A Deriva Do Homem No Pensamento Pascaliano



Para falarmos da antropologia pascaliana é imprescindível que abordemos o mito da queda humana. Esse tema remonta a filosofia antiga como também a patrística. Em Agostinho o mesmo mito é considerado como explicação para o cárcere atual da alma.

A concepção de que o homem, composto de corpo e alma, é decaído de um estado primeiro no qual a concupiscência não lhe era intrínseca perpassa o pensamento de diversos filósofos para citar apenas alguns: Platão, Agostinho, Tomás. Nesta linha de pensamento, o homem vivia, antes da queda, numa condição sadia. Gozava do pleno domínio sobre si e realizava-se, pois contemplava a Deus. No entanto, não pôde continuar assim e pecou.  Por causa deste pecado o homem decai de Deus. Por este fato, subtraiu-se ao domínio de Deus... (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 430), o homem sofre as implicações diretas sobre a condição atual humana. Essa condição atual humana tem dois aspectos: dificuldades antropológicas e epistemológicas; como também vive num mundo que pode ser chamado de o reino da concupiscência.

Diante deste quadro, a antropológica pascaliana, fundado num princípio teológico (o homem é um ser decaído de Deus), é, antes de tudo, uma antropologia que se pode observar, pois é passível de verificação na realidade do homem (o homem não é soberano, tem limitações e conhecimento e principalmente o mal moral). A queda é um mito que explica o que vemos no cotidiano.

Este princípio da queda a qual explica e não cria o estado atual - que Pascal trabalha, tem sua origem no pecado do homem diante do seu criador. O homem quis fazer de si causa final e objeto de delícias prescindindo-se, deste modo, do único e digno de tal status: Deus. Por essa razão o homem criatura foi precipitado a um segundo estado de natureza. Já não mais em um estado sadio como fora criado outrora, mas sim num estado no qual suas misérias lhe são visíveis, e mais, são causa de inquietude e tormento.

Precipitado num reino de concupiscência e ignorância que constitui a prova experimental de uma decadência misteriosa o homem não encontra mais seu lugar nato, com efeito assevera Pascal: é visível que o homem está perdido (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 437) Ao contrário do que possa parecer, a queda não tira nada ao homem, apenas desorganiza o homem. Não há uma falta (no sentido ontológico), mas sim uma desordem de seu ser. Desordem no sentido de não mais se reconhecer, uma vez que ele perdeu seu referencial, ou seja, Deus.

Pascal trabalha com a concepção agostiniana de queda. Para o bispo de Hipona o fato de um Deus perfeito e criador de todas as coisas criar um homem ignorante e concupiscente trás em si uma contradição. Agostinho entende que: Dieu a créé le premier homme, et en lui toute la nature humaine. Il l'a créé juste, sain, fort. Sans aucume concupiscence. Avec le libre arbitre egalement flexible au bien et au mal. 1 (PASCAL, Oeuvres Complètes,1954, p.594) 2, porém, esse homem criado por Deus não foi capaz de manter esta perfeição. Ele deve, então, ter cometido alguma falta enquanto estava neste estado sadio. Essa falta, para Agostinho foi uma transgressão da lei divina. Assim afirma Agostinho "el hombre transgredió la ley de Dios" 3 (SAN AGUSTÍN, 1984, p. 254). Essa transgressão foi, deveras, de tamanha proporção para que ele tenha merecido tal destino: o atual estado que ele se encontra, isto é, mísero e ignorante. Assim, o mito de uma queda dissolve a contradição entre um Deus bom e um homem corrompido.

Notemos que essa explicação é de cunho teológico, contudo a constatação da miséria, da decadência do homem salta-nos aos olhos toda vez que contemplamos a limitação do homem. Este fato, da queda humana é tão evidente que, além de outros filósofos, também em Platão (séc. V a.C.) há uma idéia de um castigo dos deuses aos homens. Para ele, estamos em um exílio na Terra onde temos que nos libertar de nosso corpo para assim voltarmos a nossa pátria verdadeira.

A forma literária usada na explicação da queda adâmica é um jeito de se clarificar a realidade em que vivemos. Ela é só uma forma de se explicar o que por si só já nos leva a pensar a condição humana.

Essa queda pressupõe, como dissemos, uma falta por parte do homem. Essa falta é causada pelo orgulho do homem diante de Deus. Ainda que essa queda seja um mistério o importante é nos concentrarmo-nos em sua raiz: o orgulho. A queda pascaliana é, como afirma P. Sellier, uma rebelião orgulhosa. 4 Isto porque Adão tomou seu Eu 5 como fonte de suas delicias e prazeres. Adão tentou tornar-se causa do bem de si mesmo. Ora, o que fez Descartes quando constitui o sujeito como auto-suficiente senão abrir vias para levar o homem ao orgulho? 

Embora, a primeira vista, este estado após a queda possa parecer um castigo divino pela revolta orgulhosa do homem, esta se configura única e exclusivamente como desorganização ou, nas palavras de Pascal confusão natural (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 20). Se Pascal assumisse a idéia do castigo ele cairia no calvinismo onde se afirma que todos os homens estão sendo castigados pelo pecado adâmico. Diferentemente de Calvino, Pascal não trabalha com essa idéia, de uma condição imposto de fora, mas sim, a vê como uma conseqüência interna do homem da atitude egoísta do homem. Assevera Pascal que esse estado é uma: confusão sem objetivo está é a verdadeira ordem que marcará sempre seu fim pela própria desordem (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 373).

Essa conseqüência interna dá a condição do homem após a queda, ele é grande, porém miserável ao mesmo tempo. Ele é tudo e nada concomitantemente. Assim, entramos insensivelmente na condição humana paradoxal de grandeza e miséria. Sustenta nosso autor:

Eis o estado que os homens se acham hoje. Resta-lhes algum instinto importante de felicidade de sua primeira natureza, e estão mergulhados na miséria de sua cegueira e de sua concupiscência , a qual se tornou sua segunda natureza (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag. 430)


Autor: Fábio Moraes


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