A Música e o Aprendizado Coletivo: O Princípio da Arte Com Ação Efetiva



PERCEPÇÃO SONORA


O mundo está repleto de sons e o silêncio absoluto talvez não exista. Ainda no ventre materno temos os primeiros contatos com o universo sonoro. O pulsar do coração e o mergulho no líquido amniótico que nos envolve formam nossa primeira paisagem sonora. Depois, as vozes materna e paterna e os sons do mundo à nossa volta, logo se somam a esta paisagem que começa a ser colorida. Podemos também, enquanto nos concentramos neste pensamento, descrever os sons que ouvimos à nossa volta. Acerca disso, Rosa Fucks, em seu livro O Discurso do Silêncio, cita John Cage: "Nenhum som teme o silêncio que o extingue, e nenhum silêncio existe que não esteja grávido de sons" ( FUCKS. 1991, p.16).

Quando pensamos em educação musical, precisamos estar atentos ao universo sonoro ambiental e assim percebemos que o mundo a nossa volta é sonoro; os sons estão em toda parte e o sentido da audição, principal forma de percepção sonora, não possui, de forma literal, um botão de ligar ou desligar. Schafer destaca: "O sentido da audição não pode ser desligado à vontade. Não existem pálpebras auditivas. Quando dormimos, nossa percepção sonora é a última porta a se fechar, e é também a primeira a se abrir quando acordamos" (SCHAFER. 2001, p.29). Veremos um pouco mais adiante, que Villa-Lobos se preocupava, já na década de 1930, com a necessidade de se formar público capaz de apreciar, através de uma audição mais seleta, a arte dos artistas das gerações que estavam por vir, ou seja, com a formação de um ouvinte inteligente capaz de ouvir e selecionar o que é significativo ou não para si, para a sociedade e para seu ambiente. Schafer cita Wagner, que define a importância da audição inteligente da seguinte forma: "O homem voltado para o exterior apela para o olho; o homem interiorizado, para o ouvido"(Idem). Poderíamos completar dizendo: O ser humano pouco atento aos sons que houve é como alguém que enxerga, mas não vê.

Parafraseando Aaron Copland, que divide de maneira hipotética a audição musical em três planos – o plano sensível, o plano expressivo e o plano puramente musical -, dividiremos também a percepção sonora, de uma maneira geral, em três planos: o plano geral, plano significativo e plano consciente.

O plano geral seria aquele onde não nos damos conta do que ouvimos, quanto ou de que forma. Estamos o tempo todo envoltos numa odisséia sonora e mesmo assim não nos damos conta disto, não nos preocupamos em selecionar nenhum som específico, seja ele bom ou ruim, bonito ou feio, agradável ou não. Estamos sendo neste momento específico, afogados num mar de sons e poderíamos também chamar este plano de plano da banalização sonora. No plano significativo nos tornamos um pouco mais atentos, buscamos um sentido, um significado para os sons que ouvimos e/ou produzimos e mesmo ainda não tão preocupados com seus efeitos ou conceitos estéticos, estamos mais atentos. Por fim, temos o plano que mais nos interessa, o plano consciente, onde nos tornamos ouvintes muito mais atentos, preocupados com os sons nocivos ao ambiente, com os sons em extinção, com o nível de decibéis que podemos suportar com segurança, enfim, nos tornamos ouvintes inteligentes, capazes de selecionar com consciência os sons que queremos ouvir ou produzir, os sons que queremos preservar ou extinguir. Como fez Copland, ao dividir o plano de audição musical, nós também o fizemos apenas para melhor compreendê-los e é importante ressaltar que poderão surgir outras terminologias ou formas de entendimento.

A percepção do universo sonoro de forma inteligente perpassa, de maneira interdisciplinar, pela educação musical, pois música, educação e ambiente formam uma tríade - em música, acorde de três sons - em constante tangência. Quem poderia melhor trabalhar a percepção sonora que os professores de educação musical? Para isto, primeiramente, nós, educadores musicais, precisamos estar abertos a aprender mais do que ensinar, pois o universo sonoro está em constante mutação, o que nos obriga a uma reciclagem cotidianamente atenta. Como sons e mais sons são acrescidos dia-a-dia, formando uma macro-composição, podemos encarar os sons ambientais como uma peça musical em dimensões universais. Assim, em nossa função de mediadores, precisamos romper com modelos e paradigmas pouco flexíveis.

Vejamos como Schafer destaca o que consideramos o objetivo principal de nossa pesquisa:

Apresentar aos alunos de todas as idades os sons do ambiente; tratar a paisagem sonora do mundo com uma composição musical, da qual o homem é o principal compositor; e fazer julgamentos críticos que levem à melhoria de sua qualidade.( SCHAFER.1991, p.284).

REFLEXÕES SOBRE O LUGAR CONSTITUÍDO PELO EDUCADOR MUSICAL

A educação musical não deve ser pensada de forma desarticulada do ambiente social. O pensar contextualizado e significativo deve estar presente também na vida dos educadores músicos, construindo assim saberes de uma arte que se dá no tempo e não nos permite negligenciar o ambiente sônico ao seu redor.

A música do passado - por música do passado entende-se toda e qualquer produção musical anterior à música do nosso tempo, tanto cultural quanto esteticamente - teve seu lugar num tempo social que lhe permitiu existir da maneira e forma que é, ao passo que a música do presente existe no tempo que hoje lhe oportuniza e não no tempo do passado. Sendo assim, buscar compreender o nosso universo sonoro deve ser o primeiro passo a ser dado. A paisagem sonora do século XVII é muito diferente da de hoje e podemos, através da história e da música, imaginar como ela era, sem conseguir, contudo, influir no que já foi. Hoje somos os atores principais de nossa história sonora e entendê-la pode influir de maneira positiva no que ela será amanhã, despertando nos alunos o prazer da descoberta e não somente a falsa certeza da constatação.

A questão da poluição sonora se relaciona à falta de cuidado e atenção à percepção sonora. Neste sentido, o educador musical se torna uma peça chave na construção de uma audição cuidadosa e atenta, voltada para a qualidade dos sons e preocupada com o ambiente sonoro atual e futuro, pois através da música, a educação pode despertar uma consciência responsável acerca do ambiente sônico. Se quisermos ouvir sons de pássaros, teremos que diminuir os sons das máquinas dos centros urbanos e a música pode nos dar a sensibilidade necessária para esta audição mais atenta. Enquanto objeto de estudo, ela deve ser articulada de forma transversal com outras manifestações do espírito e a vida em geral.

Schafer acredita que o ensino de música deve ser construído em conjunto com as outras formas artísticas, artes plásticas, cênicas e dança. Para ele, devemos buscar uma forma de arte múltipla para que o todo faça sentido e se torne significativo. Como perceber, reproduzir ou simplesmente imaginar o som de um pássaro sem vislumbrar o "balé" de seu vôo, o colorido de suas plumas ou o ambiente onde este vôo se dá? Como imaginarmos o ensino de música fora do contexto das outras artes e ainda, fora do contexto sócio-ambiental? O sentido pictórico e imitativo está presente na música, seja nas civilizações onde a arte tem o caráter de espetáculo ou mesmo naquelas onde se conserva o estado primitivo de contato com a natureza. Assim, um som nos leva a uma imagem e esta nos remete aos movimentos e às cores com ela relacionados. Um som não está só e mesmo o silêncio que talvez na sua forma mais pura não exista totalmente, nos remete a imagens pictóricas que podem ser descobertas de maneira interdisciplinar, transformando o processo cognitivo em algo mais interessante.

Schafer tece uma crítica acerca disto:

Para a criança de cinco anos, arte é vida e vida é arte. A experiência, para ela, é um fluido caleidoscópio e sinestésico. Observem crianças brincando e tentem delimitar suas atividades pelas categorias de formas de arte conhecidas. Impossível. Porém, assim que essas crianças entram na escola, arte torna-se arte e vida torna-se vida. Aí elas vão descobrir que "música" é algo que acontece numa pequena porção de tempo às quintas-feiras pela manhã enquanto às sextas-feiras à tarde há outra pequena porção chamada "pintura". Considero que essa fragmentação do sensorium total seja a mais traumática experiência na vida da criança pequena. ( SCHAFER.1991, p.290).

ENSINO DE MÚSICA

O aprendizado musical de forma isolada deixa uma enorme lacuna no processo de formação do aluno. Se tiver estímulo e força de vontade para romper as barreiras que o ensino musical primário feito de maneira descontextualizada gera e alcançar um nível de aprendizado um pouco mais avançado, adquirindo técnica e aprendendo elementos teóricos e fundamentos interpretativos, ele verá que lhe falta, muitas vezes, vivência de onde e como aplicar os conhecimentos adquiridos ao longo de seu estudo. Sendo assim, a banda de música, o coral, a orquestra, enfim, um grupo orientado lhe serve de laboratório, onde imediatamente poderá aplicar o que está aprendendo. Através deste laboratório, o conteúdo estudado se torna significativo. PAULO FREIRE nos diz: "... ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção"(1996, p.25). Outro elemento relevante é o repertório. Através de um repertório que perpasse por vários períodos históricos, estaremos contribuindo para o acesso direto de nossos alunos a uma cultura, também estética, da arte musical.

Para uma educação musical significativa e contextualizada, o princípio do aprendizado coletivo é fundamental. O contato do aluno com o instrumento e a matéria sonora é o mais importante e se torna o primeiro passo a ser dado. Os alunos experimentam apenas os instrumentos disponíveis, pois é assim que normalmente acontece devido à carência de instrumentos musicais que encontramos em muitos locais de trabalho, situação que sempre devemos estar preparados a enfrentar. Mas isto não chega a ser um obstáculo e muitas vezes é um estímulo e um convite à criatividade, pois alunos e professores têm a oportunidade de criar estruturas instrumentais diferentes, com materiais que normalmente não seriam utilizados como instrumentos musicais como, por exemplo: canos de PVC, mangueiras de fiação elétrica, caixas de papelão, latas de refrigerante etc. Após emitir os primeiros sons, ainda de forma dirigida, começamos a demonstrar ao estudante como a grafia musical se processa, sempre passo-a-passo, pois o mais importante continua sendo o resultado sonoro. Corrigimos embocadura, posicionamento dos dedos, a forma de segurar o arco, a baqueta, etc, e assim vamos dando ao jovem músico suportes técnicos e teóricos sem que ele se dê conta. Logo que o aluno já está emitindo algumas notas com segurança, inserimos no trabalho didático algo que possa ser aplicado em uma música e mesmo antes de dominar plenamente as primeiras técnicas instrumentais, ele já participa do grupo, da banda, da orquestra, o que faz com que se sinta mais motivado e capaz de continuar sua jornada. O repertório é cuidadosamente elaborado de acordo com o crescimento individual e coletivo do grupo a partir de suas especificidades, possibilitando uma uniformidade no desenvolvimento técnico, estético e cultural.

Quando destacamos aqui alguns grupos instrumentais e vocais, tais como a banda de música, o coral, a orquestra, não estamos buscando eleger nenhum tipo de formação como estrutura privilegiada. Achamos que é importante para a cultura geral dos alunos que eles tenham a oportunidade de conhecer estes grupos em suas formações originais, tendo claro que o fundamental é o trabalho de inclusão musical. Se o aluno toca um instrumento que se encaixa a alguma destas formações, ótimo. Se não, um grupo orientado e novo a cada ensaio deve ser formado para que o aluno tenha como exercitar, em laboratório prático, o que tem descoberto e construído em suas aulas. Por exemplo: Se o aluno toca violino e já tem um certo nível de desenvolvimento técnico-instrumental, pode participar de uma pequena orquestra de câmara ou mesmo uma orquestra sinfônica ; se ele toca bombardino, pode participar de uma banda de música . Porém, se ele toca guitarra, harmônica, flauta doce ou caxixi, provavelmente teremos que organizar um outro tipo de grupo que não solicite uma formação pré-determina, ou seja, uma formação que não exclua estes instrumentos.

O princípio de aprendizado coletivo articulado com um pensar que valorize as competências trazidas pelos alunos, para a partir daí construirmos o conhecimento musical planejado, possibilita a formação de grupos inclusivos, ou seja, verdadeiras orquestras laboratório, onde alunos, professores e público têm a oportunidade de experimentar novos caminhos sonoros e pedagógicos.



Marco Aurélio A. da Silva, é Instrumentista, compositor, pesquisador, professor universitário, arranjador e produtor musical. Bacharel em Música, Especialista em Docência do Ensino Superior e Mestre em Ensino de Ciências do Ambiente.

Este artigo foi extraído da Dissertação de Mestrado de Marco Aurélio A. da Silva

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Autor: Marco Aurélio A. da Silva


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