RETÓRICA HISTORIOGRÁFICA NA ANTIGUIDADE



O discurso pós-modernista que existe desde meados do século XX prega que "tudo o que é sólido desmancha no ar", ou que, em outras palavras, todas as verdades, por mais sólidas que possam parecer, padecem de objetividade e não passam de ilusões construídas[1].

Desse discurso céptico, nem mesmo o próprio conceito de "realidade" escapa: não podemos alcançar a realidade objetiva, e tudo o que chega aos nossos sentidos são meros "simulacros".

A História como disciplina, por sua vez, foi atacada de forma similar: não existe diferença alguma entre uma narrativa histórica e uma narrativa de ficção. Segundo esse ponto de vista relativista, a narrativa histórica "forja" o real sobre o discurso, sendo que todo discurso historiográfico se articula no real perdido (passado), o qual é reintroduzido em um texto fechado, como "relíquia"[2]. Assim, a realidade "se exila na linguagem", e dessa forma é impossível alcançar a realidade velada. Isso significa que decifrar a "verdade" que supostamente habita no corpo do documento histórico mediante a determinação acurada do significado das palavras e expressões usadas é uma tarefa fadada ao fracasso.

Por incrível que pareça, esse discurso é antigo, e remonta aos antigos sofistas gregos. Por volta do século V a.C., na Grécia Clássica, os sofistas pregavam a impossibilidade de se alcançar o conhecimento da verdade. Górgias, um dos principais sofistas de seu tempo, afirmou, em seu Tratado do Ser, suas célebres teses cépticas: 1) Nada existe; 2) E se existe alguma coisa, é incognoscível. 3) E ainda que seja cognoscível, é incomunicável. Em outras palavras, nega a realidade, o conhecimento e a capacidade de se transmitir ambos através da linguagem[3].

Desse modo, a linguagem alcança apenas o domínio das representações da realidade, jamais da realidade em si. Isso significa que o discurso não pode comunicar a realidade das coisas, e qualquer comunicação do real é uma mera ilusão.

Essa ilusão, porém, para os sofistas, se tornou algo útil. O ser humano opera no mundo de acordo com ilusões de verdade. Como a relação entre falante e ouvinte é uma relação de coexistência ou de poder: persuasão, ameaça, súplica, sugestão, fingimento, submissão, etc., mas nunca de verdadeira comunicação, a força do discurso abandona a expressão e a comunicação e se relaciona com o convencimento[4].

De fato, pode-se afirmar que os sofistas foram, possivelmente os primeiros a teorizar sobre o poder da palavra e sobre sua influência nos assuntos humanos e sociais.

Com os sofistas se inicia a tendência a adaptar o discurso às predisposições do auditório. Ou seja, conhecer auditório para ajustar o discurso persuasivo a suas idéias, valores e necessidades. A partir dessas considerações e da instrumentalização do potencial de influência existente nas palavras para construir realidades ilusórias com valor de verdade, foi que nasceu a Retórica.

De acordo com Aristóteles[5], Retórica se consiste na arte de "persuadir e dos modos de se conseguir alcançar essa persuasão".

No entanto, é importante frisar que Aristóteles não defende por completo a proposta sofista de que a verdade é relativa e inalcançável. Segundo Aristóteles, existiam silogismos capazes de permitir alcançar uma verdade, por meio de duas premissas que resultam numa conclusão. Desde cedo, Aristóteles se preocupava com as formas pela qual o ser humano poderia alcançar a verdade e o conhecimento das coisas, rejeitando o relativismo total.

Desse modo, Aristóteles lapida a Retórica, transformando-a em um meio de se alcançar o conhecimento e a verdade provável, e de apresentá-la nas cores favoráveis para a assimilação do público.

De acordo com Aristóteles, a Retórica se divide em três partes: deliberativa (adotada nas assembléias políticas), epidíctica (voltada para o elogio ou censura) e judiciária (praticada nos tribunais de justiça). Respectivamente, as três formas equivalem a futuro, presente e passado.

A retórica deliberativa orienta-se com o objetivo de apresentar projeções de futuro para o ouvinte, de modo que avalie e aprecie as possíveis conseqüências de uma tomada de decisão, em termos de lucro ou de prejuízo, para que assim possa se posicionar frente aos argumentos. Nesse caso, o uso de exemplos é uma estratégia argumentativa adequada.

A retórica epiditica se propõe a construir a estética do discurso, se utilizando de figuras de estilo e ornamento, com o objetivo de alcançar o lado afetivo dos ouvintes. Desse modo, o discurso do orador adquire status de beleza, e o orador, de artista.

A retórica judiciária ou diânica procura provar, positiva ou negativamente, uma idéia ou algo, partindo dos conhecimentos supostamente partilhados por todos, reconstruindo os fatos do passado em uma rede causal, para que o ouvinte julgue os fatos e delibere. Essa é a retórica usada na apologia.

De acordo com Aristóteles, três elementos são indispensáveis para a retórica dicânica: tecméria, eikós e semeion.

Aristóteles[6] estabelece que: "os tecméria [τεκμηρίοις], as verossimilhanças (eikós) e os sinais (semeion) são as premissas da Retórica". O eikós, se caracteriza como o "verossímil", um tipo de certeza humana, mas não cientifica, que pode servir de premissa ao entinema. É uma idéia geral fundada em julgamentos formados mediante experiências e induções imperfeitas.

Já o semeion, ou "signo", se caracteriza como um indício mais ambíguo, menos seguro que o tekmerion. Por exemplo: ao observar manchas de sangue, pode-se supor um assassinato. No entanto, essa suposição não é segura: o sangue pode proceder de uma hemorragia nasal ou de um sacrifício.

O tekmêrion, por sua vez, é o "indício seguro", o signo necessário ou também o signo indestrutível, e que não pode ser de outra maneira. Uma mulher, por exemplo, que deu a luz é o indício seguro (tekmêrion) de que teve contato sexual com um homem.

Desse modo, o tekmêrion se fundamenta em conexões necessárias existentes na realidade, cujos fios e rastros podem ser seguidos para que se alcance a veracidade das coisas.

De acordo com Aristóteles[7]:

Se alguém dissesse: "Um sinal de que os sábios são justos, é que Sócrates era sábio e justo". Em rigor da expressão, temos aqui apenas um sinal. Mesmo que seu enunciado seja verdadeiro, podemos refutar a proposição porque esta não segue a regra do silogismo. Mas se se disser: "O sinal de ele estar doente, é que tem febre", ou "um sinal de que ela deu à luz, é que tem leite", este sinal tem um caráter de necessidade e é o único que é tecmérion; pois, desde que seja verdadeiro, é o único irrefutável. Eis agora um exemplo que apresenta a relação do universal para o particular. Se se dissesse: "O sinal de alguém ter febre é sua respiração precipitada", a afirmação seria refutável, embora o fato fosse verdadeiro, pois que, independentemente de febre, pode a respiração ser ofegante. Fica, pois explicado o que seja verossímil (eikos), o sinal (semeion), o tecmérion, e quais as diferenças entre eles medeiam.

Segundo Ginzburg[8], a retórica aristotélica, e seus componentes, são de grande valor para o historiador, pois possuem grandes repercussões para a epistemologia da história e para o conhecimento histórico.

Os tecméria, as verossimilhanças e os sinais, por sua vez, fazem parte das oratórias judiciárias (passado), traçando um paralelo entre os procedimentos jurídicos e os procedimentos historiográficos.

Ginzburg[9] apresenta, dividida em três princípios, o "núcleo essencial" da retórica historiográfica de Aristóteles:

a) a história humana pode ser reconstruída com base em rastos, indícios, semeia; b) tais reconstruções implicam, implicitamente, uma série de conexões naturais e necessárias (tekmeria) que têm caráter de certeza: até que se prove o contrário, um ser humano não pode viver duzentos anos, não pode encontrar-se, ao mesmo tempo, em dois lugares diferentes, etc. e c) fora dessas conexões naturais, os historiadores se movem no âmbito do verossímil (eikos), às vezes do extremamente verossímil, nunca do certo – mesmo que, nos seus textos, a distinção entre "extremamente verossímil" e "certo" tenda a se desvanecer.

De acordo com Ginzburg[10]: "A idéia de que os historiadores possam provar algo parece a muitos antiquada e até ridícula". No entanto, de acordo com a retórica historiográfica aristotélica, isso é possível, desde as que conexões naturais com as quais a prova se estabelece seja verdadeira. Isso significa que existem meios, que vão além da dimensão narrativa da histórica, de se alcançar a verdade histórica. O tecméria é um desses meios – desde que suas premissas sejam fundamentadas no fato concreto e estabelecido, não em pressupostos com aparência de verdade.

Porém, com Cícero, a retórica retorna a sofística, e a definição aristotélica de retórica como recurso na busca pelo conhecimento cede lugar para o conceito de retórica estritamente ligado ao convencimento.

De acordo com Sebastiani[11], Cícero foi um dos primeiros a proporem que na produção do conhecimento histórico "[...] não se necessitam especificamente de experiência direta dos fatos narrados, e sim do conhecimento da maneira apropriada para narrá-lo".

Desse modo, a História, dada sua formação mais discursiva do que objetiva, passa a ser tratada como gênero literário.

Em Cícero, a retórica historiográfica concede lugar ao estilo, ao gosto e ao convencimento, em detrimento da verdade histórica[12]:

[...] um indivíduo conhecedor das práticas retóricas pode escrever tanto sobre o presente vivenciado quanto sobre o passado cuja maior ou menor escassez de vestígios condicionava a maior ou menor veracidade do relato. O método de trabalho do historiador não mais se centra no estabelecimento de uma verdade que corresponda diretamente à tradução literária de sua apreensão pessoal da realidade, mas à ueritas entendida em termos de fides, credibilidade emprestada à narrativa. Enquanto construção retórica, a verdade se situa no plano da plausibilidade que o leitor encontra no relato, e não necessariamente na exata correspondência entre realidade e discurso.

Em outras palavras, a retórica "empresta" à narrativa veracidade. Como não se pode chegar ao passado para confirmar os fatos, o uso retórico resolveria esse problema, preenchendo esse "vazio" com recursos lingüísticos, estilísticos, inferências, embelezamentos, etc. A verdade, desse modo, não estaria no fato histórico em si, mas na retórica que o concedia. Desnecessário é, então, dizer o quanto fictício pode ser uma história construída unicamente a partir dos embelezamentos fornecidos pela retórica ciceroniana.

De acordo com Sebastiani[13]: "Seguindo os preceitos de Cícero, o historiador comporta-se como exornator rerum (De oratore, II, 54), ou seja, embelezador de assuntos, o que lhe possibilita ater-se exclusivamente à composição da narrativa e não necessariamente na experiência [...]".

Desse modo, na historiografia retórica ciceroniana, que herdou a retórica sofistica grega, as intenções literárias tinham prioridade: "exigia-se que se respeitasse antes de tudo o lado artístico da obra, sua redução retórica, mesmo em detrimento da verdade e da exatidão históricas"[14].




Autor: Francisco Chagas Vieira Lima Júnior


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