TENTÁCULOS DE PERNAS - DEPENDÊNCIA PSICOSSOMÁTICA



Mandei uma carta a um amigo, talvez ele se lembrasse de mim; passaram dias, meses; já perdi a esperança de obter respostas. Mas quiçá ele lembre de nossa já tão velha amizade. Dizem que só a mulher lembra, depois de quinze anos talvez Carmélia seja uma sujeira em sua mente.

Os anos se esvaíram desde então, matando um gigante de paixão. Outro dia passei frente à escola Ricardo Augusto Veloso, jazia igual, até a diretora não houvera mudado; Dona Zunara tentou de tudo para eu voltar, mas não havia para mim clima. Olhei a rua tão limpa como dantes, só que mais chorominguenta, certamente eflúvios saudosistas insistiam em rebentar, não bastando o esforço que fiz para conter os murmúrios e as lágrimas.

Quanto tempo faz desde o último dia de aula? Não sei. Embora tenha contado o último dia como o princípio do que sou. E se sou resultado do último dia, esse espaçoso tempo que precedeu o último, é um vão sem sentido, em que estão enterrados bagulhos sem importância.

Acho impressionante como as coisas tornam-se obsoletas e sem valia. Lembro-me do grande filósofo, “penso, logo existo”. Que pensar é este? Que existência é esta? Se tudo o que pensamos e vivenciamos é fatiga e medo. Fatiga de ler e medo do burguês de giolhos de Mário, que atormenta a alma do pobre mesmo ausente. Será se sou ridícula e não tenho compreendido o poeta, certamente não! Mas já diziam meus avós “o que é do homem o bicho não come”. Mas o que era meu o bicho comeu, a família sonhada, a profissão almejada, minhas carnes, minha alma, sobraram os ossos secos de Ezequiel trinta e sete, até meu ursinho, presente de onze anos... como o amava .

As coisas estão num tom mais lúgubres, não porque quero vê-las assim, mas em virtude de assim procederem às coisas. O pensador clássico tem razão, o raciocínio é uma conseqüência natural da existência de quem resolve em meio às bagatelas famigeradas de Luiz Correia se dá o luxo de pensar. Ora, não penso para existir, mas existo para pensar e, depois do trauma vivido, discordo impromptamente do ditado de vovô, o bicho sempre come o que é do homem. Veja como Rita Baiana, desculpe-me Aluísio, mas Machado disse que temos a necessidade de falar da vida alheia, não sou exceção, comeu Jerônimo na frente do dono, a portuguesa Piedade. E quase sempre é assim. O bicho come. Como certamente diz o Ney Mato Grosso “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. E agora José, se você dançasse a valsa vienense proposta pelo teu autor, quem sabe padeceria menos. Mas não, ainda insiste em não dançar e em não morrer. E agora José? Se você escapulir o bicho vai correr atrás e se ficar vai ser devorado. Não há saída. No Bruxo da poesia, o anjo é realmente torto, tão torto quanto à balança da justiça humana, que não passa de sórdida convenção elitista para os burgueses de giolhos, que possuem olhos maiores que a barriga.

Tenho certeza que a vida é o mais amplo labirinto de Sá Carneiro. Ninguém se encontra, nem se amam, antes se toleram por uma covarde convenção social impregnada de interesses. Eu sei que o feio é bonito por dentro; não venham me atormentar, jamais o bonito o é por dentro. Tenho que resumir o que falo, pois mais coisa gostaria de anunciar. Realmente o desorganizado é organizado e o feio é belo.

Sou revoltada; quem firmou que a insanidade é feia e o sano é belo. Somente uma plêiade de cafajestes e dominadores sanguessugas é capaz de disseminar uma coisa dessas. “Morro e não vejo tudo” diz o provérbio, de todas que não verei gostaria de contemplar uma, mesmo que para isso fosse privada de ver o que vi. Gostaria que a cambada de giolhos construísse manicômios para as mentes, somente assim todos estaríamos comendo o mesmo pão e ganhando o mesmo conforto. Morrerei e não veria a igualdade prevalecer. Na verdade esta palavra não passa de figura de retórica, humanamente, ela faz parte de nossas mais benfazejas inocentes abstrações. Revolução Francesa, 1878, grande pregação, apoio popular, belos discursos, ações concatenadas, gente de fé, tempo engajado, situações propícias e ao fim decepção. O mundo passa fome, destrói sua fauna, sua flora, e a si mesmo. Enquanto isso, os belos discursos, apoio popular, ações concatenadas etc, etc se espalham pelos computados e mentes auspiciosas pela concretização da incorpórea igualdade. O Mundo não é um céu plácido e ajustado, é um caldeirão de inferno a esperar hora a hora o apogeu das chamas da injustiça.

E agora, meus avós, como sair dessa dispersão? ... Meus avós, como os queria bem. Vovó Joana, tão boazinha, sempre fazia doces para nós. O seu sofá era nosso trampolim; no dia em que o rasgamos, ela apenas sorriu. Além de um anjo, também burra. Ai, Mário, se a tua era tão burra quanto uma porta, este meu anjo como o pensamento dessa tua porta. Vovô Milton, além de bom, burro, besta – asno de mandado da família. Que pena! Tudo é transitório. Estão a sete palmos descansando, acho.

No entanto com eles arquitetei durante o vento de minha existência dois sonhos. O primeiro vocês já tiveram um vislumbre. Já pensaram se fossem construídos manicômios para as mentes; todos os homens estariam em constante tratamento, então não haveria distinção entre o insano e o sano, seríamos clinicamente iguais. Todos somos loucos de nós mesmos e de nosso jeito. Se minha loucura é de existir para pensar, a do filósofo era apenas a conclusão da existência e ele era tão louco quanto eu. Tudo é uma questão de trocadilho e de ponto de vista, aliás, as intencionadas opiniões e políticas são provas das mais comedidas loucuras.

Ora o grande conflito da sociedade é que ela é incompetente nas suas relações sociológicas, então ela pega os competentes, a minoria, e os taxa de esdrúxulos, de loucos. Essa palavra é um preconceito sem adversário, as pessoas não entendem que a loucura não é confusão mental, mas sim ser gente taxada de normal. Querem ver a situação justa? Façam hospícios para as mentes, então os princípios da Revolução Francesa, igualdade, fraternidade e liberdade, estarão em voga.

Meus solilóquios tripudiavam-me a tal ponto de arrombar os mais recônditos e desvarios pensamentos. Pensava em tudo. Estava numa retrospectiva e numa sessão de desejos infernais, coisa que qualquer louco normal não já tenha experimentado. Estava eu nas asas de anjo quando, de repente, bateram na porta. Era um cara todo de branco com uma informação:

– O doutor senador Cipaúba Filho quer falar com você amanhã, à tarde.

Gritei de alegria. Sabia que meu amigo não me postergaria, depois de tanta amizade e devaneio. Tinha que me apressar para falar-lhe. Chamei um criado e saí para o banho. Dentro de uma hora estava pronta. Sei que me arrumei apressada, mas minha ansiedade era um suplício de marmorear vidas.

O tempo pachorrentamente passou, como é de costume acontecer nessas situações a rotação da Terra que dura vinte e três horas, cinqüenta e seis minutos e quatro segundos dobra, triplica, quadruplica (a multiplicação depende exclusivamente da ansiosidade posta na situação enfrentada).

Tarde do dia seguinte. Ele chegou. Estava mais forte que a última vez que o vi. A barriga havia crescido demais, estava mais rico e arrogante. Ele se sentou numa cadeira próxima da janela e dispersamente falou coisas que não esperava ouvir em início de conversa.

– Carmélia, Vejo o mundo lá fora, mas não consigo me ver fora dele.

– E você já tentou? Disse ao vê-lo triste.

– Como assim?

– Você sabe né? Um tiro na boca resolve tudo. Isso é verdadeira evasão.

– Só pode ser mesmo – Resmungou baixinho – Você me chamou aqui para me assassinar?

– Não! Não foi isso que quis dizer. Só pensei no que poderia ser a solução de seu problema.

– Me poupe. Sou um homem ocupado. Disse levantando a cabeça arrogantemente.

– Espere, espere. Tenho algo importante a lhe falar. Mas antes de tudo permita-me começar por minha própria vida. Era dezembro de 1992. A noite grande. A lua lindamente redonda e nuvens leves transpiravam paixão. Sabia que era a noite que havia sonhado. Como toda moça acreditava encontrar um grande amor, que me respeitasse e me fizesse feliz. Só faltavam cinco dias para o início das aulas e eu estava no local certo.

Era a festa mais divulgada dos últimos dias; estávamos bem empolgadas; a inauguração do clube no Brejinho de São Francisco, lugar a setenta quilômetros da cidade. Chegando havia muita gente divertida, com exceção do chulé de desde a primeira série, o Aníbal Soares, além de feio e acanhado, era chato, não porque falasse, pois não falava mesmo, mas pela presença asquerosa de adolescente que passa dois dias sem tomar banho. E como era o fim daquelas férias, eu e os demais sabiam que devíamos aproveitar todos os instantes, até mesmo o grude.

Meus olhos meninos nunca haviam visto uma chusma tão ousada e frenética, parecia que a liberdade morava ali. Para mim tudo era lindo, não haviam me dado espaço, até aquele momento, para alavancar os desejos mais promíscuos que imaginava não tê-los. Senti os pêlos de minha derme eriçarem-se contagiados pelos pensamentos. Meus responsáveis criaram meu mundo, puseram-me numa redoma, a fim de olharem para mim como um bichinho indefeso e formoso, um verdadeiro “benzadeus”. Para eles eu era incapaz de enfrentar o mundo além do meu mundo, por isso armaram um circo em que eu era o palhaço principal, logo o picadeiro só brilhava quando me anunciavam. Sempre lembravam apocalipticamente a mim sobre o ocorrido com a tribo Tremembé que por aqui existia; ela tinha o seu mundo, virgem, selvagem e inocente, assim como eu. Daí passei a me sentia vítima em minha própria casa. Se os indígenas tivessem sido mais fortes, talvez me deixassem andar sozinha. Mas por enquanto eu era apenas recôndito e exuberante lugar para se admirar.

Lembro que vieram uns estrangeiros, faz tempo, mas lembro, eles me admiraram demais, os meus me esconderam na casa do vizinho, recebi uma proteção tola e sem sentido; peremptório não deixava receber elogios de estranhos, temiam que fosse raptada por eles. Sei que é difícil se acostumar com mudanças, pelo menos até termos certeza de que elas não mexerão no nosso pão e conforto. Era uma menina alva como as areias do Delta de Parnaíba e suspirava a liberdade dessas areias, que percorre por caminhos totalmente novos. Até aquele momento não havia compreendido o que era liberdade, tinha chance exclusiva de degustá-la da mesma forma que as demais pessoas daquela festa.

No lar eu continuava presa. Dentro de meu peito eu gritava, talvez não soubesse que o grito mudo é o protesto do espírito contra a injustiça que puseram em nós.

Esse foi o tempo dos meus porquês. Descartes diziam que o homem já nasce com o conhecimento, enquanto que os behavioristas dizem que somos tábuas rasas. Luta demente de pensadores, nunca se sabe ao certo com quem está a razão, mas certeza é que pela opinião se conhece o alienado, afinal de contas somos aliens vindos de nosso mundo estranho para o estranho mundo dos outros, eis o problema do tráfico de drogas, do assassinado, do aborto, da saúde nacional, da amizade, da família em fim do mundo. Por isso tudo, acredito que o melhor mesmo é que cada psicopata fique no seu galho da grande árvore social.

Mas o importante é que eu estava ali. A única chatice é que o vovô Milton havia sido enviado para me conduzir à festa. Isso era ruim, o bom é que ele ficou lá fora. Antes de entrarmos disse resmungando:

– A música está muito alta é... Vou ficar aqui.

Adorei a decisão dele. Estava comigo a Paula e sua prima, netas da temida diretora do Pinheiro Machado, Dona Teresinha, mas no fundo a gente sabia que ela só queria nosso bem. Uma superdotada. Sabia matemática, química, biologia, português, fazia programas de computação, falava inglês, e gostava de arqueologia. Aquela sempre emperiquitada, nela havia fogo na roupa. Estávamos certas de que formávamos o trio perfeito. A pimenta, o crânio e a inocente. Embora fôssemos amigas, era nossa primeira festa juntas, portanto não sabíamos o que ia acontecer.

Os músicos passaram para o espaço romântico, tocavam à Fabio Junior. Repentinamente, um clima tomou conta de nós mesmas, sem querermos. O garçom trouxe-nos um uísque, o estranho é que não havíamos pedido nada.

– Aos cumprimentos dos rapazes que estão naquela mesa – Disse amigável o garçom.

Paula e eu não ouvimos nada, o som da música estava muito alto, mas foi isso o que a afirmou. Sorte nossa que além de tudo nossa amiga fazia leitura de lábios.

Olhamos em direção à que o garçom nos disse e lá estavam, quatro rapazes loiros sorrindo. Sorrimos também.

Eu nunca havia bebido, era casta demais ara isso, não gostava porque não contribuía em nada para o sucesso intelectual, já Paula não desperdiçava uma só gota. Por fim ela me convenceu. Tomei o primeiro copo. Aquilo foi horrível, jurei, logo após a bebida, sair rasgando minha garganta, para mim mesma, nunca mais beber, senti que minhas orelhas esquentaram; todavia aprendi que não se deve fazer promessa quando você não quer cumpri-la.

A lua tão redonda, a noite tão mística, o som tão agradável e minha vida inocente saindo, à percepção Quintana, duma caverna escura ao ver a primeira vez os raios solares. O céu não estava marmóreo como costumava enxergar, na verdade uma amplidão azul tocava o divino eu me senti inteiramente regalada.

Não me dei por conta. Já havia tomado quatro doses de uísque e estávamos na nossa primeira garrafa de cerveja. Letice é que não se deixou levar por aquilo, mas eu, inocente como um virgem sifon, recebia toda aquela merda em meu estômago. Mas vi quando garrafas eram jogadas para todos os lados, ouvi longes gritos estridentes, parecia estar anestesiada. Muita correria. As pessoas se atropelavam em direção à porta de saída. Quando dei por mim, estávamos, eu e Paula dentro de um carro, no banco de trás, nas pernas dos garotos que nos ofertaram a bebida.

Levaram-nos para uma casa na Praia do Coqueiro. Dois levaram a Paula para um quarto, depois só ouvia palavrões e gritos da amiga.

Um me deitou violentamente, enquanto o outro se despia. Antes dele se aproximar, o telhado da casa girava para mim. Apaguei.

Não sei a hora que despertei, mas senti dores nas pernas, nos braços e no rosto, havia marcar de cinturão em todo meu corpo; um alto ardor me consumia, o sol era extenuante. Abri os olhos. Estávamos as duas, na praia, molhadas pela insistência das ondas. Fiz força para me erguer, não consegui, tentei a segunda vez e com muito esforço pus-me sentada. Paula sentou-se também. Passamos a nos olhar amarguradas. Meu rosto estava inchado, minha boca ferida e meu cabelo picotado até o pescoço. Paula não estava tão diferente, na verdade, ainda hoje acho que ela apanhou mais do que eu. Ela gritou e passou a chorar, não me contive rompeu em mim uma aflição delirante. Anoiteci inocente, amanheci covardemente deflorada. Não era isso que houvera planejado em meus pueris pensamentos de quem desejava provar livre-arbítrio.

Naquele momento buscamos a força que não tínhamos. Levantamos; uma vergonha indescritível se apoderou de mim. Olhei para o sol talvez fizesse uns trinta e oito graus, avistei o mar sorumbaticamente infinito como minha consternação, então nesse crisol notei a existência de uma porta embora monótona, era minha única. Recobrei a memória, passei a chorar inconsolavelmente, meus avós diziam que o caminho do suicida é para baixo, mas o do crente é para cima, agora que estava embaixo queria subir, logo conheci a necessidade de entrar no refúgio que haviam criado para mim, aquele a quem a pouco desprezava ao me sentir presa. Talvez eu houvesse julgado mal aqueles que sempre me protegeram, eles já sabiam, de antemão, que eu não era capaz de enfrentar mundos estranhos, sem minha derrota.

Paula achou melhor irmos à casa de sua avó, quando dona Carlota nos viu a pobre velha se desesperou.

- Valha-me Deus, o que aconteceu Paulinha, minha filha?

Foi uma pergunta sem resposta verbal. Abraçaram-se, vó e neta, num choro estridente. Não era para menos, estávamos sujas, suadas, cansadas, com lesões por todo o corpo.

Já havia passados três longos e vergonhosos dias e ainda estava sofrendo ânsias de vômito. Meus pais não me aceitaram mais, aliás, quando souberam do ocorrido, apesar de papai ter procurado inutilmente os rapazes para se vingar, disse que não tinha mais filha; eu era a única mulher entre seis filhos; agora compreendo que minha segurança virginal era para minha família uma questão de honra.

Meu pai só soube pela boca de dona Carlota, porque está foi em casa e conversou com meu pai. Ela me disse que ele estava furioso. A mamãe passava o dia inteiro chorando, enquanto ele ficava emburrado. Talvez mamãe quisesse a minha volta, mas quem já estava sem coragem era eu. Não tinha mais força para ser a filha de meu pai.

Ainda bem que dona Carlota me aceitou sob o seu teto. Só estava lamentando que a tríade estivesse por um fio. Paula poucas vezes vinha me visitar, não porque preferisse assim, mas por causa de uma doença inesperada que sobreviera a sua mãe. Enquanto a Letice estava mais preocupada com seus estudos, veio uma vez me ver, mas já não era a mesma pessoa. Quanto a mim, passava a maioria do tempo fazendo tricô com dona Carlota, ela dizia que essa atividade era para toda moça, pois segundo ela os homens admiravam mulheres que eram hábeis com tecido. Não acreditava muito no que ela dizia, porém não queria deixá-la constrangida.

O Aníbal, cara de anjo derretida, não desgrudava do peitoril da minha mais nova morada. A dona Carlota, alcoviteira nata, é que dizia que ele era um bom rapaz. Ela só esquecia de me dizer que também era horrível, pobre e sem futuro. O desgraçado passava todo o tempo sentado no peitoril balançando os pés, era um perfeito idiota. E sua presença me dava nojo.

Ainda bem que já havia me recuperado. Estava me alimentando direito e meu rosto havia desinchado. Acostumei-me com a mesmice dos dias invólucros. O levantar, o café, o tricô, o almoço, o tricô, o janta e o dormir era minha profissão costumeira. Não acrescentava nem retirava mais nada deste rito. A escola, abandonei.

Sentado no peitoril, um rapagão gritou:

- Vovó!

Olhei vinha dona Teresinha com um garoto. Francisco era o neto preferido de dona Carlota que havia chegado de Recife. Ele havia saído de nossa cidade ainda pequeno e como a empresa em que trabalhava resolveu ter um ponto instalado aqui, ele pediu transferência. A carcinicultura era uma fonte de grandes lucros econômicos. Ele cuidava das piscinas de camarão. Era graduado em biologia pela universidade federal de Recife. Foi só o que consegui saber dele durante os primeiros dias. Eu tentei durante esses primeiros dias dizerem com atos que não me importava com sua máscula presença. Tentativa inútil.

Sempre fora bobinha, ainda mais diante de jovens musculosos. Mas o meu ódio ao sexo oposto não havia passado por completo. Não seria um conquistador que mudaria meu ódio, pelo menos dessa vez não. A raiva para mim era o que me restava de honra, caso a perdesse estaria liquidada.

A primeira semana foi uma luta renhida. À noite rolava impacientemente. Esmurrava o travesseiro. Pensava. Iludia-me. Voltava ao siso. Descia ao vale das delícias. Nesse meu duelo, não sabia quando estava vencendo ou perdendo, só sei que sofria muito. Quando tudo em silêncio, escutava quando ele ia ao banheiro, meu desesperado interrogatório interior se agitava. O que ele estava fazendo àquela hora? Será se estava sem dormir por minha presença? É talvez sim, eu não deixava de ser uma linda menina. O certo era que essa e outras perguntas tornaram-se triviais em minha mente.

Passei a lamentar a localização de meu quarto. Ficava do lado do quarto em que ele dormia. Como se não bastasse a parede que separava o meu quarto do dele não havia sido terminado, faltava um metro para atingir o topo da casa. Isso me deixava profundamente atormentada. Tinha vontade de saltar a parede. Que noites!

O sofrimento estava me esgotando. Mas numa tarde de domingo, ele me convidou para ir a Praia do Arrombado. Estava deserta como queríamos. O ocaso estava apimentado nos impulsionando a tocá-lo. Durante o banho ele sentiu-se mal. Passou a me puxar com força para o fundo do mar. Soltei-me dele e não pude fazer nada. Ele desapareceu. Tudo houvera escurecido a lua não saiu e não sabia dirigir. Cheguei a casa quase oito horas. Todos estavam loucos por nos encontrar. Dei a notícia. Só então me disseram que ele houvera parado de tomar medicamentos que controlavam sua epilepsia. O corpo de bombeiro, o barco do Ibama e os moradores fizeram as buscas.

Depois do enterro dona Carlota me tratava com desdém. Para ela eu era assassina. Como depois da violência dos americanos comigo e Paula, deixara de ir ao colégio Ricardo Augusto Veloso, achei que sofreria pouco com apelidos de garotas de escola, mas tudo engano, mesmo não indo, por onde passava na rua ouvia entrando seco nos ouvidos a expressão “putinha do coqueiro!”. Com o passar dos dias Dona Carlota me despejou e meus pais não me aceitaram. Procurei dona Teresinha, mas ela estava muito triste e não tive coragem de pedir ajuda. Fiquei uns dias no restaurante da dona Detinha, tia da Letice. Por essa época ela já havia viajado, foi lá que conheci Pablo, malandro aproveitador. Ele frequentemente tentava se aproveitar de mim, mas não queria em contra-ataque ele pegava coisas escondidas e dizia que era eu. Não deu outra, estava novamente na rua. Era Julho de 1997, quando conheci um senhor sério. Disse que queria viver comigo. Naquelas alturas não poderia dispensar. Certamente assim não estava sendo a garota burra como a porta do Mário.

Uma desgraçada pôde encontrar um bom velho para me sustentar. Tinha uma cabeleira embranquecida, alguns anos de experiência, era pai de um monte de filhos. Todos espalhados por aí, mas a isso me dizia não serem filhos legítimos, pois suas mulheres lhe tinham posto para trás.

O velho tinha uma boa aposentadoria. Embora ajudasse os seus supostos filhos, o que sobrava era o suficiente para vivermos. No início não gostei, estar do lado de um idoso não é fácil, sentir o cheiro, cuidar quando está doente, se fazer amável, não são tarefas simples. Estava beirando a duas décadas de vida e sentira que toda aquela minha redoma na infância, havia me desfalcado. Não sabia direito o que fazer para agradar o velho; ele de certa forma me deu tudo, ou quase tudo do que precisava.

O tempo foi passando e eu aprendi a sorrir e a dizer “te amo”; sei que foi uma máscara convincente, mas precisava de segurança. Nossa casinha simples era lapidada pelo murmurejo solitário do mar e pelo conivente crepúsculo nas tardes de verão. Só nós dois dentro de uma rede de balanço olhando o mar deserto e o sol cúmplice daquela dissimulação. O que posso dizer depois de longos anos é que aprendi muito com aquele ermo mar, bem mais do que com o ocaso. Compreendi que mesmo murmurando sem ninguém e recolhendo sua perna de água, nunca deixa de retornar com ímpeto leonino, dizendo a todos “olhem para mim e me admirem”. Assim esperava voltar, tão forte quanto o encapelado mar. Entendia que era hora de murmurar baixinho a esperar a morte de Alberto Silva. Depois era lucro. Um dos meus desejos se realizara, não como eu queria, mas aconteceu.

Os balanços ora colidiam com o vento, ora tomavam seu caminho. Às vezes Alberto pegava coco no coqueiral enquanto, na rede, eu brigava contra e me unia à direção do vento. Sentava dum lado e passávamos a balançar mais forte. Entretanto os dias iam passando e eu ficava mais madura, tendo minhas próprias abstrações conceituais e pensamentos obstinadamente libidinosos com rapazes de minha idade. Esse vento me levava e ao recobrar o sentido lutava contra esse vento. De fato a maior parte do tempo o vento me levava e eu gostava. Meus murmúrios de mar insatisfeitos se agigantavam. Por esses tempos não me incomodavam mais com Descartes ou com os behavioristas. Já sabia que o homem nasce conhecendo para conhecer. Não me interessava mais com que meus parentes diziam. Tudo foi atenuando, se estreitando até se formar o que sou, mar ermo.

No Coqueiro a vida prosseguia sem grandes tumultos. Alberto inventou de construir uma ponte em meu lugar predileto, era um braço do mar que descia pelas dunas. Queria satisfazer meus gostos, enquanto realizava seu sonho de infância. Comprou muita madeira, despendeu muito dinheiro; estava de todo envolvido com aquele projeto. Chegava a nossa casa tarde, sem disposição, quase morto como um jegue estrompado. Banhava, dirigia-se à mesa e passava a falar sobre a minha ponte. Eu achava um gentil projeto. Lembrava de quando cantavam “se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, só pro meu, só pro meu amor passar”. Pela primeira vez veio aos meus lábios o gosto da lisonja sincera. Até então apenas facadas em um coração de briosos traços.

Todos os dias ele me falava da ponte com grandes esperanças e com isso minha alma sentia-se amada ao não amar. Não é fácil sentir-se sem ser, ao tempo que não é gostoso amada não amando. Acredito que só as privilegiadas encontram nessa galáxia de extraterrestres seres que amam e são amados, somente assim as estrelas se tornam pisadas e o incógnito céu uma cama. Eu tentava amá-lo, então descobri a insuficiência para a felicidade. Provei de sulco caro, meus pensamentos me traíam e ficava indefesa.

Mas um dia o velho demorou. Ao chegar me avisou que iria a Teresina, precisava fazer exames. Ele sabe que quis ir, mas ele disse que ficaria na casa do filho, então achei melhor não viajar. Embora soubesse que a inconstância é a certeza de que mudanças bruscas estão à porta deixei-me levar por aquilo que em mim mais temia. Não obstante lutasse contra aquele titã, não pude resistir às suas luxúrias que em mim enfloravam, em instantes, após a ida de Alberto, estava totalmente derrotada ao vento.

Surgiu por lá um garotão, da capital, físico avantajado, beleza escultural, braços de ferro e galanteador nato. Nesse dia eu passeava na praia, chutando pedrinhas, meu olhar oblíquo se entrelaçava ao cicio do mar. Aos vinte e oito anos estava fresca e sinuosa, fazendo despertar nos machos um fetiche desesperador. Cedo descobri, minha superioridade sobre o homem e não hesitei em tirar proveito.

Ernesto, era o nome dele, estava correndo para me acompanhar, por infelicidade da memória do velho era uma tarde de sol avermelhado e mar solitário. A barraca mais próxima de nós estava a quase dois quilômetros. Sentamo-nos na areia. Depois de uma breve conversa, passou a fazer afagos cheirando meu cabelo, no primeiro instante tremi, um milhão de pensamentos me vieram à mente, mas no final a inconstância me venceu novamente. Deitei-me. Beijamo-nos selvagemente. Quando dei por mim, já estávamos rolando para dentro da água. Em breve a água cobria minha cintura. Fazia tempo que não sentia algo arrebatador e tresloucadamente sensual.

Aquele final de semana passou como o vento; sua vida estava bem distante do litoral; ele não podia deixá-la por simples três dias de paixão desvairada. Talvez se ele não tivesse feito amor, mas me amado, seria diferente. Embora soubesse que a eles amar é impossível, mantinha o gosto de ser permanente, enquanto o tempo foi só nosso. Ernesto voltou a Teresina, deixando um coração atraiçoado pela inconveniência do ser mulher. Sentimentalismo está para a consorte como dinheiro está para o político. Dessa vez, fui eu quem pôs à mesa prato insalubre e cru ao meu companheiro Alberto.

Dias depois o velho retornou, sorria amareladamente sabendo que em breve não agüentaria manter a aparência. Na quinta pela manhã, ele me levou à ponte ainda em construção, ficamos horas a olhar o mar de sobre a ponte; ele apaixonado, eu com um remorso de morrer. Não conseguia olhar para a construção direito, minha vista embaçava, procurava dizer algo, mas estava entalada. Ele sorrindo repetia sempre:

– Carmélia, minha Carmélia, o futuro é nossa propriedade!

Confesso que aquele “minha Carmélia” me sepultava em lajes gélidas. Não era arrependimento tão somente, uma compunção virulenta me desequilibrava a tornar-me frouxa e ridícula. Ele gargalhava permitindo ao frio vento entrar pelo espaço em seus dentes, enquanto seu olhar atingia o seu inatingível futuro. E em segundos, notei que seu infinito tinha um limite. Logo ele iria morrer e esse peso desapareceria com seu enterro. O que no momento precisava fazer era fingir como se nada houvesse acontecido. Não durou muito e a notícia de sua morte me constrangeu. Vieram para o velório os filhos dele. Ao chegarem, a primeira pessoa a quem vi foi Ernesto, mais conhecido como Ernesto Silva, era seu filho mais novo. Aquilo me flechou no resquício de vergonha que a sociedade permitira ficar em mim; garanto que fiquei sem ânimo de participar no velório e não acompanhei o cortejo fúnebre e nem fui ao enterro. Todos desconfiaram de mim. Mas nada disse.

Ernesto que até então não sabia quem eu era de fato estava com os olhos vermelhos de ódio. Não olhou um instante para mim. Apenas notava sua repugnância. No dia seguinte a notícia havia se espalhado pelo Coqueiro. As paredes de minha casa estavam pichadas com dizeres monstruosos a meu respeito. Isso não era o pior para mim. O que eu não suportava era ter me deitado com filho de Alberto e agora um macabro remorso com sua morte. Na semana posterior a sua morte, resolvi ler Machado, uma tentativa desesperadora para aliviar o fardo. Foi minha válvula salvadora. O livro Memórias póstumas de Brás Cubas me falou muitas coisas; foi aí que entendi que com um tiro de pedra se derruba gigante, com coisas aparentemente fúteis se desdobra ou se reconstrói novas realidades a ponto de decodificarmos o que um dia fomos e o que já deixamos de ser. Nisto se impõe que o que éramos transformou-se, paulatina ou, às vezes aceleradamente, naquilo que somos e que não éramos e que certamente não seremos. E nessa confusão com o verbo ser pude escavacar a vida e a morte de Brás Cubas, exemplo fidedigno do que foi, e do que é sem ser o que foi plenamente, mas que só é com os entrelaçamentos do que um dia foi.

O ciclo da vida é um percurso fatigante ao passo que a vida esvai; todo dia vivemos, todo dia morremos; é como se vivêssemos vez por outra em coma, damos um ataque cardíaco, os médicos vêm e nos dão choque, então revivemos, sabendo que a qualquer instante voltaremos a morrer e a reviver, e esse vício natural vai ao longo dos anos se intensificando, e tornando o nosso retorno mais difícil, até as nuvens do esquecimento nos circundar de vez. O que restará? Apenas uma vaga lembrança nas pessoas com quem tínhamos mais identificação, e que vai se distanciando ao passo que essas pessoas sofrem enfartes. Isso é natural, mais natural do que imaginamos. Contudo não é fácil aceitarmos; nossos fantasmas são nossos piores inimigos, tememos o que não conhecemos, mesmo que seja uma criança que esteja fazendo barulho por trás de uma cortina de fumaça, a candura do sorriso infantil desconhecida perpassa nossa razão e impacta nossas emoções, então o fantasma se alastra. Trememos e tememos diante do que é desconhecido. E a morte de Alberto tiranizou um fantasma que não me deixava em paz. Precisava derrotá-lo.

Com a continuação da leitura vi que o estado de demência de Brás Cubas é um solilóquio que descreve a incompreensão naquela tão infortuita hora. Para ele era espectro ímpar, embora, como muito de nós, nas suas mais de seis décadas de existência, tenha visto e ouvido falar de tantos que não conseguiram voltar do seu estado de coma. Sentiu o verdadeiro apertar do sapato. Havia passado por toda uma chuva de falecimentos, até chegarem suas próprias gotas, tão incertas e temerosas quanto uma suposta traição. Sentiu ser traído por seus olhos que persistiam em cerrar, por sua pele que deixava a sensibilidade natural, por poucos amigos que não puderam fazer com que saísse do delírio.

Contudo ele próprio foi pérfido, não fez nada para ajudar Dona Leocádia, esposa do capitão. “Que importa a mim o destino de uma mulher tísica, no meio do oceano?”, nessa ocasião, a única coisa que reparava era a lembrança viva de Marcela. Talvez em seu passamento, recordasse de sua indiferença ante a pobre Leocádia que dias depois foi jogada ao mar. Eu fiz o mesmo, não cuidei de Alberto como reza a cartilha dos amancebados. No seu último momento no hospital de Luiz Correia eu resolvera ir cobrar uma comadre minha em Parnaíba.

E o nosso fantasma aumenta ao passo que o beijo traidor de Judas se efetiva. E é aqui que se acentua, em muitas vezes, o arrependimento de não haver vivido o que não conseguimos viver, de beijarmos a quem não beijamos e nisto Brás Cubas pode falar com propriedade. A senhorita Eulália, noiva virgem, morta por febre amarela, talvez tenha sido desejada nos últimos sentidos do contador de biografia sem flores. Caso pudesse voltar os tempos, quem sabe, não faria de tudo para contrair núpcias? Afinal quem não quer tocar o intocável? Até mesmo o insensível Cubas desejaria fazer o que não fez com Eulália.

A morte, fato indiscreto, faz do que foi um dia insalubre, pensarmos ser as águas do Éden. Não é à toa que um dos poucos que levou o caixão de Brás Cubas ser chamado de “bom e fiel amigo”, esse tal era tão frívolo para o morto quanto o esquecido, para se ter uma idéia, não foi, em trecho algum das memórias, citado o nome. Podemos entender que o fútil do hoje poderá ser o céu desejado no instante da transição. Não é bom ridicularizarmos as coisas mínimas, nem lhe fazer apologia, mas experimentarmo-las com boa dose de moral e de prudência. Para Alberto não fui o amigo inominado de Brás Cubas; A alça do seu caixão não recebeu o toque de minhas mãos nem a terra que lhe encobriu sentiram minhas pisadas.

Nesse mundo há gente que mesmo in extremis não deixa de ser um tanto imoral; já viram como sofreu o asmático Viegas, parente de Virgília? Não se pode negar que foi sua imoralidade responsável por acelerar seu desfalecimento. Se tivesse aceitado a oferta do sujeito, talvez adiasse a morte, antes insistiu “quar... quaren...quar...quar...”. Foi imoral até o último momento. Mas fazer o quê? Há tantos que preferem se obcecar com propriedades e dinheiro e não ligam para o que é realmente importante para a vida. Ele não quis saber dos parentes que chegaram, antes na cama ficou em negociação; não aproveitou a felicidade familiar, nem se sentiu alegre com a transação. Morreu.

Falando em família, Brás Cubas não poderia atravessar sua tênue passagem sem ver alguns dos seus serem enterrados; primeiro foi a mãe, depois o pai, o caso desse trouxe intrigas aos familiares, era Cubas e a esposa do Cotrim, sua irmã, se gladiando pelos bens deixados pelo velho Cubas. É, a morte também causa discórdia entre os que ficaram; esse tipo de tresvario é o que podemos dizer de mais hipócrita e insensível gozo da humanidade. Nós temos a péssima mania de sorrirmos de quem chora, e de nos alimentarmos da macaca alheia. Não devemos nos impressionar da atitude dos herdeiros, pois, quase todo dia, torcemos por um “virar botas” de um parente rico, ou se não temos o tal, de sonharmos com ele.

Também é verdade que a morte da interesseira Marcela, mostra que alguém que já tanto amamos e que foi causa da nossa jovialidade, pode passar despercebida. Isso não se dá à toa, o que aconteceu foi uma perfídia extrema por parte da colecionadora de jóias. Brás Cubas fez questão de ignorar o discípulo das trinta peças de prata. A vida é desta maneira, não consideramos mais o que um dia foi mais considerado. A morte de tal pessoa parece um doce alívio, nos sentimos folgados e libertos de todo o mal que um dia desejamos perpetrar. O fechar do túmulo nos recompensa. Dizem os apologéticos que o suicídio de Judas não foi causado por arrependimento, mas por puro remorso. E era o que sentia, não pus corda no pescoço, pois da mesma forma que Brás Cubas me sentia livre para deixar-me levar pelo vento do litoral.

Falando em recompensa, o próprio Brás Cubas não foi felicitado em vida por sua maior invenção, o bendito emplasto, que morreu com a morte de seu inventor. A morte rompe com sonhos e com realizações. Agora balançando na mesma rede com que nos balançávamos esperava passivamente que a morte para mim demorasse. Precisava viver o que queria.

Deixou-me de herança algumas dezenas de reais e aquilo que a depressão oferece, desatino. Meu apetite aumentou. Não tive mais notícias de Ernesto e como já todos sabiam que havia saído com ele não tinha mais nada a temer. Passei a dançar em bares. A gastar tudo o que adquirira para suprir meus ermos desejos. Se era certeza que a morte viria, precisava fazer o que deixei de fazer.

Era 2007, mais um ano houvera passado depois da morte de Alberto e era um ano importante para Luiz Correia, pois precedia o ano eleitoral. Comentava-se que o tal de Alexandre Reis iria disputar para prefeito. Eu sinceramente esperava que ele perdesse tudo. Mas no exato momento estava confusa, preocupando-me mais com Aníbal do que comigo. Devo interromper com essa atitude escrupulosa. Se porventura continuar assim, ficarei neurótica. Quando o ver, falarei com ele. Era preciso vencer meus pérfidos desejos. É isso, vou fazer amizade com o balconista, bom, essa atitude vai me levar ao rebaixamento e talvez ele nem queira falar comigo, logo porque depois do que eu fiz todos caçoaram dele.

Aníbal estava um rapazinho de pele amarelo-vermelha, sardas no nariz e parte do rosto. Seu cabelo amarelo-fogo combinava com os seus olhos azuis vibrantes. O rosto era barrocão, com marcas grosseiras de espinhas. Há muito não o via, mas continuava louco por mim. Ele sempre trabalhou no pesado e com isso mantinha uma vidazinha medíocre. Deu uma melhorada quando assumiu o balcão do hotel Vento e Mar. Sentiu-se importante ao ver de perto ingleses, norte-americanos, portugueses e outros exploradores de meio ambiente alheio.

Passou a amar o que fazia, tanto é que após um ano de serviço todos da hotelaria tinham por ele muito respeito, inclusive o proprietário do hotel, o tal de Alexandre Reis que houvera prometido pagar um curso de inglês para seu melhor balconista.

Comecei a pensar tão alto que quase se o ouviam meus pensamentos. Enquanto refletia sobre o que houvera feito, andava pachorrenta chutando pedrinhas pela rua. Quem olhava para mim poderia dizer que era uma louca bêbada e não erraria na loucura nem na bebedeira.

A fim de não ocorrer maiores problemas, embora não necessitasse de perdão algum, ia conversar. Meus pensamentos se ampliaram, sabia que a reconciliação não estava no pacote de compras do supermercado hereditário de minha vida, mas com afirmava minha avó, se encontrava na lavoura das experiências sociais, somente com muito trabalho e amadurecimento se podia ousar perdoar. E eu estava disposta a ser humilhada por Aníbal..

Enquanto o vento frio daquela tarde de inverno espalhava meu cabelo, os meus pensamentos ficaram mais pachorrentos e metódicos, sabia que isso era resultado de minhas leituras solitárias; uma estudiosa deveria pensar como uma alma superior, tramando todas as possibilidades de integração com o próximo e ao fazê-las usar uma polida linguagem.

Passei frente ao Vento e Mar, e como era ano eleitoral, um grande cartaz dizia “Vote pra prefeito Alexandre Reis”, o meu coração acelerou. Qualquer um poderia ganhar essa eleição menos ele. Para completar Aníbal não havia vindo trabalhar. Disse-me Marquinho, outro balconista.

- Coitado do Aníbal, de tanta vergonha adoeceu. Deu febre e diarréia a noite toda.

Quando ouvi isso, fiquei mais triste do que durante todos os minutos atrás. Eu não tinha o direito de fazer mal às pessoas. Dei por mim estava em frente ao restaurante da dona Detinha.

Olhei, lembrei da noite da modificação, a lembrança me derrotou. O mundo ao redor deu um giro rápido e fui ao chão. Estava encolhida ao pé da parede em gritos. Letice que havia chegado de viagem correu, pôs-me de pé, e abraçando-me levou para dentro.

- Esse chá vai lhe fazer bem – disse entre sorriso angelical.

- Como você sabe que isso vai me ajudar? Perguntei com desdém.

O que ela respondeu:

- Apenas confie.

- Confiar? Confiar? È fácil você dizer isso. Nunca passou pelo que passei. Aliás, você não se fez confiável há dezesseis anos e agora vem com uma tal de confiança. Aposto que nem lembra mais o que se passou comigo, não é? Você esqueceu, não foi?

- Por favor, amiga, era uma criança e mamãe não permitia que fosse vê-la. Tanto é que no dia em que fui te ver precisei enganar a mamãe...

- Mentirosa, riquinha besta. Só porque dizem por aí que você se formou e anda casada, pensa que pode pisar nas antigas amizades? Você é idiota ...

Ia espraguejar para valer se não houvesse a correria no meio da rua. Repentino Marquinos entra correndo.

- Onde está a filha do Pescador?

- Está na cozinha – respondeu Detinha.

O mal que estava sofrendo deu um salto de mim, pensei que era alguma coisa com minha mãe.

- O Aníbal está no meio da praça armado, dizendo que vai se matar se você não impedir.

- Valha-me Deus!

Saí correndo. A multidão estava alvoroçada. Rasguei a muralha de gente. O que deparei foi com um doido. Um doido varrido. Chegando vi Miranda, sargento da PM, inutilmente pedindo para Aníbal largar a faca. Então gritei:

- Larga essa faca, homem! Tem dó de ti mesmo!

A multidão silenciou; ele próprio deixou de gritar o meu nome. Repeti:

- Me dê a faca, Aníbal. Não seja tolo.

- Ah! Então você veio? O fim é de quem rir por último, e sei que ele é meu. O meu fim vai ser o início de tua derrota. Então rirei por último. Convidarei os vermes que me devorarão para rir de ti ao se banquetearem comigo, sua égua.

- Aníbal, tenha juízo. Solta essa faca!

- Sua égua, sua égua... Você me matou.

Por trás dele, enquanto eu tentava convencê-lo da bobagem que ele estava fazendo, o tal do Alexandre e o Marquinhos se aproximavam. Num pulo de gato os dois homens dominaram o suicida. Eles lhe tomaram a faca. Eu respirei aliviada.

Ele jazia suado frio, numa morbidez que só foi se retirando quando passamos a conversar, isso às onze horas da noite. O tal do Alexandre achou melhor não deixá-lo ir para casa, ao menos por aquela noite.

Mas o diabo só precisa de uma mínima liberdade para fazer o seu qüiproquó. Como Aníbal preferiu dormir no quarto do terceiro andar, e ninguém depois do ocorrido pretendia frustrar suas vontades, o canino armou a arapuca. Cinco da manhã, gritos da zeladora que chegara para trabalhar e um corpo quebrado sobre uma poça de sangue. Pobre do Aníbal...

O tal do Alexandre quando me encontrou na semana seguinte disse que a culpa era toda minha.

- Sua vaca cachaceira! Está satisfeita agora? O Aníbal gostava tanto de você. Era muito você ter ao menos pedido desculpa.

- Vai te lascar, bandido! Eu não sou culpada.

- Não! Então por que você entrou no hotel se esfregando naquele teresinense besta, sua lambisgóia?

- Me respeite safado. Foi só um mal entendido!

- Ah! Agora foi um mal entendido. Aposto que também foi um mal entendido você ter aceitado namorá-lo dois dias antes de sua demonstração pública?

- Eu não queria.

- Então por que aceitou?

- Era uma brincadeira minha e da Paula, a gente estava apostando com qual das duas ele convidaria para namorar.

- Uma brincadeira! Você merece o que fiz e muito mais, espere que você ainda vai pagar a morte do Aníbal. Não se esqueça: o que aqui se faz aqui se paga.

- Você é um bandido mesmo. Eu poderia te denunciar à polícia...

- Vá! Você não tem moral de nada. Todo mundo sabe que você já saiu com todo o mundo e além do mais já se passou mais de uma década.

Fiquei estátua. Não havia percebido a passagem veloz do tempo. Era uma mulher, sem prestígio, sem casa, sem pais, sem esposo, somente os bares me aceitavam e ali entre copos de bebidas me sentia dona de alguma coisa, a luxúria.

Recebi uma tapa.

- Escuta o que eu estou dizendo – disse vociferando Alexandre – na sua brincadeira, o pobre do Aníbal contou pra todo mundo no hotel sobre o namoro de vocês, já pensando no casamento. E eu tive a coragem de dizer-lhe que conseguiria um emprego pra você.

- Mas nós nem nos beijamos. Apenas disse, até sorrindo pra Paula, nosso namoro começa hoje, foi só...

- É, mais você sempre soube que ele secaria a Atalaia só pra você poder passar... Você não tem coração, coisa ruim.

- Olha quem está falando. Você é um monstro Alexandre.

Nisto recebi uma tapa, depois outro e empurrões.

Letice viu o alvoroço pediu pelo amor de Deus que ele parasse. Ela tentou me levantar, eu dei uma rebanada postergando-a, eu já havia decidido não perdoá-la. Foi a última vez que a vi. Fiquei sabendo que ela voltou para a cidade onde estava morando e fazendo o seu doutorado em arqueologia.

Muitas coisas não compreendia o sentido da vida era uma delas. Friedrich Nietzsche afirmava que os sofredores são de duas categorias, os de riquezas de vida e os de depauperamento da vida. Quando li isso aos meus doze anos, não aceitei. Hoje vejo apenas o lado onde o sol não brilha. De fato o pensador tinha razão. Nietzsche escrevia o que pensava ser certo e eu adorava isso. Ele, na minha infância, parecia imbatível. No entanto foi em sua biografia que descobri que restava a mim um disparo, eu era mais forte do que o próprio Nietzsche. Ele viveu muitas orgias e até incesto com sua irmã, a viúva Elizabethe Foster. E eu passei a ver que os homens são cavalos de montaria a fazer o que queremos. Foi aí que percebi não está no fim da fila dos miseráveis. Os homens se sentem atraídos a mulheres, assim como azougue ao ferro. Paula e eu descobrimos isso, então resolvemos tirar proveito.

Eu gostava demais em saber que os homens ao meu redor aceleravam o pensamento, tinham perturbação no coração, deixando as pernas trêmulas. Isso passou a ser o meu troféu diário.

A princípio tentei saber por que razão acontecia isso; qual a causa dessa tresvaria? Contentei-me quando me disseram que era assim mesmo. Sempre fui levada por pouca conversa.

Chegamos ao bar Kim do Caranguejo, as ondas do mar estavam ferozes, assim como o mundo a nos tragar. Sentamos na mesinha, não sabíamos o que fazer ao não ser olhar o esdrúxulo peixe que os pescadores haviam trazido recentemente do mar. Diziam ser um peixe não conhecido na região. Eu não esperava que ali fosse dar de cara com meu pai.

- Pescador, sabe quem está aqui? Tua filha...

Ouvi um escarro por trás da parede.

- Eu não tenho filha. Não enche – Disse resoluto.

Depois passou quase colidindo conosco. Nem me olhou. E lá se ia meu pai de até os meus doze anos.

Como era mês de julho, milhares de turistas vinham ao litoral – ainda não há programação de férias melhor ao piauiense. Entre eles estava presente um senhor doutor, já beirando a casa dos sessenta, mas ainda bem vigoroso.

Quando soube que os pescadores haviam trazido esse peixe estranho veio onde nós estávamos para vê-lo.

Cumprimentou-nos com uma voz baixa e rouca. Entrou peremptório. Estava bastante ansioso para notar o peixe. Este media em torno de um metro, com peso de uns trinta quilos, possuía dentes pontiagudos, semelhantes aos dos tubarões, mas o que mais chamava atenção era a forma colorida da cauda e das barbatanas, nestas estavam presentes às cores do arco-íris, era um peixe curvo semelhante a um arco, nenhum pescador da região já havia visto algo assim.

O senhor doutor passou horas com sua máquina digital fotografando o exótico peixe. Quando dei por mim, só estava eu, o doutor e o dono do bar, até a Paula resolvera ir embora, dissera que o peixe estragara o nosso de dia de conquista.

O pesquisador queria por força violência conhecer o Pescador. O dono do bar procurou explicar-lhe onde ele morava, mas sem sucesso. Depois de uma longa tentativa convenceram-me de ir até a casa daquele homem que havia me deserdado.

Fiquei dentro do carro de vidros fumê, eles não me viram. Meus olhos se encheram de lágrimas. Minha pobre mãe lavando uma trouxa de roupas, meu irmão mais velho de calção, tendo como cinturão um barbante e neste amarrado um enorme facão. Meu pai, bastante queimado pelo sol nem parecia aquele de minha infância. A casa de pedra com massapé estava para cair, o quintal de minha antiga redoma continuava cercado por madeira e palha só que mais velhos do que naquela época. Ouvi um grito de criança, olhei pela fresta da cerca uma menininha bem suja brincando feliz, não suportei, pus a mão no rosto, e passei a soluçar. Minha vida de infância rebentou num instante, mesmo sem querer. Pela primeira vez notei que eu era feliz, com toda a minha prisão, e não sabia. Se o tempo voltasse...

- Tá, muito obrigado – disse o doutor batendo a porta do carro.

Viu-me enxugando o rosto. Ainda bem que ele não disse nada a respeito.

- O pescador, amanhã vai me mostrar o local exato onde ele pescou aquele peixe.

- Que bom! – disse.

- Faço pesquisa marítima. Estas bandas do litoral piauiense são muito boas para pesquisa. Até agora aquele peixe não foi catalogado. Será uma descoberta internacional. Vou expor toda essa pesquisa no meu site, além de publicá-lo em jornais e revistas científicas.

O que observei era que o senhor doutor além de obcecado por pesquisa e publicação, tinha um desvio mental. Até então eu achava que só os pobres sofriam disso, dentro de mim eu sorria, pois agora sabia que os ricos também eram doidos. Que bom!

O barco levantou âncoras. Meu pai tinha um sentimento que aquela seria a pescaria mais importante de sua vida.

- Minha velha, o doutor Correia disse que vai me dar muito dinheiro – disse papai à mamãe.

Essa perspectiva passou a dominar as tão fatigadas esperanças de minha família, como bestas sorriam involuntariamente.

Passaram dois dias, ao retornarem se percebia ao longínquo à frustração dos homens.

Meu pai morto de bêbado. O senhor doutor passou os dias em crise de vômitos. Os quatros outros acompanhantes enraivados porque o doutor não permitiu que eles pescassem outra coisa, a não ser o bendito peixe.

O doutor Correia enraivado como um cão, não havia desistido de capturar o peixe, mas por enquanto tinha me levado para conhecer sua casa no Peito de Moça. Achei que as pernas dele ficariam bambas ou ao menos sentiria um friozinho na barriga, fiquei triste por notar que aquele sexagenário não se importava tanto para aquilo que eu achava impactante para os homens. Mas ao menos receberia um bom pagamento.

- Vamos! Vou deixá-la em casa.

Eu sentia que ele era “mão de bebé”. Não tinha certeza, mas confesso que aquele pressentimento me atormentava, pois ficar das nove da manhã às oito da noite era um serviço e tanto.

- Você gostou? Perguntei.

Ele não poderia ter sido mais insensível.

- É!

- Só isso?

- Você quer que eu diga o quê?

- Sei lá, algo que me motive.

- Você acha que só há um peixe no mar?

- Não! Claro que não! Mas eles são bastante diferentes. Tanto são que você está desesperado atrás do exótico pescado por papai.

- Só que isso é diferente. Sabe o que você não é tão burra o quanto eu pensava.

- Burra?

- ÉÈÉ, buuurra! Mas não se preocupe, eu vou lhe dar de presente um livro.

- Livro? Pra quê?

- Oras bolas, pra se ler, claro.

- Isso não retirará as dores e tormentos.

- As dores e os tormentos são apaziguados pela leitura...

- Pois quero esquecê-los.

Ele me deu Helena de Machado, o meu pagamento. Mesmo assim desci do carro esperando dinheiro.

- Tchau! Ecoou a rouca voz.

Li o livro várias vezes. Fiquei mais romântica, coisa boba em mulher, e, por conseguinte mais evasiva. Os profundos olhos de Helena me levaram ao profundo do meu eu. Uma alma louca por subterfúgio, embora esse fosse o pão amassado pelo diabo. O sonho de um Romeu só meu, fora embora, logo após as frases das adolescentes “putinha do litoral”.

Andava introspectiva em ermos caminhos. Não podia mais negar o que era, embora não fosse mais o que fui. Eu decididamente escondi-me, assim como o peixe, no oceano interior. Saí contra minha vontade com o Alexandre do hotel Vento e Mar, o Marquinhos, o Pablo, Miranda, o Luquinha, moto taxista e com os pescadores da região. Com todos eles por dinheiro. Nessa altura já não acreditava no amor, todo sentimento é uma questão de interesse, nada mais.

Em abril de 2007 Paula, resolvera tentar a vida em São Paulo. Duas semanas depois a notícia de sua morte. Entrei em choque. Não deixava a cachaça nem ela a mim no meu depressivo quarto. Não tinha família, não tinha emprego, não tinha amigas. O que me restara fora um espectro do meu passado. Eles eram muitos e me diziam acusações. E eu em gritos respondia:

- Não matei o neto de dona Carlota nem Alberto e muito menos Aníbal. Sou inocente! Brás Cubas teve mais sorte, embora tão louco quanto qualquer um, não foi acusado de matar a ninguém. Eu vi a morte, por diversas vezes, tocar meu ombro e dizer “agora é ele”. Por isso, no fundo os ectoplasmas me degeneravam sem me ouvirem.

Comecei a beber na segunda-feira, no meu barraco no Alto Bonito. Acordei no hospital no domingo quem me levou até lá não sei. Sabia que não ia durar muito precisava pelo menos falar com mamãe. Obstinada, decidi ir vê-los.

Ao entrar meu pai mostrou-me o mesmo rancor de outrora. Espraguejou-me. Mamãe começou xingá-lo. Vi os dois por minha causa brigarem às tapas. Meu pai saiu desesperado dizendo que iria se matar, mamãe corre para pará-lo. O povo estava frenético com o resultado da eleição para prefeito, Alexandre do Vento e Mar houvera vencido as eleições. Um carro em alta velocidade com o “arruma a malaa ê, arruma a malaa ê, arruma a malaa ê, que a rural vai te pegar ar ar”, atropela ambos. Ela morre na hora, ele é levado às pressas a Teresina.

Quando Alexandre soube do ocorrido na festa de comemoração, disse ao povo como tudo aconteceu e afirmou que a culpa de tudo era minha. No momento o povo amava Alexandre e saíram a minha procura armados de paus e facas. Luquinha pegou a moto e me levou para o Portinho, não havia casa segura para ficar, o jeito era me esconder entre as dunas.

Nesse ínterim, os comentários se espalhavam: “Ela está armada com um revolver”, “ela tem faca”, “Cheirou cocaína”, “tá louca”, “tá doida”. Para todo mundo estava doida. A noite estava clara, a lua redonda, parecia à noite da modificação e eu fugi pelas dunas. Umas duzentas pessoas, homens, mulheres, jovens, adolescentes e vira-latas viraram a noite a minha procura, com urros e gritos pelas ruas e dunas. Para eles a bruxa deveria morrer.

No dia seguinte ouvi vozes roucas. Miranda e alguns soldados me prenderam. Para todos estava louca. Temi ser morta na delegacia. O jeito foi fingir loucura. Como estava louca não pude ir ao velório de mamãe. A notícia se espalhou por todo Luiz Correia. A filha do Pescador enlouqueceu.

Foi aí que descobri que a loucura não é simplesmente uma questão de alma. Quando Nietzsche sai do seu quarto de pensão, vê um cocheiro surrando seu cavalo. Ao tentar acudir o animal leva uma surra de perder os sentidos. Ao acordar dois dias depois está dizendo que é o próprio Jesus Cristo. Foi nesse dia que olhei por cima de meu passado e vi que a loucura é uma conseqüência natural a todo ser vivo. Desde então queria ver o prefeito Alexandre Reis construir um grande manicômio em que todos possam participar como pacientes.

- Você está de fato louca, Carmélia!

- Não, Cipaúba, nós somos loucos!

- O que eu tenho haver com isso? Eu não entendo o que eu possa fazer com você.

- Comigo, nada. Já aceitei o que sou. Mas você pode fazer por toda essa sociedade.

O senador demonstrando desprezo diz:

- E o que eu posso fazer por todos.

- Conseguir recursos federais para que o governador possa fazer mega-centros de tratamento psíquico para toda população piauiense. Só vou exigir uma coisa.

- E que coisa é essa?

- Que o plano se inicie por aqui. O tal do prefeito Alexandre Reis vai gosta do que planejei para o município, ele poderá governar mais justamente e ainda por cima ter o nome conhecido em toda União juntamente com você.

Uma gargalhada quebra a o raciocínio de Carmélia.

- O que foi? Não gostou?

Dissimulando o senador:

- Gostei. Ah, gostei sim, até demais! Oh! Fora de sério! Pois bem, eu vou solicitar a verba ao Presidente da República agora mesmo. É só uma ligaçãozinha. Vou aqui fora e já volto.

Foi aí que, indiscutivelmente, havia ganhado de minha avó. De fato o bicho come o que é do homem.
Autor: Josiel Barros


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