Cartografia da Mitologia Grega



1.DEFINIÇÃO E FINALIDADE DO MITO

"Também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo".[1]

A partir da analise do filósofo Aristóteles pode ser definida a trajetória da importância do mito para a conscientização do ser humano como sujeito pensante. Essa definição se confunde com a definição do conceito de filosofia pelo seu fascínio.

Todos os povos da Antigüidade procuraram, da melhor maneira possível, explicar a origem do Universo e a existência dos fenômenos naturais de que dependiam. Sumérios, egípcios, acádicos, hebreus, chineses, indianos e também os gregos, entre outros, consideravam as forças naturais que conheciam entidades verdadeiramente "sobrenaturais", divindades ou deuses.

O conhecimento mítico foi a primeira etapa da consciência humana. Nele, havia um só plano. Tudo se passava num mesmo nível: forças da natureza, forças divinizados, homem e animais atuando num nível. A consciência como se confundia com as coisas, não se destacando do mundo exterior. Não existe uma relação ainda explícita entre sujeito e objeto, pois o homem aqui se confunde com a natureza. O ser do homem é o ser coletivo e não existe uma identidade individual, pois o eu se afirma pelos outros, isto é, o indivíduo não é pessoa e sim personagem. O indivíduo apenas aceita as normas e tradições coletivas. A magia para eles é o que lhes dá sustentação. Sendo assim, podemos dizer que a consciência mítica, dentro de uma visão atual, apesar de todas as suas riquezas, é ingênua, pois a sua adesão é feita pela fé e pela crença (CHAUÍ, 1995).

Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte e da vida).

A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar algumas coisa para outros) e do verbo Mytheo (conversar, contar, anunciar, designar, etc). Para os gregos o mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra, nesse coso, o poeta que é um escolhido dos deuses e que tudo sabe sobres os acontecimentos do passado e dos acontecimentos vindouros. O mito nesse caso é considerado sagrado porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.

O mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra revelada, o dito... O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico. (BRANDÃO, 1987, p.36)

A ciência define o mito como indicando algo irreal, inatingível e a considera lógica ou irracional (CHALMERS, 1993). Mesmo assim, não consegue controlar esta linguagem. "O conhecimento falado em mitos traduz uma intelecção do ser de validade originária e primária, que se coloca num plano diferente da lógica racional". (Arcângelo Buzzi).

É preciso reconhecer que o mito é conseqüência e unidade de sentimento mais que regras lógicas; esta unidade é um dos impulsos mais fortes e originais do pensamento primitivo; o mito é uma intuição da realidade exprimindo dimensões profundas e perenes ao nível da estrutura da psique humana.

Cada época tem seus mitos, prenhes de significação: os Sofistas separam o mito da razão; Platão - considerou a narração mitológica como envoltura da verdade filosófica - como modo de explicar certas verdades que escapam ao raciocínio; Freud e Jung - expressam o saber da psiqué em mitos; a Antigüidade identifica os problemas da existência humana a partir dos mitos da árvore da vida, de Dionísio, de Prometeu, do paraíso perdido; nos tempos modernos com a sociedade desenvolvida vivenciamos a hegemonia do proletariado como fim de todas as alienações.

Os mitos exercem funções sociais como a força que faz a história; são linguagens que permite e possibilita a sociedade viver os fatos em unidade e coesão superior; não é objeto de pura investigação empírico-descritiva, nem de manifestação histórica de algum absoluto; é a forma de ser de uma consciência.

Os gregos organizaram as divindades em "famílias divinas", constituídas como as famílias humanas, e desenvolveram genealogias para explicar satisfatoriamente tanto a criação do Universo, ou cosmogonia, quanto a origem dos deuses, ou teogonia. A mais antiga e coerente versão das lendas de criação encontra-se na Teogonia de Hesíodos.

De acordo com Brandão (1987), os gregos se sentiam vazios do sentimento de amor e paixão. Não acreditavam que esses sentimentos (compaixão, amor, ódio, sofrimento, etc) eram algo de autonomia do sujeito que sente esse determinado sentimento. Entendiam que essas sensibilidades advinham da vontade e interferência dos deuses. Por isso, acreditava-se em diversos deuses ligados à sexualidade e ao amor, como Dioniso, Afrodite e Eros. Neste sentido, o texto "O mito de Eros e Psique" retrata muito bem a raiva expressa por Vênus em relação ao seu filho Eros e seu amor nutrido por Psique:"As duas deusas, bem informadas da aventura, tentam acalmar a raiva de Vênus , Mas o que fez tanto o seu filho para motivar tanta raiva contra ele, e essa hostilidade tão violenta contra a jovem que ele ama?"[2]

Os deuses primordiais ou da primeira geração representavam, para os gregos, as forças primitivas e desconhecidas que haviam dado origem ao mundo que conheciam, como por exemplo, o relâmpago, e a personificação de todos os impulsos básicos da vida, como a morte (Tânatos) e o inflexível destino[3].

A segunda geração, descendente de Uranos, Gaia e Pontos, ainda transmitiam uma visão agitada e indomada da natureza e mostrava ainda entidades poderosas, muitas vezes monstruosas e aparentemente incontroláveis... Mais tarde, com o desaparecimento da potência criadora e selvagem das duas primeiras gerações tudo se organizou e, sob o domínio de Zeus, as antigas divindades e as novas acomodaram-se, cada uma em seu domínio[4].

Os inúmeros amores de Zeus vêm mergulhados na simbologia da fertilidade, além de significar um ritual religioso politeísta em que a terra é fecundada por um deus terrestre. Esta seita, também, nos remeteria a um sentido político, já que a união de Júpiter com certas deusas pré-helênicas ajuda no sincretismo que mais tarde faria da religião grega um intenso mosaico de crenças e valores. Nesta religião, Zeus compareceria como o representante máximo. (BRANDÃO, 2002,p.342).

O mundo assumiu o aspecto que os gregos de então conheciam e nós conhecemos atualmente, mas a terra ainda estava repleta de monstros assustadores, e os deuses interagiam constantemente com os quase indefesos mortais.

O espectro da mitologia grega é enorme. Abrange desde os crimes mais cruéis dos primeiros deuses, a manipulação da história feita por algumas sacerdotisas, e as sangrentas guerras de Tróia e Tebas, à infância de Hermes e o sofrimento de Deméter por Perséfone. Em alguns momentos essas idéias são alteradas para corresponder as necessidades do escritorque

Para reduzir um mitologema a uma obra de arte, digamos, a uma tragédia, o poeta terá que fazer alterações, por vezes violentas, a fim de que a ação resulte única, se desenvolva num mesmo lugar e "caiba" num só dia. (BRANDÃO, 1986, p. 26)

Os gregos antigos enxergavam vida em quase tudo que os cercavam, e buscavam explicações para tudo. A imaginação fértil deste povo criou personagens e figuras mitológicas das mais diversas. Heróis, deuses, ninfas, titãs e centauros habitavam o mundo material, influenciando em suas vidas. Bastava ler os sinais da natureza, para conseguir atingir seus objetivos. A pitonisa, espécie de sacerdotisa era uma importante personagem neste contexto. Os gregos a consultavam em seus oráculos para saber sobre as coisas que estavam acontecendo e também sobre o futuro. Quase sempre, a pitonisa buscava explicações mitológicas para tais acontecimentos. Agradar uma divindade era condição fundamental para atingir bons resultados na vida material. Um trabalhador do comércio, por exemplo, deveria deixar o deus Hermes sempre satisfeito, para conseguir bons resultados em seu trabalho.

Para compreender a forma como o mito é organizado na literatura podemos retomar as idéias de MELLO (75-76, 2006), quando articula a origem do São Francisco a partir da literatura de cordel:

Como na antiga Grécia,

O Nordeste também tinha

Os seus deuses mitológicos –

Deus da chuva, deus da vinha,

De verão, da primavera,

Mas, o mais famoso era

Cafuné – deus da morrinha.

Filho de uma caipora

Com uma alma de gato.

Ombros largos, braços longos,

Perna curta, do pé chato.

Vivia pela caatinga

E caçando peba no mato.

Mas, quando um dia, ele soube

Que Hércules tinha apartado

Toda a África da Europa,

Disse meio enciumado:

– "Eu vou mostrar a Teseu,

a Hércules e a Prometeu

o gásque eu tenho guardado."

[...]

– "Eu vou para Minas Gerais

Mostrar o que um deus faz

Com uma enxada na mão."

Andou em Minas Gerais –

Norte, Sul, Leste e Oeste.

Furou aqui e ali

E disse depois do teste:

– "Aqui tem água pra dar,

Para estruir e matar

A sede do meu Nordeste.

Se eu conseguir levar

Daqui para o Maranhão

Um rio de água doce,

Rasgando a cara do chão

Sem deixar nenhuma ilha

Vai ser uma maravilha

Para o povo do sertão.

Foi na serra da Canastra,

Se abaixou, deu um risco,

Depois fez uma enxada

Da pedra de um corisco,

Tomou uma pra esquentar

E começou a cavar

O leito do São Francisco.

De acordo com (MELLO, 2006) o Nordeste pode inventar seus mitos assim como a Grécia. Deste modo, ele esboça a origem do rio São Francisco traçando uma linguagem um tanto fascinante dos cordéis. Sua noção de mito é praticamente inconfundível por tratar de uma ligeira fantasia dos versos. Há neste caso, um sentido atemporal do mito que prevalece na Grécia ou em qualquer lugar do mundo, atribuindo aos fatos, realidade e fantasia. Não se pode através dessas narrativas, fugir do sentido do mito. Seu significado se torna frágil porem não menos significativo.

No transpassar dos tempos o mito grego sofreu mudanças em virtude da vida política e social da polis grega. A filosofia platônica, alicerçada pelo código ético-moral de Sócrates, traz através da reflexão, a tentativa de mostrar ao homem a responsabilidade que possui sobre sua vida e a do outro que lhe cerca. O caminho trilhado por este estudo baseia-se na demonstração dos valores e responsabilidades contidas nas atitudes humanas. Como um comportamento de um pode afetar e envolver o outro, existe uma necessidade humana em pautar suas atitudes a um modelo aceito previamente, porquanto o ser humano também é regido pelo juízo moral decorrente de suas atitudes.

Essa responsabilidade que a Grécia tem em relação ao universo e a origem do mundo transborda para o imaginário, gerando assim, um campo capaz de atribuir aos primeiros filósofos uma forma própria de pensar e agir.

No mito não há segredos

que estejam além dos desejos.

Desejos é para os deuses,

para os que são humanos!

O mito se resolve nos desejos:

quase deus e quase humano.

Ser deus, ser homem, ser mistério!

Sebastião Jacinto

Como identificamos na maioria das vezes, a mitologia como invenção humana, por atribuirmos as histórias fantasiosas, podemos aferir a ele essa necessidade de ultrapassar sua própria condição de ser, sujeito histórico, desejoso de prazeres carnais, mas também desejo de alcançar a sublimidade. Neste caso, o sublime se confunde com o poder que é denominado pelo homem. De nome em nome as coisas vão encontrando sua finalidade no tempo e no espaço. Subtraída a realidade resta apenas a fantasia do pensamento que pouco a pouco restitui um profundo poder a linguagem. A linguagem neste caso tem o poder de emprenhar, gerando até na mais infértil mente humana a figura do mito. Neste caso, a religião se mitifica na linguagem e quando o Evangelista João diz: "e o verbo se fez carne e habitou entre nós"[5], está identificando esse poder da palavra, tão bem conhecida pelos gregos no desenvolvimento da cultura dos mitos e campo de desenvolvimento da escrita.

2. O QUE PODEMOS COMENTAR SOBRE A OBRA ODISSÉIA?

Quanto a obra Odisséia as interpretações imediatas que podemos fazer em relação a figura de Odisseu[6] se conecta com as fundamentações psicológicas e essenciais da natureza do homem: um espírito aventureiro, que busca novos rumos, capaz de contornar sua própria essência. Quando deixa seu filho Telêmaco e sua esposa Penélope[7] para trilhar horizontes novos ele está de alguma forma fundamentando aquilo que a história costuma afirma quanto aos fatos; "que de alguma forma, os fatos históricos e repetem com pequenas mudanças". Esses acontecimentos legitimam as aventuras do homem em busca de novas terras. Não fosse as aventuras de Odisseu o homem já mais teria tido o insight de se aventurar mar adentro, a ciência não teria prosperado, a filosofia não teria amadurecido sua condição imaginativa que leva o ser a pensar sem fronteiras entre o real e o ideal. Arriscamos a afirmar que o conceito de mito platônico tem em sua gênese uma forte tendência odisseliano, já que para sai da caverna, o ser que se despende das correntes tem necessariamente que se aventurar em buscar novos sentidos para a vida.

Odisseu participa da guerra de Tróia. "Terminada a guerra, Odisseu teve de se aventurar, com seus companheiros de armas, por uma longa e arriscada jornada de volta à ilha de Ítaca, sua terra natal" (VASCONCELLOS, p 68 - 1998). É nessa tentativa de volta para sua terra que Odisseu vivência a fúria dos deuses. Neste encontro o sentimento de aventureiro não se dilui e ele se mostra capaz de vencer as várias empreitadas que se abate entre ele e os seus.

Aqui, aprofundamos a necessidade do projeto científico que leva o homem Odisseu/explorador a valorização do capital, que interfere na estruturação familiar, gerando um afastamento dos membros em duas hipóteses: o afastamento territorial pautada por uma ânsia pela busca do novo ou acomodação no sentimento de familiaridade.

É Odisseu quem impulsiona nos dias de hoje milhares de homens a deixarem suas casas e esposas em busca de melhores dias no Sul do Brasil, pois de algum modo somos gerados dentro dessa esfera do mito. Os nordestinos se aventuram mais por necessidade que por prazer da simples aventura, mas por um instinto paternal que deseja criar condições de melhores dias para seus filhos e esposa. Na necessidade ele se distancia gerando em sua condição de ser a saudade. Da saudade brota as lembranças e das lembranças nasce o amor.

Nas aventuras tanto de Odisseu como dos nordestinos não há um medo de enfrentar o que se apresenta como novidade. A grande resistência está no medo de não encontrar o caminho de volta, de perder definitivamente os laços afetivos que demarcam a saudade e o amor que alimenta pelos seus. O medo de ambos está no fato de que em uma mesma pessoa existe sentimento de morte e sentimentos de vida

Nesta fronteira do amor se fortalece todos os sentimentos, capaz de devolver ao aventureiro uma embriages que motiva todas as confusões de sentimento. A partir desta fronteira nasce o que poderíamos chamar aqui de sangria do mito.

A sangria do mito seria justamente essa incapacidade humana de se distanciar de tudo que é fantasioso por se tratar de uma fronteira onde o que prevalece é consciência arraigada pelos sentimentos e mapeada pelo ingrediente maior que é o amor. Essa sangria deixa o homem credenciado a acreditar no sobrenatural, gerando uma propensão ao surgimento dos deuses e criaturas maravilhosas que povoa a sua consciência.

Na sangria do mito a mulher aparece como soberana, forte, e antes de tudo, maravilhosa em sua condição feminina. Antes do mito, ela por se só existe na consciência conturbada do homem. Ela alimenta uma fidelidade demarcada pelas condições éticas da sociedade, fruto de uma cultura massacrante e machista.

Penélope e Odisseu são apontados como sobreviventes da destruição da célula familiar. A família se mitifica na figura de ambos, marcada por dois sentimentos que interagem no mesmo indivíduo: presença e ausência marcada pela vontade de partir para o além-mar, vivenciada nos desejos de Odisseu e a insistência de Penélope em se manter em solo firme.

É dentro desta cultura, que Penélope se ver fossada a casar com um dos pretendentes. Sua espera pelo amado Odisseu se torna uma atenuante pelos fatos que estão prestes a se concretizar em sua existência. Astuta como todas as mulheres que se destacam na história, uma Eva que espera um Adão ausente, Penélope impõem suas condições de "que se casaria com um dos pretendentes após acabar de tecer uma mortalha para o sogro; porém, o que tecia de dia, desmanchava à noite, secretamente. E assim ia adiando a decisão, pois a mortalha jamais ficava pronta"(VASCONCELLOS, p 84-85 - 1998).

Nesta ação de Penélope ao tecer sempre o mesmo amor por Odisseu quase se afunda na monotonia da vida, mas o que a alimenta e a salva é o profundo enamorá-se e o desejo de ficar com o amado. Esse sentimento é herdado por todos os humanos nos quatro cantos da terra. Tecendo e re-tecendo, Penélope aprofundava o sentido da vida, alimentava suas esperanças e devolvia ao seu âmago coração, uma inquietação que se confundia com a teia de sua existência. De fio a fio, ela vai religando as lembranças, que teimavam em sumir de sua mente com o tempo e os novos acontecimentos. Em sua imaginação ela alimentava "o imaginário, visto nos segredos dos pontos, que se expande até os horizontes das crenças: a única ponte para se imaginar o religioso"[8].

Devidamente esposada, se torna devota de um sentimento religioso de mulher de direito e de dever para com Odisseu. Seus anseios pela vota o transforma em nubente. A volta representa a realização da espera-esperança que firma-se como compromisso. Assim, ela cantarola no interior do seu ser um refrão semelhante ao Cântico dos Cânticos[9]: "Dize-me, ó tu, que meu coração ama, onde apascentas o teu rebanho, onde o levas a repousar ao meio-dia, para que eu não ande vagueando junto aos rebanhos dos teus companheiros"[10].

Dentro de um questionamento sobre a possibilidade do amor alimenta uma obstinação por seu ideal de amar e querendo dar tempo a sua própria condição de ser que espera firma uma nova proposta acentuada no pânico pela desterritorialização:

(...) casar-se-ia com quem conseguisse, usando o arco de Odisseu, fazer passar uma flecha por doze machados postos em fileira. A flecha deveria passar, de uma vez, pelos orifícios que os machados tinham na parte superior. Era difícil até mesmo conseguir vergar o arco. Nenhum dos pretendentes conseguiu. Mas eis que Odisseu entrou na competição e realizou a façanha que parecia impossível. Então pai e filho, ao lado dos servidores fiéis, mataram os pretendentes um a um. (VASCONCELLOS, p 85 - 1998)

Não há novidade no manuseio do arco para Odisseu. Essa fonte de informação inspirou muitos escritores ao utilizar as características instrumentais do indivíduo para definir o desenrolar dos fatos. É uma sena clara de que para o usurpador há sempre uma idealização de identificação e Odisseu como eterno aventureiro, com medo das evidências da desterritorialização do excesso da presença de Penélope em seu intimo, teme agora a ausência de sua amada. Mesmo fantasiado de mendigo, Odisseu existe na ausência e descontrole de Penélope.Os dois mitos se cruzam na imobilidade de Penélope e no movimento compulsivo de Odisseu.

O provável desfecho do pai e filho juntamente com os servidores fiéis, é o prelúdio da fragmentação da tragédia. Ao matar os pretendentes Odisseu está conferindo a autogênese das posteriores origem da tragédia: morte, sangue, violência como fonte de resgate daqui que se constitui em direito de propriedade. Dentro desse conflito o que prevalece é o fascínio da destruição.

Cautelosa, Penélope quis uma prova a mais de que aquele homem em farrapos era o seu caro Odisseu: que ele descrevesse o leito conjugal, cujas características só ela e o marido conheciam. Quando teve certeza de que se tratava mesmo de Odisseu, sentiu o corpo se enfraquecer como se fosse desmaiar e, chorando, abraçou-o e beijou-o, dizendo: — Os deuses deram muitos sofrimentos a nós dois, Odisseu; não pudemos gozar de nossa juventude um ao lado do outro. Odisseu também chorou, abraçando-a. Após vinte anos de longas dores e perigos constantes, parecia que finalmente o senhor de Ítaca e sua fiel Penélope reencontravam a paz para sempre. (VASCONCELLOS, p 85 - 1998)

O desfecho dos acontecimentos que prevalecem na história de Odisseu e Penélope, longe de qualquer precipitação, representa de fato a realização de um encontro entre dois seres que se amar, aprisionados em um tempo que não se constitui como presente, passado ou futuro mais uma condição que é predominante para todos os mortais: a vida e o enamora-se da vida. A vida que é um tecer constante de sonhos e reencontros...


Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto

Antes de se constituir em mito Odisseu e Penélope se confronta com o mito grego. O fio tecido assim como nos afirma NETO em seu poema "Tecendo Manhã",se transforma em "uma teia tênue" que cruza todo o universo da realidade humana em uma relação sem fim. Neste caso, Homero narra o mito do mito na obra Odisséia já que há uma relação de homens e deuses. Essa narrativa nos faz questionar sobre a descaracterização da família mascada por novas formas de vida conjugal. As relações não desenvolvem laços profundos e duradouros – é pura paixão, aventura – pouco importa os sentimentos de familiaridade. A exaltação da liberdade faz com que percamos a sensibilidade de envolvimento e também a possibilidade de novos envolvimentos frente a vontade do absoluto. A evidencia está na pergunta: o amor ainda é possível?

Como mulher, Penélope vivência uma condição de criadora, tecendo uma obra infindável: OBRA DE MULHER[11]

Ela atreve-se a criar extraordinário a partir do vulgar

Ela aproveita recortes, amostras e sobras e

talha cochas, cria cesto, tartes e famílias

O ter e o não ter desencadeiam a tensão para criar

Ela atreve-se a criar a partir do nada,

a tecer sem fio e a cantar através do silêncio

Quando a obra da mulher está pronta, ela deixa-a partir

Assim, a obra pode ter continuação sem ela.

*(Pamela Metz J. Tobin,1996)

Na obra Odisséia fica claro que antes de uma leitura sobre mitos identificamos antes de tudo, uma definição da natureza humana da mulher e do homem em condições bastante evidenciadas: um Odisseu gerador, em uma condição de aventureiro, que não se desvanece nas lutas em busca de um poderio, suas aventuras perpassa tanto a obra Odisséia como também, Ilíada. Em seguida constatamos aquilo que já é sabido: a relação do homem com os seres divinos, os seres deformados em sua condição humana/divina.

Fazemos aqui, uma conexão com as palavras de Boff quando diz que

cada um hospeda dentro de si uma águia. Sente-se portador de um projeto infinito. Quer romper os limites apertados de seu arranjo existencial. Há movimentos na política, na educação e no processo de mundialização que pretendem reduzir-nos a simples galinhas, confinadas aos limites do terreiro. Como vamos dar asas à águia, ganhar altura, integrar também a galinha e sermos heróis de nossa própria saga?[12]

Queremos, assim como Odisseu, um além do espelho que nos torne livre para efetuar um vôo rasante de águia; cansados do modelo antigo de relações que nos transforma em meras galinhas, buscamos saídas em outras faixas de freqüência. Assim, acessamos uma linha de freqüência que desdenha um amor que evite o vício de reduzir a pessoa amada a um mero objeto, um amor capaz de prescrever a capacidade de envolvimento, um amor que ainda quer brincar.

Ao trabalhar com o tema Cartografia da Mitologia Grega, podemos neste caso, definir as seguintes características para o entendimento das idéias sobre o mito: O mito é uma narrativa cujo conteúdo não se questiona, no mito a inteligibilidade é dada, O mito se contenta com o estabelecido com a ordem vigente, aceitando a realidade como ela é. No mito o próprio fenômeno da vida, não tendo explicações racionais, se torna fácil de divinizar, contentando-se com as ilusões e com as atribuições dadas aos deuses. No mito não existe uma relação entre sujeito e objeto, o homem se confunde com a natureza. O conhecimento mítico é um conhecimento acabado. O mitófico é sábio. A importância da temática está em querer ser uma resposta, partindo dos desafios que a sociedade atual nos apresenta: uma compreensão sobre o mito, subordinada pela sensibilidade humana. Para compreendermos melhor a mitologia grega é necessário fazermos referência: à filosofia, à arte, à religião e às condições sócio política da sociedade grega. Na arte, de modo mítico e fantástico, ou seja, mediante a intuição e a imaginação. As condições sócio-econômicas e políticas, que freqüentemente condicionam o nascimento de determinadas idéias e que, particularmente no mundo grego, criando as primeiras formas de liberdade institucionalizada e de democracia, que tornaram possível o nascimento da filosofia grega.

BIBLIOGRAFIA

ARANHA, M. e MARTINS, M. A consciência mítica. In:_______ . Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. (pp.20-28).

BATALHA, Wilson de Souza Campos.  O declínio dos mitos e suas origens.  São Paulo: LTR,  1995.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, Vol. III, 4.ª edição, 1992.

BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1987.

BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2002

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia grega: história de deuses e heróis. São Paulo: Ediouro, 2000.

CHALMERS, Alan F. O que é Ciência afinal? Tradução: Raul Filker. Editora Brasiliense. 1993.

CHAUÍ, Marilena. Mito e filosofia. In: Convite à filosofia.4ª ed.São Paulo: Ática,1995.(pp. 28-31)

CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Loureço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.

HOMERO. Odisseia. Lisboa. Cotovia. 2005

Jacqueline de Romilly - A Tragédia Grega. Lisboa.Ed.70

MELLO, Antônio Francisco Teixeira de. Dez cordéis num cordel só. 7. ed. Mossoró: Queima Bucha, 2006.

PESSANHA, José Américo Motta. Coleção Os Pensadores – Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999.




Autor: sebastião jacinto dos santos


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