O Professor



Quis o destino que, ao chegar à rodoviária, ele se dirigisse ao primeiro guichê que viu à sua frente. Pensava em ir para o Sul, mas ali só vendiam passagens para o Nordeste.

- Quanto é uma passagem para Recife?

A passagem custava mais do que o dinheiro que possuía. Enquanto apalpava as duas notas que ainda lhe restavam no bolso, uma cédula de cinqüenta e outra de dez, leu o nome duma cidade intermediária e perguntou:

- E para X quanto é?

Ainda era elevado o valor.

- E para Y?

- Afinal, moço, o senhor não sabe para onde vai?

A irritação do funcionário do guichê transformou-se em surpresa com a resposta dele:

- Sei sim! Me dá uma passagem que custe menos de R$ 50,00.

- O quê?

- Nesta rota com R$ 50,00 eu posso ir até qual cidade?

Após quatorze horas de cansativa viagem ele desembarcou em Montes Claros; a passagem custara R$ 43,00. Num bar, optou por pedir um maço de cigarros e uma cerveja. Cairiam melhor do que um prato feito.

"Quem sabe arranjaria um emprego como garçom ali? Atendiam tão mal!"

Não, garçom não, decidiu. Se não se entregasse ao desespero, com a sua capacidade, conseguiria coisa melhor naquela cidade. Certo que, para um desconhecido passando dos cinqüenta, não seria fácil!

Fugia. Fugira! Mas não escapava do carrasco. Trazia-o dentro dele.

Quis o destino que a sede acabasse logo com a cerveja. Ele resolveu guardar as poucas moedas do troco em vez de aplicá-las em outra garrafa. Não que fosse precavido. É que mais uma ou duas doses não adiantariam nada.

Rodeou o quarteirão e desceu por uma rua bonita, clara e movimentada. Veio-lhe uma nova disposição. Parou debaixo duma árvore e acendeu um cigarro. Sentiu-se feliz por possuir um maço de cigarros. Era, agora, tudo que possuía. Em frente, um sobrado atraiu a sua atenção. Da larga porta escapavam os sons de um ritmado jazz. Aprumou o corpo, ajeitou a roupa e atravessou a rua. Quem o visse, o porte altivo, distinto, quase atrevido, só se observasse atentamente perceberia que o colarinho da camisa estava puído. À porta, reparando o ambiente, os aparelhos de musculação, entendeu que estava numa academia de ginástica. Decidiu entrar, o destino tomaria conta de seus passos.

Uma mulher atraente, madura, o corpo ainda firme, conservado pelos exercícios, voltou-se para ele com a curiosidade desenhada no rosto. Apenas discretas rugas sob os olhos e no pescoço, eram leves indícios, para um experiente conhecedor, de que já havia passado dos quarenta.

- Pois não? O que o senhor deseja?

A voz da mulher era quente e sedutora como o miado duma garota de vinte anos! Ele não era de perder a pose e o controle e agiu como se fosse um veterano inspecionando o trabalho duma caloura:

- Vocês só tocam este tipo de música por aqui? - perguntou.

- Não! Temos vários ritmos! Quer ouvir?- retrucou a mulher, desconcertada com tal pergunta.

- Quero.

Ela foi até o aparelho e trocou o DVD. Mas, o homem viu um que lhe agradou e disse:

- Este!

Sem pestanejar, ante tão insólito procedimento, a mulher obedeceu. Quando as primeiras notas de Danúbio Azul ecoaram, ela se voltou, num repente ele a tomou nos braços. Abobalhada, não reagiu e submeteu-se ao comando imperioso e sedutor do desconhecido. Valsaram e, ela relembrou, quem sabe, aquela valsa dos quinze anos nos braços do pai, que já partira havia tanto tempo... Dominada, se deixou levar, nem procurando escapar da magia. Depois de uns minutos de dança conseguiu coragem e o olhou nos olhos. O que viu lá dentro, por certo, não esclareceu nada. Mas, no sombrio mistério daqueles irônicos olhos azuis, percebeu que existiam vivências que ela gostaria de compartilhar. Ele disse, com voz grave e rouca, que a fez arrepiar:

- Esta academia está precisando de um professor de danças.

Ele fizera uma afirmação, não uma pergunta.

Foi contratado.

A cidade era pequena, as notícias circulavam rápido, a freguesia aumentou. Em uma semana a academia viu afluir número cada vez maior de mulheres, encantadas com o estranho. As mais jovens se entregavam, com embaraçada volúpia, aos braços do sedutor desconhecido. As mais maduras, num sentimento novo de usufruir o proibido, viam renascer antigos sonhos que haviam empurrado para as sombras.

- Onde descobriu este raro espécime? – indagou uma cliente mais atrevida.

Ela nunca saciava a curiosidade das clientes. Nem contava que também nada sabia dele. Nunca ousou perguntar de onde viera. Aliás, ousou sim, no segundo dia:

-Quem é você?

- Sou um homem que foge... e que não esquece...

Nada mais disse, nem lhe foi perguntado.

Três semanas correram. A divulgação da presença do misterioso professor de dança atraíra novas clientes. Ela via-o, infatigável, horas e horas, elegante, viril e competente, levando as alunas a rápidos progressos. Irritava-a, particularmente, uma aluna, esposa dum rico empresário, mulher de 30 anos, bela e igualmente sedutora, que antes nunca aparecera na academia, e agora, freqüentava com assiduidade as aulas de tango. Pela harmonia que o par mostrava ela percebeu que a outra nunca precisaria de aulas de danças. Muito menos daquela dança tão sensual como o tango. Certamente, ele também sabia disto. No entanto, mais a exasperava a dedicação dele com a despudorada.

O marido dela espantou-se com o aumento da clientela na academia. Curioso, foi conhecer aquele, cuja fama, discretamente, a mulherada espalhava e chegava aos ouvidos distraídos (e mais tarde ciumentos) dos homens. Não gostou do misterioso professor de dança. Foi imediata, mas não gratuita, a antipatia que despertaram um no outro.

Atencioso, mas reservado, o professor nunca mais a tocou. Rareavam as oportunidades para ficar a sós com ele. Ela se admirava ao vê-lo, horas e horas, varando o dia, até à noite, incansável, a trabalhar. "Se é que aquilo era trabalho!", ela recriminava, pois as aulas de dança mais se assemelhavam ao prelúdio para algumas horas de amor. Tantas alunas entusiasmadas se entregavam, com deleite, aos braços dele. Tentou que ele reduzisse a carga de trabalho, não foi ouvida. Chegou a insinuar a algumas alunas que perdiam tempo aprendendo danças tão antigas. Elas não a ouviam. Ao final de um mês, ele disse:

- Vou partir.

Tão calmo e decidido. Não pareceu perceber que ela baqueou. Pálida, as mãos frias, ia pedir: "Não parta!" Perguntou apenas:

- Por quê?

- Porque te amo! – respondeu. E foi embora.

ocp ( 30/8/98)


Autor: Onivaldo Paiva


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