Táxi-lotação



Eu sempre pegava o táxi-lotação. Apesar de ser mais caro era mais rápido e, tinha a vantagem do ar-condicionado. Àquela manhã não foi diferente. Corri até o ponto de ônibus, chegando lá o lotação arrancava. O motorista, um homem de cabelos negros e passividade nos olhos, me esperou.

– Obrigada – eu disse e ele, gentilmente:

– Tem de que.

Atrapalhei-me no corredor, o rapaz que sentava no primeiro banco não fazia questão de fechar as pernas. Tentei desviar, manobra inútil, esbarrei no joelho exposto. Ele riu de canto, percebi que fazia aquilo de propósito. Tive ganas de dar um peteleco no meio do saco dele. Mas o máximo que consegui foi pedir, sem graça: "licença".

Escolhi um lugar ao fundo. Sentada comigo a sensação de esquecimento, que se confirmou apenas, quando no braço senti a ausência do casaco. Havia deixado-o em cima da mesa. Ocorreu a idéia de que talvez tivesse deixado em casa o remédio da pressão. Fui assaltada por um ardor frio, não podia ficar sem ele. Remexi dentro da bolsa. Respirei fundo, tentando lembrar se havia, ou não, guardado-o noutro lugar. Cega, investi, novamente, os dedos batendo em lenços, batons, achei o broche que ele me deu de aniversário, grande merda, eu morrendo por aquela ninharia. Esbarrei no celular, 2 chamadas não atendidas. Eram do Renê. O filho da puta queria me ver de manhã cedo, antes deu pegar na lanchonete. Sorte dona Adália, a gerente, ser boa pessoa e conceder a hora e meia de atraso, " Eu coloco outra menina no caixa".

Havíamos marcado próximo à Redenção. Ele disse para eu tomar cuidado com os bandidos àquela hora da manhã. Eu ri, comovida pela consideração, ele, do outro lado do telefone, com secura na voz, corrigiu que fazia aquilo mais por segurança dele que minha, pois para os outros não passávamos de estranhos.

Resvalei os dedos no visor do celular: a cada telefonema um número diferente. Ele sempre me ligava de orelhão. Grandíssima idiota, isso sim. Passava os finais de semana inteiros dormindo, na esperança de que os dias não se demorassem, de que ele desse sinal de vida, pois nem o telefone do Renê eu tinha. Ele cada vez mais indiferente comigo. Falando dos filhos, dos pedidos da menina para o Papai Noel, do balbucio do neném de oito meses. Eu com vergonha de perguntar: "e a gente Renê, o que vai ser de nós?"Enquanto eu me despia, ele, me comendo com os olhos, lembrava que a esposa ia preparar um jantar daqueles, do jeito que gostava.

Duas senhoras embarcaram no táxi-lotação. A primeira ainda conseguiu esquivar-se do joelho do rapaz do primeiro banco. Mas a outra, mais gorda, quase lhe decepou a perna. Bem feito, o acaso fez o que eu não pude e a velha disse o que eu não consegui: "moço, tenha bondade de sentar direito!" O trânsito até que não estava dos piores. Com sorte, chegava antes do Renê. Seria bom estar antes dele, então se ele atrasasse um segundo sequer, me mandava, com a desculpa de tê-lo esperado por muito tempo. Renê ia ver como eu estava mudada, me sentia mais amadurecida, mais mulher para dizer que estava tudo terminado, que ele era um cafajeste, que devia prestar atenção na família e me esquecer, porque eu não sou como essas vagabundas, tenho a minha dignidade.

O táxi-lotação parou. Peito erguido, levantei. Alguns passos mais e o motorista, através do retrovisor:

– Desce na próxima?

– Na outra, na Redenção, moço.

– Se preferir, paro o carro mais adiante, tem muito ladrão no parque – rindo – é perigoso mulher andar assim, sozinha. Disse:

– Eu sei me cuidar – não sabia – mas seria uma gentileza sua – despistei.

Eu já havia notado que ele me cuidava. Os olhos reparando meus movimentos durante a viagem, por vezes, ficava sem graça, pensando que devia respeito ao Renê, não devia coisa nenhuma. Aí decidi fazer diferente, ele me olhava através do retrovisor e eu fixava o olhar dele, firme como um alicerce – desmoronando por dentro – o Renê ia sentir minha falta. Conversamos a respeito do tempo e da possibilidade de chuva. Descobri que se chamava Godói e morava na zona sul, com a mãe. Um pouco antes do ponto onde iria descer, o táxi-lotação parou. Um homem enfiou a cabeça para dentro perguntando se passava no centro, ou próximo, o motorista acenou, positivamente, com a cabeça. O homem embarcou no táxi-lotação.

Todo mundo sabia. Menos eu. Aquele fogo todo não ia dar em nada. Ele não podia e nem queria me assumir. Tão insensato, sem guardar carinho maior por mim. Gostava mesmo era de me usar e ponto final. Nem sei porque não terminamos antes. A dona Adália sempre alertando: " Guria, larga desse sujeito, ele é homem casado, não presta!" Eu ouvia mas não ligava. O filho da puta corneando a esposa com uma atendente de lanchonete. Isso porque nos conhecemos quando o Renê, acompanhado de uma puta veio me cantar na lanchonete, será que eu não tinha alguma coisa melhor pra fazer depois do serviço? A dona Adália me olhou com um olhão de vaca braba, eu não respondi. Quando eu voltei na mesa dele pra cobrar, ele: " Qual é o teu nome, boneca?" " Estela", eu respondi. Ele sorriu e disse que ia insistir, que mais tarde voltava pra gente conversar. Deixou o troco de gorjeta e antes de ir embora, piscou pra mim.

O homem mostrou a arma e disse que se o motorista se atrevesse a parar ou fazer sinal, ele atirava. Obrigou-me a sentar. Se fosse preciso matava declarou e, erguendo a camiseta expôs a bomba presa com fita crepe no abdômen. O sujeito era atarracado, tinha barba por fazer e cicatrizes nas mãos. Ordenou que agíssemos naturalmente. Queria que o motorista o deixasse próximo ao Banco do Brasil e explicou-se: " Meu nome é Paulo, e sou pai de família..." E grave: "Não pude comprar uma bala de Natal. Houve uma pausa: " Eu tô desempregado, tenho uma filha pra criar".

Naquele instante eu entendi que estávamos à mercê de um homem desesperado que, justificava o ato em benefício de uma criança. Igual o infeliz do Renê, que, muitas vezes, desmarcava comigo porque tinha que passar mais tempo em casa. Pra não deixar pistas, caso a esposa nos descobrisse ele temia pela guarda dos filhos.

O lotação não parava mais. Eu via o descontentamento das pessoas que o esperavam. Algumas acenando ansiosas, outras fazendo gestos obscenos pro motorista. Paulo achou melhor mudar o itinerário, Godói, disse que não era boa idéia, que aquilo ia atrair a polícia. Ele destravou o revólver: " Faz o que eu digo". Alguém, ao fundo do veículo, chorava copiosamente. Paulo: " Anda, cara, senão mato um!"

Paramos defronte a Agência do Banco do Brasil. A tensão era total. Paulo friccionava, com a palma da mão, a testa – creio que para retomar mentalmente o plano de fuga. Ele gritava, fazia ameaças, berrou com o motorista. Ficamos estacionados lá um tempão. Meu celular chamou 3 vezes. Paulo irritou-se, apanhou minha bolsa e jogou o aparelho pela janela, naquele instante percebeu que a brigada militar havia sido acionada, provavelmente por um dos passageiros para o qual o lotação não parou. Paulo dirigiu-se, nitidamente contrariado, à porta. Eu podia sentir os pneus esvaziando, o chão balançava, aquilo era sinal de que em breve tudo iria se resolver, diferente da minha situação com Renê. Paulo ordenou ao motorista que a abrisse. Depois veio em minha direção, arrancou-me do banco pelo cabelo, igual o Renê quando eu não queria fazer amor com ele. Paulo encostou o cano gelado do revólver na minha cabeça, nesse instante lembrei: havia esquecido o remédio da pressão num quarto de motel.


Autor: Cláudia Curcio


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