Amores Tardios - Paixão de Outono



Nem se lembraria do sonho se não houvesse acordado. Era numa planície, uma vara de porcos descia em carreira desabalada, ela teve medo de ser atropelada. Veio Milton, o filho, e a salvou. Ou era o padeiro? Que sonho confuso! Lembrava-se dos porcos ameaçadores, do filho aparecendo e a tirando de lá, mas quem a deixara a salvo, no alto, numa praia com coqueiros, que ao mesmo tempo era seu quarto, era o seu Inácio, o dono da padaria! E o pior era que, no sonho, estava somente de calcinha.

Passou diante da padaria com passos firmes. De salto alto e com aquele vestido. Treinara bastante. Houve hora em que se sentira ridícula, muitas vezes tirara os sapatos, jogara-os longe, mas os calçara outra vez. Tirara e pusera o vestido mil vezes, até que se sentira bem.

Vestida assim fora à igreja. Mas não entrara, não assistira à missa, com vergonha de ser vista por suas amigas.

Havia muitos anos que não faltava à missa. Havia muitos anos que não sentia aquilo que sentia. O que sentia? Não sabia. Subiu num ônibus, parou no shopping, viu vitrines, entrou em lojas. Há quanto tempo não fazia isto! Comprou roupas e sapatos.

No outro dia se recriminou por estar gastando em futilidades. E o que fez? Gastou o dia inteiro procurando um técnico que lhe consertasse o velho toca-discos. Tarefa difícil, quase ninguém mais sabia mexer com essas antiguidades. Ela desejava ouvir antigos discos, long-plays riscados, vozes antigas, ritmos antigos, tudo para relembrar seus tempos de moça.

Tempos de moça! Ah, como fora bonita!

Tempos de moça! Daquelas gavetas há tanto tempo fechadas, foram saindo fotos antigas, foram saindo recordações, canções, bailes, os tempos de estudantes, os namoricos...

Tempos de moça! Ah, como fora bonita! Agora, olhando-se no espelho, custava encontrar um ângulo que a agradasse. Deixou o espelho, cruel, e foi procurar o cartão do técnico que prometera vir consertar seu velho toca-discos. Porém, mais que se ocupar com a recuperação de velhos aparelhos, o que mais ocupava seus pensamentos era Inácio, o padeiro. Até onde iria sua compaixão por tê-lo visto chorando?

Paixão de Outono - Capítulo IV

Haveria festa na igreja. Festa beneficente para arrecadar fundos para terminar a construção da Capela de São José Operário, no bairro das Laranjeiras, lugar onde ela fora duas vezes, como voluntária, e não gostaria de voltar, um lugar de gente encardida, barulhenta e de olhar entre irônico e pedinte, que a incomodava, Gente perigosa!

A festa da igreja matriz: barraquinhas, quentão, bingo, leilões, tiro ao alvo. Yolanda sempre ia, mais para ajudar do que para se divertir. Ajudava no quiosque dos pastéis ou na casinha do coelho.

Ainda bem que não lhe sobrara fritar pastéis, cabia-lhe servir e o fazia com dedicação, apesar das dores nas pernas. Mas se distraia ouvindo as músicas que vinham da enorme barraca onde casais dançavam. E se distraia não pensando há quanto tempo vivia sozinha, não pensando no cansaço, não pensando em nada a não ser o quanto era bom estar ali tendo gente por companhia e convicta de que servia a Deus. Mas estava cansada, muito cansada. Cansada das amigas, muitas de mais idade que ela, que trabalhavam sorridentes e tagarelas. Olhava-as como estranhas: como poderiam parecer, ou fingir, tão felizes. Quase todas viúvas ou sozinhas! Foi arrancada deste devaneio por uma voz irônica que pedia:

"Dois pastel e uma cerveja!"

Voltou-se, já ruborizada. Era Inácio. Mas como? Nunca o vira em festas da igreja. Tentando sorrir, serviu os pastéis, a cerveja, e ao entregar-lhe o pratinho, com mãos trêmulas, deixou um pastel cair. Ele riu, bonachão, bebeu a cerveja, nem tocou nos pastéis, e ela ali, plantada, as pernas tremendo, surda aos pedidos de uma menina que sacudia as fichas e pedia algo que dona Yolanda nem sabia o que era. Uma outra mulher atendeu a menina, mas mesmo atordoada Yolanda notou no olhar da outra um quê de maldosa curiosidade. Um menino mirradinho e escurinho puxou a camisa de Inácio e pediu: "doutor me dá..." Ele entregou os pastéis pro menino, sem deixar de olhá-la, sorrindo sempre. E ele, de imprevisto, a chamou para dançar, como se isto fosse a coisa mais natural do mundo.

- Há quanto tempo não danço! – confessou Yolanda, as pernas geléia pura.

- Vem! – animou ele, estendendo-lhe a mão e com aquele sorriso que degelava até fornalhas.

"Mas como? Não estou arrumada!", ela respondeu, sem pensar, mas sabendo que iria dançar com ele. Nem o calor do tacho de fritar pastéis a deixaria assim tão acalorada. "Nem os fogos do Inferno!", poderia ter pensado se é que conseguia pensar. Tentou uma desculpa:

"Estou de o avental e..."

"Tira o avental e vem dançar"

Da barraquinha de pastéis até o salão de danças, foi menos que um pulo. Nem viu e já estava dançando com ele. Boba, não sabia o que falar. Inácio ia e vinha, levando-a. Dançava e a fazia dançar. E ela ia pensando: "Ele é mais novo que eu, e é claro, deve ser casado e está aqui traindo a mulher!" Sabia tão pouco a respeito dele, a idade, qual religião, se era mesmo casado, se tinha filhos. Abobalhada e nervosa acabou sendo muito indiscreta, perguntando demais e ouvindo de menos.

De tudo que ele lhe respondia guardava muito pouco, só guardou uma resposta que lhe doeu: Ele tinha 50 anos. "Apenas cinqüenta anos! É, ele é mais novo que eu!", constatou, pesarosa. Entretanto, mais fortes que seus pensamentos eram os requebros que ele a obrigava a fazer, aos quais ela se submetia em harmoniosa entrega. Pouco a pouco, sem se dar conta, mas envolvida, ela se transformava e, animada e sorridente, comandada por ele, não fizeram feio mesmo nos ritmos modernos: até outros casais paravam de dançar para aprecia-los. As amigas não sabiam que ela dançava tão bem! Nem ela! Certo que, entre suas conhecidas ouve quem comentasse, escandalizada, que Yolanda estava exagerando.

E quando vieram os boleros, Yolanda nem se reconhecia, ou sim, se reconhecia: era a Yolanda dos vinte anos! Sentir outra vez o corpo de um homem colado ao dela a perturbou, mas não se esquivou. E dançaram, colados, calados, apenas olhos nos olhos. E que linguagem melhor do que esta? Teve medo de que a linguagem dos olhos confessasse tudo que ia sentindo. Mas, o que ia sentindo? Não sabia.

Quase ficou tonta e enlouquecida quando tocaram um tango! Tonta até que estava mesmo: bebera meio copo de quentão e provara um tiquinho de uma batida de pêssego que uma ex-aluna lhe trouxera. E quando desencavaram Estúpido Cupido, na voz alegre de Celly Campello, rodopiaram com o ânimo de adolescente! E depois, quando tocaram "La Paloma" e "Jura-me", deitou o rosto no ombro dele. Nem se reconhecia. Nem pensava nisto: tinha vinte anos!

Sempre chega a hora de recolher: recolher as mesas, as cadeiras, limpar a sujeira, e a orquestra vai embora. Há a hora da chegada, há o instante da partida. Se se dança à meia-luz, momento em que tudo é possível, quando o sonho acaba, acedem-se todas as luzes e as rugas e tristezas ressurgem. Hora de ir embora, ir com as velhas amigas. Desacompanhadas. Só os velhos anjos as velavam.

Onivaldo Paiva: [email protected]


Autor: Onivaldo Paiva


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