Lapsos



Sim, me casei com a mais bela mulher que jaz sobre o Globo. Casei-me com uma jóia rara, com uma adorável donzela de olhos claros e de corpo vislumbrante. Todavia não me sinto feliz. Todo este bálsamo, toda esta formosura me provoca frêmito. Ela diz sempre que me ama, abraça-me com as suas mãos tão delgadas e suaves, beija-me com os seus lábios cáusticos e apetitosos; no entanto, ela não me enternece. Às vezes ela apóia suavemente a sua cabecinha em meu ombro e sussurra com o seu ar cálido coisas de amor. E naquele estado de frenesi ela não me enternece.

Eu fico soturno e indeciso e ela me aprecia com toda a sua alma e doçura...

Diga-me, por que ela não mais me enternece, caro psicanalista? Aclarara-me, doutor.

Então ela sorri lubricamente, causando-me nada mais que enternecimento; porém, nada duradouro. Num estado frenético ela me guia à paixão carnal; todavia eu não me enterneço.

Eu a beijo, a mais linda donzela, a mais cáustica das mulheres, e ela não me comove. Eu choro, ela me guia ao escárnio, fazendo-me carícias e contando-me coisas anedóticas.

Não sei o que me há. Não posso segredar orgulhosas palavras de amor e consolidão. Destarte ela me faz suspirar, mas não me enternece. Porque a imagino como uma meretriz. Não, esta fascinante princesa não merece tal importância! Ela é meiga e jovial, é bela e preciosa.

O conheci há muito. Ele não era este ser medonho, ele não me sorria venenosamente, e eu mo dizia, senhor dos céus, grato-me. Contudo, dias depois este mesmo homem me disse que não pensava que eu fosse tão estúpido e asno. É verdade, ele me sorriu fatídico e venenosamente. Enganara-me?, articulei, e ele me confirmou a suspeita.

Ela, certo dia, chovendo-nos torrencialmente, abraçou-me atemorizada. O assaltante levara-me a sua vida. Ela chorou aos meus ombros, expirada, e foi neste momento que eu me senti enternecido.

Eu a avistei sobre tal firmamento e ela me conduzia a esterilidade. Porém, eu a amava e ela me correspondia veementemente. Até que lha chegou a hora, e ela não mais me retribuiu.

Canta-me, doutor. Guia-me à lucidez de espírito! Não emudeça, psicanalista. Preciso da tua ressalva!Mata-me! Viva-me! Faça carpir-me! Vamos, vamos. O que queres me dizer? O que me faz repousar sobre o seu divã? Atenta-me! Logo!

Não me esclareceu, caro psicanalista. Quer-me louco? Não o bastam os milhares de alienados que gravitam sobre o Globo? Não te preencha de tanta taciturnidade, homem! Vamos, vamos, diga-me, segreda-me!

Porque ela se foi, a minha mãe, aquela mulher tão batalhadora, tão vitoriosa! E certo dia, estado eu a lagrimar à custa do amor carnal, ela me abraçou com afeição e disse-me: "Corra-lha!", e eu me carpi. Contudo amava aquela mulher, pois ela me havia dito certa vez que eu era o homem da sua vida e que casaria comigo se eu a desposasse. Desposei-nos, pois.

E tu, psicanalista, ficarás nessa taciturnidade? Não dirás de que insanidade eu sofro? Não dirás à luz da consistência crível o que me faz sanar sobre o seu divã?

Então assim fique, porque me vou... Porque sofro de psicose elíptica. E este reflexo tende a ir-se também. És tu o psicanalista, homem...

À voz do psicanalista: "Não estás pirado, senhor. Estás sóbrio e feliz. Não vês que neste espelho só se assenta a tua imagem real, vital, sanada? Deixa-te disso, homem, caminha-te!".

À voz do paciente: "Obrigado. Mas, por obséquio, diga-me em bom som que não sofro de nenhuma psicose elíptica".

À voz do psicanalista: "Pois te digo: não sofreste de nenhum destes males. És meio tosco, só isso!".

À voz do paciente: "Grato. Grato por essas palavras tão singelas".

À voz do psicanalista: "Ah, sim, tens dupla personalidade, caro senhor; porém não é grave, basta apenas que busques conciliar esses dois seres".

À voz do paciente outro: "Que tal?".

À voz do paciente primeiro: "Não se preocupe, estaremos unidos em uníssono!".

À voz do psicanalista: "Dá-me orgulho, senhores!".

À voz uníssona: "Grato-me! Ora, vamo-nos!".

Não posso mais carpir-me, sou feliz. Aquela mulher não me enternecia. Pois eu não a poderia representar. Ora, devemo-nos transigir?

Neste ínterim, não são lapsos, são meras transigências.



Ronyvaldo Barros dos Santos


Autor: Ronyvaldo Barros dos Santos


Artigos Relacionados


Como Amar? Como Ter Paz?

A Viagem

Sindicato Dos Psicanalistas Do Estado De São Paulo - Dia Do Psicanalista 6 De Maio

Problema De Mulher, Que Devia Ser Problema TambÉm De Homem.

OrquÍdea

Para AlguÉm Que EstÁ SÓ

Última Poesia De Uma Mulher Apaixonada...