Debret e Rugendas: Continuidade e Ruptura na Política Ibero-Americana



Gracinda Vieira Barros*

Introdução:

As obras dos "artistas viajantes" podem dizer muito a respeito da nossa própria identidade como nação. Se soubermos avaliar a singularidade de cada artista, sua iconografia pode ser considerada um verdadeiro documento histórico, esclarecendo importantes momentos de nossa vida cotidiana colonial e os momentos de efervescência política que nos conduziram a Estados independentes.

Arte nas Colônias

A evangelização dos povos pagãos foi a principal justificativa para a conquista e a dominação Ibérica (principalmente Espanhola) na América. Nos anos imediatos após a conquista, a arte nas colônias servia a Igreja na cristianização dos povos indígenas.

Como centro da vida colonial, o Catolicismo e suas instituições, organizavam e hierarquizavam os novos territórios. Assim, qualquer que fosse a forma artística, a sua função era ser devocional.

Na Europa, o Renascimento e o método científico, foram aos poucos sendo aceitos pelas autoridades (inclusive eclesiásticas) devido a necessidade de conhecer esses novos territórios para melhor administrá-los segundo os interesses políticos e comerciais das metrópoles. Assim, as nações européias passam a enviar expedições marítimas compostas por "artistas viajantes", geógrafos e botânicos que estudam e retratam o Novo Mundo.

Somente a partir do desenvolvimento social, aumento populacional de europeus e crioulos e principalmente do estabelecimento de uma elite colonial na Ibero – América, a arte na América assume novas faces e funções, servindo a Igreja, a Metrópole e a uma nascente elite local.

O artista Viajante

Desde o séc.XVI as viagens fazem parte da formação cultural dos artistas europeus. Visitando as muitas cortes Européias, nobres e artistas buscavam o conhecimento e aperfeiçoamento de técnicas, e entravam em contato com as muitas correntes artísticas e filosóficas surgidas a partir do Renascimento.

No entanto, o conceito de "artista viajante" não se aplica aos artistas que circulavam pelas cortes européias. Ao contrário, o artista viajante é aquele que deixa a Europa em busca das paisagens e dos povos exóticos do Novo Mundo, ou seja a busca pelo pitoresco.

Um dos maiores problemas dessa conceituação do artista viajante, é o fato desses artistas serem encarados como um conjunto homogêneo de artistas que retratam o olhar do estrangeiro sobre a América. A partir disso, não levamos em conta quem é o estrangeiro e qual é a sua formação. Quando aceitamos passivamente o conceito do artista viajante, não questionamos a trajetória e a singularidade de cada artista, o que limita a nossa compreensão do conjunto de obras produzidas por esses artistas nas muitas "Américas" percorridas por eles.

Debret e Rugendas: trajetórias e pincéis

Buscando estabelecer um paralelo entre as obras de Debret e Rugendas, é fundamental, como dito anteriormente, conhecer a trajetória e a formação desses artistas para uma compreensão mais holística de suas produções.

Jean Baptiste Debret ingressou na Academia Real de Pintura e Escultura da França em1785, dedicando-se depois ao ensino de desenho, trabalhos decorativos em edifícios públicos, e pintura histórica neoclássica. Entre 1806 a 1814, atendeu a várias encomendas de Vivant-Denon, diretor dos Museus durante o Império Napoleônico, pintando temas relativos a vitórias militares e glórias bonapartistas.

Com a queda de Napoleão, a carreira de Debret fica instável, além disso, no âmbito pessoal, Debret perde seu único filho e se separa da esposa.

No Brasil, a chegada e permanência da Família Real Portuguesa, exigem novos padrões artísticos, e culmina com a Missão Artística Francesa, na qual Debret, após o arrasamento de sua vida pessoal, se integra.

Debret irá acompanhar e documentar a vida da corte portuguesa no Brasil em seus desenhos, óleos e aquarelas, sempre enriquecendo a imagem pública da corte.Em fevereiro de 1808, D. João foi aclamado Rei. Debret desenha nessa ocasião, o povo saudando o monarca, além de produzir o pano de boca comparando os personagens portugueses aos deuses da mitologia grega.

Outros momentos importantes para a história do Brasil, foram a aceitação provisória da constituição de Lisboa, e a partida da Rainha Carlota Joaquina, com a família Real, de volta a Portugal. Ambos os momentos retratados por Debret.

Com a Independência, Debret se dedica à confecção de símbolos nacionais e às festividades de coroação de D. Pedro I, sempre com a preocupação de diferenciá-lo simbolicamente do pai e vinculando o novo país a civilização Européia.

Debret representa também a aclamação de D. Pedro de Alcântara, com cinco anos, após a abdicação de D. Pedro I. No desenho, Debret revela a tensão política do país, nesse cenário, o artista deixa o Brasil.

A produção de Debret no Brasil destaca-se por se opor à idéia de um Brasil selvagem e exótico, sempre enfatizando o espaço urbano e inserindo-o num contexto Europeu. Além disso, em sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, no terceiro volume, Debret revela seu otimismo em relação à colonização portuguesa no processo civilizatório brasileiro e no futuro da continuidade da Casa de Bragança no Brasil.

Outro artista que assim como Debret tem grande parte de sua obra caracterizada como pintura histórica é Johann Moritz Rugendas.

Rugendas desdecriança, exercita o desenho e a gravura com o pai Johann Lorenz Rugendas. Entre 1815 e 1817 freqüenta o ateliê de Albrecht Adam, ingressando depois na Academia de Belas Artes de Munique.

Incentivado pelos relatos de viagem dos naturalistas vem para o Brasil em 1821, como desenhista documentarista da Expedição Langsdorff , registrando a vida colonial, paisagens e o sistema escravista, ressaltando a capacidade do negro em se misturar na sociedade brasileira.

Após deixar a expedição, Rugendas vai para a Itália (em 1828), onde publica Viagem Pitoresca, reunindo desenhos da vida observa novas técnicas como uso de cores e o esboço a óleo. Um aspecto importante dessa obra é a escolha de inserir nela o desenho da Junta de Pernambuco[1], ao invés de incluir na obra o desenho da coroação de D. Pedro I como Imperador do Brasil. Ao fazer essa opção, Rugendas demonstra simpatia pelos movimentos liberais de independência.

Em 1831, motivado pelo naturalista Alexander Humboldt Rugendas volta a América, viajandopara o México com um projeto de viagem por todo o Novo Mundo. No entanto, Rugendas se afasta da orientação de Humboldt de sair em busca do "monumental" (referente a natureza) e se aproxima das relações humanas nas colônias e retomando a temáticaliberal.

Durante sua permanência no Chile, Rugendas pintou a Batalha de Maipú[2] ressaltando a vitória do exército libertador. Aproximadamente uma década depois, se ocupa com outra obra de teor similar, ainda mais radical dentre os processos de independência: O Desembarque de Francisco Miranda em La Guairá[3], quadro que mostra Miranda sendo carregado pelo povo num momento de vitória liberal.

O mais significativo exemplo de obras dedicadas a independência das colônias é O Regresso de Garibaldi depois da Batalha de Santo Antônio, que retrata um momento de luta no Uruguai em defesa da liberdade frente à ditadura de Juan Manoel de Rosas. Essa obra, assim como o desembarque de Miranda, presta tributo não só aos seus personagens, mas a um ideário de liberdade.

O Brasil e a América Espanhola

Ao analisarmos as obras de Debret e Rugendas, temos um panorama não só do cotidiano da sociedade colonial, mas também dos conflitos políticos vivenciados por essa sociedade. A partir das obras mencionadas é possível estabelecer um paralelo de comparação entre os processos de independência na América Portuguesa e na Hispano-américa.

No Brasil, a independência vem como um processo de continuidade da política portuguesa. D.João VI retorna a Portugal, mas deixa D. Pedro I no poder, na intenção de manter o domínio da Casa de Bragança nas terras americanas que brotavam revoluções pela independência. Além, disso, os políticos liberais brasileiros, também enxergaram em D. Pedro, um caminho mais fácil para a independência.

Na maior parte das colônias Espanholas, a independência só foi possível através de insurreições armadas, e significaram a ruptura e a negação do período colonial.

Ao passo que Debret opta pela organização e documentação da aclamação de D. Pedro I., a revolta representada por Rugendas no Brasil, a Junta de Pernambuco, que representava um ideário liberal mais radical, foi violentamente reprimida pelo Imperador.

Levando em consideração o conjunto de obras de ambos os artistas, observamos que a produção de Debret não apenas narra a continuidade da política portuguesa no Brasil, como contribui para que os personagens portugueses constituíssem símbolos nacionais. Enquanto Rugendas, na sua simpatia pelos ideários liberais, retrata uma América revolucionária, pintando os momentos cruciais dos processos de independência da América Espanhola e seus heróis libertadores.

Debret é o artista da continuidade. Rugendas é o artista da ruptura.

Bibliografia

CASTRO, Maraliz de C. V. A pintura de história no Brasil no século XIX: panorama introdutório. In: Dossiê "Los relatos icônocos de la nación", revista Arbor do Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, da Espanha, 2007 (no prelo).

DIENER, Pablo e COSTA, Maria de F. A América de Rugendas: Obras e documentos. São Paulo: Kosmos, 1999.

SLENES, Robert W. As Provações de um Abraão Africano: A nascente nação brasileira na Viagem alegórica de Jhann Moritz Rugendas. In: Revista de História da Arte e Arqueologia nº3, Universidade Federal de Campinas, 1997.

MATTOS, Cláudia Valladão de. Viajantes nas fronteiras da História da Arte. Comunicação apresentada no III Encontro de História da Arte promovido pelo IFCH-UNICAMP em maio de 2007.

CATLIN, Stanton L. O Artista Cronista Viajante e a tradição Empírica na América Latina Pós Independência. In: ADES, Dawn. Arte na América latina - A Era Moderna, 1820-1980. São Paulo: Cosac e Naify Edições,
1997.

MORSE, Richard M. O Espelho do Próspero: Cultura e Idéias nas Américas.São Paulo: Schwartz ltda, 1995.




Autor: Gracinda Barros


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