A Busca da Cidadania Por Meio da Desobediência Civil Nos Atos Praticados Pelo MST



A BUSCA DA CIDADANIA POR MEIO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL NOS ATOS PRATICADOS PELO MST

O presente artigo discute a relação entre a desobediência civil e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A partir da análise dos elementos constitucionais, tenta-se demonstrar como os atos de desobediência civil praticados pelo MST contribuem para o aprimoramento dos sistemas democráticos em sociedades avançadas. Através da “ilegalidade”, da publicidade e da não-violência, caracterizadores de atos de desobediência civil, o MST busca a efetivação da cidadania por meio da luta pela reforma agrária. É crucial para o estudo a que se propõe esse artigo, a análise da Constituição Federal para se entender que a desobediência civil é, na verdade, um preceito constitucional. As orientações aqui apresentadas baseiam-se no estudo de Maria Garcia, José Carlos Garcia, Roberto Delmanto Júnior e Vera Regina. PALAVRAS – CHAVES: Desobediência civil. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Democracia.

Introdução

A Constituição Brasileira promulgada em 1988 marcou simbolicamente o restabelecimento do Estado Democrático de Direito. Contrariando os modelos anteriores, a nova constituinte traz os direitos fundamentais logo em seus títulos iniciais, denotando a centralidade que os mesmos adquiriam na ordem que então se fundava. A dignidade da pessoa humana e as prerrogativas inerentes à soberania popular e à cidadania passam a ser princípios norteadores de todo o ordenamento jurídico.

A garantia de direitos fundamentais pela Constituição, ainda que essencial, infelizmente não se faz presente na realidade prática. A distância entre a letra da lei e a sua efetivação prática está longe de ser pequena, o que traz a sensação de que os direitos fundamentais são, na verdade, uma "ficção jurídica".

A lei imersa no seu puro formalismo se desvincula da idéia de justiça e de paz social, passando de instrumento de garantias fundamentais e realização do bem comum para instrumento de interesses de grupos dominantes.

Nessa perspectiva, se insere o sistema jurídico de proteção da propriedade privada e a luta pela terra como faces de um ordenamento complexo e paradoxal, baseado em um modelo de Direito Positivo, responsável em grande parte pela manutenção das desigualdades. Esse Direito que visivelmente optou por proteger as elites proprietárias donas de imensos latifúndios está longe do ideal tão almejado de justiça social.

Não é possível disfarçar a natureza política da estrutura fundiária brasileira: o Brasil é o país com a maior concentração fundiária do mundo, onde cerca de 1,4% de proprietários detêm 50% das terras [...]. Tamanha concentração de propriedade engendra vigorosas relações de poder que projetam suas teias até as mais altas esferas de Brasília e da avenida Paulista. Os ruralistas compõem uma das maiores e mais ativas bancadas corporativas do Congresso Nacional, com deputados e senadores em praticamente todos os partidos políticos. [2]

Diante disso, surge a necessidade de interpretar as normas jurídicas de acordo com um "Direito vivo" ou um "Direito Achado na Rua" como nos informa Roberto Lyra Filho. Um Direito politizado que tem em vista a trajetória histórica dos movimentos sociais e a busca pela efetivação real do povo como titular da soberania, já garantida constitucionalmente. O MST entra nesse contexto como um novo sujeito coletivo de direito que, através dos atos de desobediência civil, exige a efetivação das normas constitucionais em atenção aos princípios de cidadania e dignidade da pessoa humana.

Os movimentos sociais, entre eles o MST, têm grande importância no processo de operacionalização e aprimoramento dos sistemas democráticos através de suas bandeiras de luta pelo reconhecimento e cumprimento dos direitos fundamentais, trazendo a necessidade de se entender a Constituição como um projeto em contínua construção.

A atual concepção acerca do conceito de direitos humanos é o resultado histórico da existência do conflito de interesses, o que encerra uma relação dialética com inúmeras circunstâncias históricas que levaram a conquistas progressivas. Exatamente por isso, Norberto Bobbio (1992, p.5) afirma que os direitos humanos são, sobretudo, direitos históricos porque oriundos de circunstâncias caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. Isto faz com os direitos sejam construídos de forma gradual, não de uma vez, nem de uma vez por todas. [3]

Tendo clara essa questão, pode-se pensar com lucidez o que representa, de fato, a ação do MST, caracterizada como desobediência civil, para o processo de efetivação da Constituição Brasileira.

Breve escorço histórico da desobediência civil

A prática da desobediência civil provém de origens remotas, podendo ser percebida já na Mesopotâmia, mais precisamente no Código de Hamurábi que previa a rebelião contra o governante como castigo pelo seu desrespeito às leis. Mais tarde, já na Idade Clássica, na Grécia, a desobediência civil é registrada na famosa obra de Sófocles, Antígona e na Idade Média nas obras de São Tomás de Aquino com a sua "teoria da revogação do poder real pelo povo". Posteriormente, no século XVII destaca-se John Locke que previa o direito de insurreição dos governados ao governante quando este nas prerrogativas do poder não preservasse os direitos naturais de todo indivíduo (o direito à vida, à liberdade e a propriedade). Com Locke, o direito de resistência apresentava-se como "instrumento político para o aperfeiçoamento do Estado" e pela primeira vez assumia a forma de um requisito de cidadania[4]. Entretanto, é com Henry David Thoreau que a teoria da desobediência civil ganha notoriedade, sendo registrada em artigo intitulado Desobediência civil.

Como um ato de protestocontra a escravidão e a Guerra do México, Thoreau se recusara a pagar impostos ao Estado, praticando um verdadeiro ato de desobediência civil, ou seja, um ato que a priori significava um mero descumprimento da lei econômica, mas que trazia embutida a idéia de revolta/protesto contra a exclusão social que então se desenvolvia.

A desobediência civil foi utilizada, posteriormente, por diversos movimentos nacionalistas na África e Ásia. Dentre seus líderes, destacaram-se Mahatma Gandhi que usou-a como uma ferramenta anti-colonialista e Martin Luther King, líder do movimento dos direitos civis da população norte-americana dos Estados Unidos na década de 1960 do século passado[5].

Como se vê, a desobediência civil tem instigado muitos autores, que desde tempos remotos vêm tratando do tema e trazendo a possibilidade de se entender a história do direito de resistência como uma busca pela igualdade, liberdade e dignidade, há muito oprimidas pelo poder e pelo surgimento de leis injustas.

A existência das leis formais sem a sua conseqüente operacionalização veda a existência da liberdade humana em um Estado Democrático de Direito. Liberdade essa entendida por muitos autores como sendo o direito dos direitos, que sem o qual, efetivamente, todos os demais perderiam a razão de ser[6].Em busca desse direito fundamental - a liberdade - os grupos humanos praticam a desobediência civil como meio legítimo de exercer sua soberania, tão afirmada na nossa Constituição. Assim, no momento em que a lei perde o seu prestígio e sua grandeza[7] torna-se legítimo a busca pela sua efetivação ou mesmo a mudança da ordem posta por meio da desobediência civil.

Inobstante aos mais variados conceitos dados à desobediência civil é possível classificar três características mais comumente aceitas, quais sejam: o caráter "aparentemente" ilegal do ato de desobediência, a publicidade e a não-violência. Com base nesses elementos, José Carlos Garcia[8] conceitua desobediência civil como "ato em princípio ilegal, público e não-violento praticado por uma pessoa ou grupo de pessoas, com o objetivo de provocar a alteração da lei, político-governamental, ou prática social e/ou obter o apoio ativo da opinião pública para a sua causa". Acrescenta ainda, Hannah Arendt[9] que a desobediência civil não pode ser nunca comparada à desobediência criminosa, pois aquela é executada com o fim de mostrar publicamente a injustiça, a ilegitimidade e a invalidade da lei visando a sua mudança por meio da não-violência. Já a desobediência criminosa, não decorre de injustiças na lei, mas de um ato de alguém que a desobedece com objetivos de fraudá-la. Geralmente a prática da desobediência criminosa é feita em benefício do próprio desobediente, e sua violação de maneira clandestina. Nas palavras de Arendt, "há um abismo de diferença entre o criminoso que evita os olhos do público e o contestador civil que toma a lei em suas próprias mãos em aberto desafio"[10].

Desobediência civil e a luta democrática

A desobediência civil ao permitir o cidadão participar do controle de constitucionalidade das leis num verdadeiro "controle informal de constitucionalidade" [11], constitui-se em medida de proteção às prerrogativas de cidadania. Esse atributo exclusivo de reserva do cidadão diante do Estado e agente transformador de mudança decorre do que dispõe a Constituição Federal em seu artigo 1º, parágrafo único, "Todo poder emana do povo (...)" e no artigo 5º, §2º, onde expressamente declara que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Além dos referidos dispositivos, é possível elencar toda a base legal que fundamenta a adoção da desobediência civil como um atributo exclusivo de que dispõe o cidadão na busca pela garantia dos seus direitos fundamentais, senão vejamos:

* Artigo 1º, incisos II a IV – reconhecimento da "cidadania", da "dignidade da pessoa humana", dos "valores sociais do trabalho" e da "livre iniciativa" como fundamentos do Estado Democrático de Direito;

* Artigo 3º, incisos I, III e IV – enuncia como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil "construir uma sociedade livre, justa e solidária"; "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"; "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação";

* Artigo 5º – declara a "igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" e a garantia do direito a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade;

* Artigo 5º, inciso XXIII – dota a propriedade de "função social";

* Artigo 7º - reconhece os direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, equiparando-os;

* Artigo 184 a 186 – adota a desapropriação como instrumento para efetivar a função social da propriedade;

* Artigo 227 – Reconhece que a "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

Como já salientado anteriormente, a Constituição brasileira admite existirem outros direitos fundamentais implícitos "decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados". No entanto, há de se ter em mente a dificuldade de se apontar quais seriam esses direitos implícitos no artigo 5º, § 2º da CF. Enuncia João Barbalho[12] que os direitos fundamentais elencados ao longo do artigo 5º da CF "talvez recupere maior alcance e significação se houver, por parte da doutrina e jurisprudência uma interpretação mais coerente com a natureza das normas principiológicas". Sendo assim, esses direitos e garantias não especificados pela Constituição, de forma alguma poderá ferir os princípios por ela adotados, entre eles, a dignidade da pessoa humana e a cidadania.

A desobediência civil, conclui Maria Garcia, é "um direito fundamental de garantia contido no mandamento do artigo 5º, § 2º da Constituição Federal"[13]. É uma garantia dada pela ordem jurídica que outorga ao cidadão o poder de intervir na res publica, como princípio da República e da cidadania.

Não restam dúvidas que a Constituição possui uma grande força simbólica, que se operacionalizada fosse deflagraria o processo de construção de um espaço de políticas públicas centrada na questão social agrária.

"Trata-se, portanto, de uma apropriação dos potenciais simbólicos da Constituição; ou seja, de uma práxis inteiramente embasada na principiologia constitucional do Estado Democrático de Direito brasileiro e destinada a efetivá-la. Em uma palavra, direcionada para fazer cumprir a Lei e as promessas estatais nela positivadas"[14].

Apesar de constitucionalmente tutelado, o direito de resistência é visto por muitos juristas como incompatível com a ordem democrática, isso porque existe uma dificuldade de explicar a existência da opressão nesse regime político. Em outras palavras, não há, para esses doutrinadores a possibilidade de se admitir a existência jurídica da desobediência civil no Estado Democrático, pois a possível repressão por parte do poder instituído aos atos reivindicatórios negaria o próprio princípio da democracia, de liberdade e soberania popular, o que criaria um paradoxo insuperável.

Todavia, apesar da resistência de certos autores em aceitar a desobediência civil como um conseqüência lógica da democracia, não há dúvidas de que "ela é, de fato, um componente decisivo para o funcionamento regular e aprimoramento dos sistemas democráticos em sociedades avançadas"[15].A desobediência civilrepresenta uma forma legítima de reação dos cidadãos quando os instrumentos de proteção dos direitos fundamentais não são mais eficazes.

Assim, o estudo do direito de resistência, embora não sendo tema novo, é sempre atual, principalmente quando se está diante de uma perceptível crise no modelo jurídico estatal, quando é visível o esgotamento de um sistema jurídico que não atende aos reclamos sociais e que, em certos casos, contribui para que a igualdade formal/teórica proposta na lei tenha como avesso necessário uma realidade de injustiças, impunidade e exclusão social. [16]

Nesse contexto, se insere a análise das ocupações de terra organizadas pelo MST por ser exemplo concreto da prática da desobediência civil no Brasil.

O MST e a desobediência civil

Fruto do contexto de lutas pela abertura política, pelo fim da ditadura e de mobilizações operárias, surge o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – em 1984, em Cascavel, no Paraná, como um movimento pela busca da reforma agrária e a conseqüente efetivação da cidadania. O MST, dentre os vários movimentos sociais em atividade no Brasil, adquiriu maior notoriedade, dada a sua maior politização e persistência na luta pela reforma agrária.

O MST tornou-se conhecido pela sua forma de organização socioespacial e por sua territorialização, ou seja, a forma de organização do MST constitui-se da construção de um espaço de socialização política que possibilita a formação de grupos de famílias e a conscientização da luta. Esse processo permite ao MST a continuação da luta pela terra mesmo após a conquista da mesma. A conquista de um assentamento, que é uma fração do território, gera condições sociopolíticas que tornam possível a formação de um novo grupo de famílias que continuarão as lutas pela terra e pela reforma agrária, e assim consecutivamente. [17]

Apesar de ser um movimento que tem como objetivo a "reforma da sociedade" e assim a busca de "um mínimo existencial" para aquelas populações excluídas do gozo da cidadania, o MST tende a ser visto como um grupo subversivo, organizado contra o regime instituído, ou como grupo de baderneiros e desordeiros.

Esse preconceito popular foi amplamente desenvolvido pela ditadura militar articulada com a cultura tecnocrática, que desenvolveu a idéia de que a política não é res publica, e sim uma questão de especialistas que dominam a tecnicidade, as informações e os meios pertinentes para o envolvimento com a política.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, XXIII, como demonstrado outrora, determina que "a propriedade atenderá a sua função social". Portanto, o que o MST pleiteia nada mais é do que o cumprimento efetivo da Constituição, em atenção aos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania. A ocupação de terras pelo MST é um dos principais meios utilizados como forma de pressionar o governo a proceder a reforma agrária e a garantir uma vida digna para os Sem-Terra.

Como já exposto anteriormente, os critérios básicos da desobediência civil são a ilicitude, ao menos em princípio, a sua publicidade e seu caráter não-violento. Com base nessas características, parte-se para a análise da relação existente entre os atos praticados pelo MST e atos de desobediência civil.

A ocupação de terras pelo MST é vista por muitos como ilegal, pois afronta o direito de propriedade reconhecido pela Constituição (artigo 5º, XXII), passando a ser tratado como crimes de alteração de limites e esbulho possessório, tipificados no art. 161, I e II do Código Penal, respectivamente, numa verdadeira construção dos conflitos agrários como criminalidade. Ocorre que a ocupação de terras com vistas a pressionar o governo para a postulação da reforma agrária, não pode ser confundida com o esbulho possessório ou alteração de limites, pois não há nesse caso o objetivo de usurpar propriedade alheia. Nessa perspectiva assinala Roberto Delmanto Júnior que "quando membros do MST suprimem ou deslocam tapumes, marcos ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória de uma fazenda, eles de forma alguma pretendem tomá-la para si [...] mas, sim, forçar o Governo a desapropriá-la, pagando a devida indenização". [18]

Ademais, o alvo específico do MST não é a propriedade privada, mas o latifúndio improdutivo a propriedade rural especulativa, ou seja, tipos de propriedades que não atendem a função social.O MST, na realidade, propõe um questionamento constitucional acerca da estrutura fundiária em vigor.

Diante disso, não há que se falar em ilegalidade nos atos praticados pelo MST, pois a reforma agrária e o cumprimento da função social da terra são previstos pela Constituição Federal. O que o movimento exige é a efetivação da nossa Lei Maior, em atenção aos princípios que ela própria elenca como sendo fundamentais: a dignidade da pessoa humana e a cidadania.

Por mais ilegal que aparente ser, visto que o conflito rural em uma análise descontextualizada, despolitizada tende a ser recolocado no âmbito criminal, não há como enquadrá-lo como tipo penal do delito de esbulho possessório e alteração de limites, pois a interpretação desses atos não deve se restringir a mera "subsunção do fato à norma", mas deve-se levar em conta o fim da ação e as estruturas sociológicas que os cercam.

Caracterizar a ocupação de terras pelo MST como crime é seguir uma interpretação restritiva da lei, dando mais importância ao fato em si, do que a finalidade e as circunstâncias que o rodeiam. Além disso, tal interpretação (visão restritiva e unilateral da lei) contraria o que determina a Constituição Federal em artigo 3º, onde elenca os objetivos fundamentais da República como sendo: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Outro ponto em comum entre desobediência civil e o MST é a publicidade dos seus atos, pois são amplamente divulgados pela mídia antes de sua ocorrência. A publicidade é essencial para que funcione como elemento de pressão junto às autoridades.[19]

Quanto ao elemento não-violência José Garcia[20] afirma que para que uma ação seja aceita moralmente não basta que ela não seja tipificada como crime, mas que seja não-violenta.

As ocupações e manifestações do MST têm como objetivo precípuo a não-violência. Ocorre que na maioria das vezes a violência é utilizada como forma reativa, de resistência, aos despejos. Contudo, há de se ponderar que a reação dos Sem-Terra é extremamente moderada, se comparados aos empregados pelos agressores (polícia e os jagunços). Para tanto, basta observar a desproporção entre os mortos e feridos de ambos os lados e o tipo de armas utilizadas. Enquanto os agressores utilizam poderosas armas de fogo, os Sem-Terra utilizam facões, foices e enxadas, ou seja, seus próprios instrumentos de trabalho. Essa falta de proporção entre os meios utilizados leva a um grande saldo de mortos e feridos sempre maior do lado dos integrantes do MST.

No entanto, reproduz-se ideologicamente na sociedade que as práticas do MST são violentas e agressivas, contribuindo, dessa forma para uma duplicação da exclusão e da violência. Tal concepção, contudo, é fruto de um preconceito social que desconhece as diretrizes reais do MST, e de interesses da classe dominante que pretende reproduzir uma imagem depreciatória do movimento para atingir rejeição da sociedade, para justificar o seu combate repressivo.

O MST e visto como um movimento altamente perigoso que põe em risco a propriedade privada, a "preservação da ordem pública" e a manutenção do status quo. Dessa forma, a elite nega a desobediência civil como ato legítimo para o funcionamento regular e o aprimoramento da democracia.

Ora, se a desobediência civil é compatível com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, se (re)afirma seus postulados, porque então esta prática tem sido tão duramente condenada?

Em resposta para tal indagação, são pertinentes as palavras do prof. Plínio de Arruda Sampaio, para quem a elite pode aceitar que os pobres peçam favores ou mendicância, mas jamais aceitará que eles se organizem para exigir direitos. O "perigo" das ocupações de terra é que elas são uma forma aglutinadora, não um grito isolado. [21]

Diante de todo o exposto, é possível caracterizar a atuação do MST como uma verdadeira prática de desobediência civil que busca a efetivação das normas constitucionais em atenção a dignidade da pessoa humana, a cidadania e da soberania popular. A ocupação de terras se torna a forma mais eficaz de pressão para a implantação de assentamentos rurais e para a transformação de uma sociedade mais igualitária. "Compreender a desobediência civil como elemento integrativo do Estado Democrático de Direito significa, portanto, defender a necessidade de construção de uma cultura democrática e de uma compreensão dinâmica da Constituição, que deve ser vista como projeto inacabado" [22].

Conclusão

Como demonstrado ao longo do artigo, a desobediência civil é um instrumento legítimo de afirmação e aprimoramento da democracia. Não há como se pensar em um regime democrático que oprima a soberania do povo em lutar pela efetivação do Estado Democrático de Direito.

A identificação entre o MST e a desobediência civil parte do fundamento da cidadania ativa. A luta pela terra nada mais é que a luta pela reforma agrária, pela expansão das políticas públicas e pelo exercício pleno dos direitos fundamentais.

A cidadania ativa expressa a possibilidade do cidadão de intervir na produção da lei e conseqüentemente na sua alteração ou modificação, quando esta se apresentar incompatível com os princípios fundamentais constitucionais. Daí se entender que o Estado Democrático de Direito não se apresenta como um modelo pronto, mas como algo inacabado e em constante evolução.

Referências

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Construção Social dos Conflitos Agrários como Criminalidade. Coletânea sobre a Questão Penal Agrária, org. Marcelo Dias Varella.

D´CÂMARA, Olavo Arruda. Desobediência civil. Disponível em: <http://www.ipojur.com.br/noticias>. Acesso em: 29 de março de 2008.

GARCIA, Maria. Desobediência Civil: direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.

RIBEIRO, Ana Maria Marques. Rompendo a cerca da lei. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/anamaria.pdf.>. Acesso em: 28 de março de 2008.

STROZAKE, Juvelino José. A questão Agrária e a justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência: Possibilidades de autodefesa do empregado em afce do empregador. São Paulo: LTr, 1996.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Construção Social dos Conflitos Agrários como Criminalidade. Coletânea sobre a Questão Penal Agrária, org. Marcelo Dias Varella.




Autor: Vanessa Ramos Brito


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