Paixão De Outono



PAIXÃO DE OUTONO - CAPÍTULO I

 

 

            Todas as tardes, às 17,45 horas, a dona Yolanda passava pela frente da padaria, quando ia à missa.

            Todas as noites, às 19,30 horas, quando voltava da missa, a dona Yolanda entrava na padaria e comprava três pãezinhos e um litro de leite.

Ela sempre deixava bem claro que percebia e não aprovava as atitudes do padeiro Inácio, que tinha a mania de atender os clientes com um mal-cheiroso cigarro pendendo na boca e um copo de bebida mal oculto na parte de baixo do balcão. Porém, só nos finais de tarde, depois de pronta a última fornada, é que Inácio atendia clientes no balcão; durante a maior parte do dia o atendimento era função de um rapazola, um sobrinho distante, filho de dona Zilda, a solteirona irmã do padeiro.

Às tardes, duas coisas eram infalíveis naquela rua: a cervejinha gelada do padeiro e a trajetória de dona Yolanda indo à missa, voltando e comprando seus três pães.

            “Porque três pães?” - perguntava-se o padeiro. “Se ela mora sozinha!”

            A amadurecida senhora criava um gato, preto dos pés aos bigodes, que nunca pulava os muros, vigiado que era pela boa mulher. Tinha também um papagaio, mas, este, quem dava notícias era o botequeiro, onde ela buscava restos de verduras... Meio pão picado no pratinho de leite, toda noite, era o agrado do gato Mefistófeles. Dona Yolanda nem sabia quem era Mefistófeles, mas dera este nome ao gato porque seu finado marido vivia falando dum sujeito que era artinhoso como aquele gato. Dona Yolanda não se lembrava bem, pois prestava pouca atenção à prosa do marido, mas lhe dera este nome. Embora o chamasse apenas “Mefista!” quando o gato subia na pia e ela ficava nervosa.

 

Meio pão picado no pratinho de leite, toda noite, era o agrado do gato Mefistófeles. Meio pão, embebido em mel, enquanto assistia à novela das oito, era o agradinho que dona Yolanda se presenteava. Outro pão, ela e o gato dividiriam, meio a meio, na manhã seguinte, com leite e mel. O terceiro toda noite ela deixava num tamborete, afastado dois palmos do portão, num canto, onde o moço lixeiro já se acostumara a pegar. Sempre recheado de sardinha ou uma salsicha, ou uma fatia de queijo.

 

            Na primeira sexta-feira daquele mês, Dia de Adoração à Nossa Senhora, dona Yolanda voltou mais tarde da igreja. Já era noite. Ao passar defronte à padaria, Inácio estava abaixando as portas do estabelecimento. Estava chorando. Os cabelos do padeiro, caindo de lado, rebeldes, lembraram à dona Yolanda o seu filho Milton, que morrera num acidente quando trabalhava, como engenheiro hidráulico, na construção duma hidrelétrica lá no Pará. Dona Yolanda parou ao lado do padeiro e quase passou a mão em seus cabelos, para confortá-lo. Do carro de Inácio, que deveria ter quase a metade da idade dela, um Opala de cor branca amarelada, escoava música, não muito alta. Dona Yolanda reconheceu: era uma valsa! Tão antiga! Tão antiga! Não se lembrava bem do nome: “Branca”? Aquela que o Francisco Petrônio cantava nos bailes? Não! Como pudera se esquecer? Uma valsa tão linda! Saudades de Ouro Preto!

Porque ele chorava? Uma conta vencida? A solidão? Uma doença grave? Uma ofensa?

            - Dona Yolanda!

- Seu Inácio!

Tão grande a surpresa dele quanto o embaraço dela. O padeiro tentou ocultar as lágrimas. Ela fez que não via. Ele desejou perguntar se ela queria pão, mas não o fez por medo de que sua voz se mostrasse soluçante. Ela queria oferecer um consolo, mas não soube como, balbuciou um “Boa noite! Fique com Deus!” e se foi, contristada.

            No dia seguinte dona Yolanda comprou seus pães num armazém mais perto da igreja. No segundo dia, um domingo (aos domingos ela ia à missa das dez da manhã), ao sair da missa, pensava em seu Inácio, mas, acanhada, dirigiu-se ao armazém onde comprara os pães no dia anterior. Entrou, dirigiu-se ao balcão, titubeou e, em lugar de pedir pão, comprou açúcar! Depois pediu que lhe moessem duzentos e cinqüenta gramas de café. Saiu da mercearia com o pacote cheiroso e andou pela rua zangando consigo mesma por que estava se comportando como uma tola: devia ter comprado aquelas coisas na padaria do seu Inácio! E se esquecera de comprar os pães!

            Ao entrar na padaria de Inácio, este bebia. Ele embrulhou os três pães, sem que ela pedisse, mas cometeu um erro: antes de entregar os pães, bebeu um gole de cerveja. Dona Yolanda não percebeu que era por embaraço, então recitou um versículo que acabara de ouvir da boca do padre:

Deus salva os arrependidos, mas não os relutantes”.

            Contudo, ela declarou isto sem exibir soberba, o que impediu Inácio de se mostrar grosseiro. Ele sorriu e elevou copo como em homenagem à cliente e bebeu duma vez todo o conteúdo, em seguida estendeu a mão para acolher as costumeiras moedas, sabendo que não haveria troco, pois dona Yolanda sempre aparecia com as moedinhas contadas. Porém, naquela manhã, para surpresa do padeiro, haveria troco, uma vez que ela desinteirara o dinheiro ao comprar açúcar e pó de café na mercearia. Um tanto desconcertado, ele abriu a gaveta do caixa, tateando em busca do troco.

            Dona Yolanda, querendo mostrar-se desinteressada e paciente, olhou em volta, admitindo que começava a mudar seu conceito a respeito do padeiro: a padaria sempre limpa, nenhuma mosca pousando sobre as quitandas, e o cigarro até que não era tão fedido assim. Olhou-o com menor aversão, os cabelos desalinhados, que lembravam dolorosamente seu filho falecido, aquele jeito pausado de andar, mostrando autoconfiança, a maneira irônica, mas atenciosa, de falar. Até que não era um mau sujeito, admitiu.

            Seu Inácio, meio de costas, selecionava moedas, para devolver-lhe o troco. Dona Yolanda sentiu uma caridosa ternura por aquele homem que, parecendo tão forte, parecia-lhe tão indefeso, e veio-lhe uma coragem nunca sentida, e soube que iria perguntar por que naquela noite ele chorava.

            - Seu Inácio, naquela noite o senhor...

            Ele se voltou tão rapidamente que a assustou. Ela sentiu as pernas trêmulas, o coração na boca, arrependeu-se e corou como uma adolescente pega em falta. Quase que lhe vieram lágrimas diante do olhar severo dele e, intimamente se justificava: somente por causa de seus sentimentos cristãos que queria saber por que naquela noite ele chorava.

           

Onivaldo Paiva – [email protected]

 


Autor: Onivaldo Paiva


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