A Deriva Do Universo Na Filosofia Pascaliana



Pascal concebe, como característica essencial do universo, o duplo infinito, isto é, as grandezas de que é composto o universo podem ser aumentadas ou diminuídas infinitamente sem nunca chegar a um todo ou a um nada dessas grandezas, por isso há um infinito para mais como também um infinito para menos. Esses infinitos estão longe da condição do homem uma vez que eles não são concebidos pelo homem. Desta forma, o homem está longe, distante desses infinitos. Longe dos infinitos ele se encontra num campo intermediário entre eles (os infinitos), num campo onde nunca se fixa, o que lhe reta é um perpétuo movimento. Nesse perpétuo movimento o homem se apresenta como um ser do meio entre esses infinitos. Sendo essa sua condição, ele não pode conceber sua natureza, uma vez que, como ser do meio, não se fixa em lugar nenhum. Ele está sempre num perpétuo movimento e desta forma tudo ao mesmo tempo lhe é natural e estranho. Por isso, ele não tem lugar num universo infinito, isto é, não tem assento natural neste lugar.

O conhecimento do homem leva ao conhecimento do universo. O universo, pensado via geometria, que para o século XVII era o conhecimento mais seguro que temos, passa a ser concebido de forma infinita, o universo infinito apaga todos os vestígios de Deus presente nas criaturas. Esta falta das marcas de Deus nas criaturas torna o universo mudo. Mudo porque não há mais como o homem significar o universo como fazia os medievais, uma vez que não há mais lugares naturais. Como pode o infinito ter centro ou periferia? (PARRAZ, 2004, p. 52 apud, Aristóteles, 1926, p. 103,)

Assim, em um universo desordenado, pois lhe falta centro, qual o conhecimento que o homem pode ter deste universo? Qual é o ponto em que se apóia este universo? Há uma referência para ele?  Ora, o universo está, segundo o pensamento pascaliano, sem referência sólida pelas quais se justifique então o universo está à deriva uma vez que tais referências sólidas não lhe são presentes. Segue-se, então, a pergunta que permeará nosso trabalho: o como e o por quê da deriva do universo?

1 Análise do fragmento 693, Ilha deserta

Os termos chaves para podermos entender a antropologia pascaliana servem também para entendermos sua concepção de mundo. Cela, calabouço, prisão e Ilha Deserta, entre outro, são termos chaves para este entendimento.

Todos esses termos são importantes, mas, sobretudo, nossa reflexão se assentará no fragmento 693, onde encontraremos junto com o fragmento 72 sua visão do universo

No fragmento 693 Pascal diz

Vendo a cegueira e a miséria do homem, observando todo o universo mudo e sem luz, abandonado a si mesmo, e como que exilado neste recanto do universo, sem saber quem o pôs lá e o que veio aqui fazer, o que se tornará ao morrer, incapaz de qualquer conhecimento, eu caio em terror como um homem que tivesse sido levado dormindo para uma ilha deserta e aterrorizante, e que acordasse sem saber onde estava e sem meios de escapar (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 693)

Analisemos esse fragmento em partes.

O homem pascaliano é paradoxal, trás em si marcas de grandeza e miséria concomitantemente: Vendo a cegueira e a miséria do homem (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 693). A cegueira e a miséria, não permite ao homem ver a si mesmo e à sua volta, por isso, ele não pode conceber a totalidade do universo, nem sua origem, nem seu fim. A cegueira atemoriza o homem, pois revela, ou melhor, confirma o que ele já sabe: é nada diante do infinito. o finito se aniquila diante do infinito (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 233)

O mesmo homem que se encontra mísero, observa: observando todo (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72). Não investiga, mas contempla em silêncio ao invés de investigar com presunção. transformando sua curiosidade em admiração, preferirá contemplá-las em silêncio a investigá-las com presunção (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72). Na verdade, observa porque nada mais pode fazer diante do espetáculo do duplo infinito. No fragmento 72, Pascal nos mostra o que é o universo. O universo é um espetáculo, isto é, algo que se apresenta a alguém para admirá-lo: entre esses dois abismos do infinito ... tremerá à vista de tantas maravilhas (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72). O universo causa admiração no homem, porque ele revela ao ser humano mais do que ele pode conceber. mas se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará de conceber que a natureza de revelar (PASCAL, Pensamento, 1973, frag 72).

A observação do infinito é utilizada por Pascal como mecanismo de autoconhecimento: Sur quoi on peut apprendre à sestimer à son juste prix, et former des réflexions qui valent mieux que tout lê reste de la géométrie même 1 (PASCAL, Oeuvres Complètes, 1954, p. 591). É olhando para o que existe que o homem reconhece quem é: que o homem ... considere o que é diante do que existe (PASCAL, Pensamento, 1973, frag 72). É aqui que o homem conhece sua desproporção com relação à natureza.

O que Pascal está sustentando é que esse homem fendido, abandonado a si não tem mais cumplicidade com a natureza, ou seja, é desproporcional a ela. A natureza, tal como era concebida pela filosofia medieval fazia como que a ponte entre o homem e Deus, posto que ela era a via de acesso da razão a Deus. Havia, desta forma, uma cumplicidade entre o homem, a natureza e Deus, uma vez que por meio dela o homem podia chegar ao conhecimento de Deus e, por conseguinte, ao conhecimento de si próprio. Mas, quebrada essa relação (pela queda) do homem com a natureza, isto é, marcada a desproporção entre ambos, a natureza deixa de ser cúmplice do homem, ou em outras palavras, a natureza não revela mais Deus ao homem, muito menos revela-lhe sua própria imagem, isto é, sua essência.

O homem é um ser que não tem relação com a natureza: conhecemos a existência do infinito e ignoramos a sua natureza, porque tem extensão como nós, mas não tem limite como nós (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 233). É essa falta de relação, causada pela queda, que torna o homem cindido, estranho à natureza. Esta estranheza, manifestada na desproporção do homem com relação à natureza, marca a quebra do elo entre o homem e Deus. Por isso que o universo de Pascal é mudo.

Em toda filosofia medieval a concepção de que Deus falava por meio da natureza era muito forte. As marcas do Criador estavam impregnadas em toda parte. Com a aplicação da geometria euclidiana no conhecimento do universo, este, o universo, passa a ser concebido de forma infinita. Com a infinitude do universo as cosias não carregam mais as marcas de Deus, os vestigias Dei, pois os espaços sagrados, privilegiados, esvaem-se no cosmo infinito. No infinito não há referência, daí a negação da possibilidade de haver direções, lugares naturais como afirmava Aristóteles. O cosmos aristotélico cai por terra em meio a infinitude (via matemática, do cosmo na Idade Moderna). Há a dessacralização do mundo. A geometria ausenta Deus do mundo, em outras palavras, o mundo perde Deus. E esse Deus perdido 2, ou mesmo, a perda da figura e do lugar de Deus na ordem do cosmos faz com que o universo seja lançado ao léu, ou seja, lançado à deriva. O infinito do universo revela o rompimento entre Deus e o mundo, o mundo e o homem.

Outrora podia-se fazer uma espécie de hermenêutica do universo, dado o fato de estarmos em uma posição privilegiada, a saber, o centro do universo, daí poderíamos inferir o que estava acima e abaixo; do lado direito do lado esquerdo etc. Partindo da afirmação, que o homem estava no centro do universo, era possível a ele classificar as outras coisas a partir de seus lugares naturais, suas direções. Porém, com a infinitude do universo isso se torna impossível, pois se perde toda referência. A idéia de infinitude implica que todos os lugares são equivalentes, uma vez que perde-se os lugares privilegiados. Não há lugares naturais. No universo infinito os espaços são isótropos e homogêneos.

O universo que falava 3 outrora aos homens, pois havia em todas as coisas os vestígios de Deus, torna-se mudo. Não há como afirmar mais nada acerca do mundo, senão sua infinitude. E isso é que mais causa temor ao homem, é insuportável a ele: o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 206). Esse pavor supera em magnitude a transferência de centro operada por Copérnico, uma vez que a mudança de centro do mundo não implica necessariamente na infinitude, mas ao homem acarreta a perda do seu lugar privilegiado.

Diz Pascal: sem luz natural, abandonado a si mesmo (Pensamentos, 1973, frag 693), o homem encontra-se no mundo numa total falta de sentido, garantia e paz. Ele não tem uma luz no sentido de uma luz natural como havia em Descartes que revelava a ele a verdade acerca de todas as cosias existentes no universo. O homem está no universo, segundo Pascal, abandonado e sem luz, por isso, não pode tratar racionalmente de uma criação, visto que conceber o ato criador no pensamento de Pascal é da ordem de uma revelação sobre natural e não racional.

Sem poder encontrar um fundamento para o seu existir, posto não poder compreender Deus, nem sua criação, o homem está abandonado a si. Neste abandono ele só pode encontrar-se em uma profunda inquietude. num mundo que o relembra sempre de sua verdadeira existência, ou seja, estar como que perdido neste recanto do universo (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 693).

Em Platão tínhamos o corpo como cárcere do homem, em Pascal é o universo o cárcere da alma: imagine-se um homem na prisão, não sabendo se sua sentença ... (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 200). O homem está perdido. A mais notável característica de quem está perdido é que todas as direções se equivalem. Quem está perdido está sem referência, e mais ainda, a pessoa perdida sente-se estranha e num lugar estranho. Por isso que o homem, diante da nova cosmologia ou nova ciência do cosmo, só pode estar perdido, sem referência, com sentimento de estranheza com relação ao mundo; e este sentimento é conseqüência de se afirmar a infinitude do universo, pois o ser cindido percebe sua desproporção em relação ao universo e se pergunta: o que é o finito diante do infinito? (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72).


Autor: Fábio Moraes


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