A Inconstitucionalidade do Regime de Separação Obrigatória de Bens Para os Maiores de Sessenta Anos Como Ofensa ao Princípio da Isonomia



Juliana Smarandescu

A Constituição da República de 1988 consagra o referido princípio, expressamente, no caput do artigo 5º, estipulando que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".

Ademais, a Carta Magna trata desigualmente os desiguais com o fito de torná-los iguais de fato. O objetivo é sempre se chegar à igualdade.

No que tange ao regime de separação obrigatória para os maiores de sessenta anos de idade, é clara e evidente a ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que o idoso é uma pessoa como qualquer outra, um sujeito de direitos e de deveres, como qualquer cidadão normal. Sua simples condição de atingir um determinado limite de idade não é motivo suficiente para que determinados direitos lhes sejam podados, como a privação da escolha do regime de bens.

A isonomia prevista pela Carta Magna estende-se a todos os brasileiros, protegendo-os de discriminações de sexo, idade, cor, raça, religião, dentre muitas outras.

Direcionando-se para a Lei mais específica, disciplina o Estatuto do Idoso, em seu art. 2º, que "o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes a pessoa humana (...)"; e reza o art. 4º que "nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação (...)".

Outrossim, há referência ao princípio da isonomia, no art. 5º, XLI, da Constituição Federal, segundo o qual "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais".

Entretanto, muitas são as situações, na vida em sociedade, impregnadas de preconceitos e tratamentos diferenciados. O preconceito surge por diversas razões. Seja para atender interesses particulares e privilegiados de alguns, ou, simplesmente, pela criação que o indivíduo recebe no seio de sua família. Não existe uma única nascente desse mal que, desde sempre acompanha a conduta dos seres humanos.

No caso in concreto, tratado pelo presente trabalho científico, a discriminação da qual nos referimos, é a discriminação por idade.

O idoso é alvo de um tratamento jurídico flagrantemente discriminatório que é a imposição pelo código civil do regime de separação obrigatória para os maiores de 60 anos de idade. Tal discriminação é encontrada no art. 1.641, inciso II, do CC, conforme dispõe:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens do casamento:

I – Das pessoas que o contraírem com a inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de sessenta anos;

III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Importante ressaltar que esse tipo de tratamento aos idosos ofende três princípios constitucionais basilares, como demonstrado acima.

Os fundamentos de sustentação do referido regime direcionam-se na argumentação de que é necessária uma proteção ao patrimônio dos maiores de sessenta anos, com relação a celebração de possíveis"casamentos por interesse" . Ou seja, normalmente uma pessoa que se encontra na faixa dos sessenta anos, já possui, em regra, uma vida estabilizada. Situação esta, que muitas pessoas, ditas oportunistas, se aproveitam para tirar proveito e usufruir de uma vida mais estável economicamente. O simples fato de uma possível estabilidade financeira do idoso, não deveria ser determinante, nem servir de base para tal discriminação. Na verdade, acaba sendo um desestímulo para o idoso, ao passo que, tudo aquilo que lutou para ter a vida toda, não vai poder dispor da forma que bem lhe convir, apenas por que ultrapassou um certo limite de idade. Essa idéia é plenamente arbitrária e cerceia os direitos do homem ou mulher idosa em sua liberdade de dispor do que é somente seu, conquistado por mérito próprio.[1]

Uma boa parte da doutrina defende a inconstitucionalidade da imposição do regime de separação obrigatória aos idosos, tendo como base a violação de princípios como da isonomia, da liberdade e da dignidade humana.

Existem posicionamentos na jurisprudência brasileira nesse mesmo sentido, conforme os julgados a seguir:

CASAMENTO – Regime de separação de bens imposto pelo art. 258, par. ún., II, do CC – Norma incompatível com os arts. 1º, III, e 5º, I, X e LIV, da CF – Inadmissibilidade de se conferir à cônjuge sobrevivente direito em menor extensão que o previsto pela a convivente – Aplicação analogia legis do art. 226, § 3º, da CF e do art. 7º, par. ún., da Lei 9.278/96. A norma estampada no art. 258, par. ún., II, do CC, não foi recepcionada pela ordem jurídica atual por ser incompatível com os arts. 1º, III, e 5º, I, X e LIV, da CF. Afastado, portanto, o regime obrigatório de separação de bens, não se justifica a aplicação do disposto no art. §1º do art. 1.611 do CC. Aplicando-se a analogia legis, não se pode conferir a cônjuge sobrevivente direito em menor extensão que o previsto em lei para a simples convivente, consoante art. 226, §3º, da Constituição da República e o que dispõe o art. 7º, par. ún., da Lei 9.278/96, que, com base na regra constitucional, confere ao convivente sobrevivo o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência familiar." (AC nº 74.788-4/6 – 10ª CCTJSP – rel. Des. Paulo Menezes – j. em 13.04.1999 – in RT 767/224). No mesmo sentido acórdão objeto da nota nº 30 a seguir: AC nº 007.512-4/2 – 2ª CCTJSP – rel. Des. Cezar Peluzo – j. em 18.08.1998 – in RT 758/106-7. (exemplos: TJSP, Ap. Cível 74.788-4/6, 10ª Câm. de Direito Privado, Rel. Des. Paulo Menezes, julgada em 13 de abril de 1999, in Revista dos Tribunais, ano 88, vol. 767, setembro 1999, pp. 223/226 e e ainda que o Projeto de Lei acima mencionado seja ao final aprovado e sancionado, por manter a mesma lógica do regime atual, será alvo das mesmas críticas.

Nesse diapasão, é o julgado da Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, in literis:

EMENTA: SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. CULPA. Já se encontra sedimentado nesta Câmara o entendimento de que a caracterização da culpa na separação mostra-se descabida, porquanto o seu reconhecimento não implica em nenhuma seqüela de ordem prática. PARTILHA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. SÚMULA 377 DO STF. A partilha igualitária dos bens adquiridos na constância do casamento celebrado pelo regime da separação obrigatória de bens se impõe, a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro. Busca-se, outrossim, a justa e eqüânime partilha do patrimônio adquirido mediante o esforço comum, e que muitas vezes são registrados apenas no nome de um dos cônjuges. Aplicação da Súmula 377 do STF. Afastada a preliminar do recorrido, apelo provido em parte. (Apelação Cível Nº 70007503766, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 17/12/2003)

Já há, inclusive, manifestação jurisprudencial, no sentido de reconhecer a possibilidade de escolha do regime de bens para os maiores de sessenta anos, conforme texto a seguir:

CASAMENTO – Regime de Bens – Separação legal Obrigatória – Nubente Sexagenário – Doação à consorte – Validez – Inaplicabilidade do art. 258, parágrafo único (atual art. 1641, CC), que não foi recepcionado pela ordem jurídica atual – Norma jurídica incompatível com os arts. 1º, III, e 5º, I, X e LIV, da CF em vigor – Improcedência da Ação Anulatória – Improvimento dos recursos. É válida toda doação feita ao outro cônjuge que se casou sexagenário, porque, sendo incompatível com as cláusulas constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, bem como com a garantia do justo processo da lei, tomado na acepção substantiva ('substantive due processo f law'), já não vige a restrição constante do art. 258, par. Único, II, do CC (atual art. 1641, CC). (TJ/SP, Ac. 2º Câm. De Direito Privado, Ap. Cív. 007.512-4/2-00 – comarca de São José do Rio Preto, rel. Des. Cezar Peluso, j. 18.8.98, in RBDFam 1:98).

Na tentativa de atenuar essa discriminação evidente, a deputada Solange Amaral (PFL-RJ), elaborou o projeto de Lei 108/2007, que pretende aumentar de 60 para 70 anos a idade em que passa a ser obrigatório o regime de casamento com separação total de bens para os brasileiros.

Assevera Maria Berenice Dias, no sentido da inconstitucionalidade da obrigatoriedade de tal regime, que "com relação aos idosos, há uma presunção absoluta de senilidade". Afirma ainda que, "de forma aleatória e sem buscar sequer algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: afastar a liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento."[2]

Importante salientar que, em qualquer das outras situações em se determina obrigatoriedade do regime de separação de bens, o juiz poderá excluir dita apenação, exceto, no caso dos idosos. Segundo o parágrafo único do art. 1523 do Código Civil, o juiz poderá liberar, a pedido, a imposição da causa suspensiva, quando inexistir prejuízo para o interessado.

Afinal que tipo de fundamentação teria o legislador para não dar o mesmo direito, as mesmas condições para os idosos, como nos outros casos? Situação um tanto intrigante!

Outra observação importante, é o fato de que tal restrição, como afirma Maria Berenice, não existe na união estável, o que lesiona o princípio da isonomia, no que se refere ao tratamento desigual entre casamento e união estável. Para ela, "se o objetivo é proteger, a alternativa que não viola os princípios da igualdade e da liberdade é determinar que os nubentes, no procedimento de habilitação para o casamento, procedam uma declaração de patrimônio. Tão-só.[3]

A flagrante restrição à autonomia da vontade, fez com que o Supremo Tribunal Federal editasse a Súmula 377, tentando amenizar os desastrosos com a imposição do regime de separação obrigatória., conforme dispõe:

Súmula 377, STF: No Regime de separação de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

A referida emenda tem seu fundamento residido na alegação de que a convivência leva à presunção do esforço comum na aquisição de bens. Dessa forma, sobre o patrimônio construído ao longo da sociedade conjugal, estaria assegurado o direito à meação, impossibilitando, desta forma, a existência de um enriquecimento injustificado.

Entretanto, o Código atual parece ter ignorado os preceitos da súmula 377, posto que não admite essa presunção de esforço comumdurante o vínculo matrimonial.

Trata-se de mais uma situação de afronta aos preceitos constitucionais e de desprezo às orientações de justiça!

De acordo com a pesquisa Tábua da Vida de 2005, do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a expectativa de vida do brasileiro passou de 71,7 anos, em 2004, para 71,9 anos, se aproximando de 72 anos, em 2005.[4]

São dados estatísticos que nos mostram que o brasileiro está vivendo mais. Não é aceitável que essa mudança positiva não seja acompanhada pelo direito, no sentido de proporcionar ao idoso uma melhor condição de vida, e isso inclui o seu direito, a sua liberdade de escolha, o seu poder de interferir tanto na sociedade, como em sua própria vida, de forma ampla.

Além da solução prevista pela deputada Solange Amaral, o que na verdade, em opinião bem particular, é mais um "paleativo", pois mais cedo ou mais tarde, essa restrição irá acontecer, alguns entendem que, em se tratando de regime de bens no casamento envolvendo idosos, o regime de separação obrigatória deveria ser supletivo, mas não obrigatório, podendo, através de pacto antenupcial, a eleição de regime diverso. Assim, preservar-se-ia a liberdade e dignidade do maior de sessenta anos.

Érica Verícia entende como solução mais viável se partir da premissa de que "o caminho mais adequado, para harmonizar, com respeito ao Texto Constitucional, os diferentes interesses albergados, será, sem dúvida, determinar aos nubentes uma declaração de titularidades patrimoniais quando da habilitação para o casamento, de modo a precaver, reciprocamente, os direitos."[5]

Os professores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, entendem que a única solução, de forma que respeite os valores constitucionais, "é desatrelar a idade das limitações impostas à escolha do regime de bens" e, enfatizam que "um homem com sessenta ou setenta anos pode (e isso acontece com freqüência) chefiar o poder executivo e escolher os destinos econômicos de toda a nação, malgrado não possa, estranhamente, escolher seu próprio regime de bens." [6]

Essa última solução é a que considero viável, pois a isonomia estaria resguardada, assim como o direito de escolha e a tão alegada proteção que o Estado tanto insiste em oferecer, permaneceria, mas de forma a não invadir por completo, a liberdade do idoso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALDUINO, Eduardo. Casamento com separação obrigatória de bens só a partir de 70 anos. Disponível em: < http://deputados.democratas.org.br/noticias/?nid=790>. Acesso em: 28 de agosto de 2008.

CANUTO, Érica Verícia de Oliveira. "A contradição no regime de separação absoluta de bens". In Revista Brasileira de Direito de Família – RBDFam, Porto Alegre: Síntese/ IBDFAM, n.26/nov. de 2004.

DIAS,Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3° edição, 2006,p.215 E 216.

FARIAS, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 219.

NEVARES, Ana Luiza Maria, Liberdade de escolha - Impor ao idoso regime de bens é inconstitucional. Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2008. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/static/text/62922,1 >. Acesso em: 13 de setembro de 2008.




Autor: Juliana Oliva


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