidade de haver algo além do mundo material, a espiritualidade aflora de modo discreto: "(...) Já que ia morrer, o melhor era fazer as pazes com o Criador."(VERISSIMO: 1972, p. 353)

O que é interessante e notável é que, realmente, as pessoas parecem se tornar mais sensíveis quando descobrem que estão em estágio de doença terminal. Entretanto, é inegável que, mesmo os que estão em perfeito estado de saúde, tanto físico como mental, também estão sujeitos à imprevisibilidade da morte. Daí, o médico precisa compreender o ser humano como um organismo complexo e composto de fisiologia e emoções. Nesse caso, não basta a tecnicidade do exercício da profissão propriamente dita, nem o uso da química disponível em cada época, mas antes, e sobretudo, a prática empática que aproxima médico-paciente em uma relação de confiança, dependência e, por que não dizer, cumplicidade. Ambos têm um objetivo comum, e é isso que os deve mover.

Conclui-se que a medicina e a literatura compartilham um mesmo campo, ambas trabalham com a condição humana e, por conseguinte, a morte. Dessa forma, é importante destacar a necessidade de que se desenvolvam mais as humanidades médicas, a capacidade de os indivíduos mesclarem sua racionalidade com a emoção inata de todos os indivíduos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHAURI, C. Como vai a sua mente? 3ª. Edição. São Paulo: PC, 2001.

MÁRIO R. MONTENEGRO, MARCELO FRANCO. Patologia, processos gerais. 4ª Edição. Atheneu, 2004.

VERISSIMO, Erico. Fantoches e outros contos. 14ª Edição. São Paulo: Globo, 1997.

VERISSIMO, Erico. Olhai os lírios do campo. 71ª Edição. São Paulo: Globo, 1995.


Autor: Gabriela Spacek da Fonseca


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