Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez - Sim ou Não?



2007 foi um ano marcado em Portugal (naturalmente entre outros acontecimentos) pela discussão relativa ao referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG).Esteve aí em causa, de um lado, essa questão da IVG, mas também de outro lado, implicitamente, as questões sobre argumentação e respectiva legitimidade.Pareceu-me porém, do pouco – confesso – que acompanhei essa discussão pública, que esta tendeu a ser pobre tanto na dimensão da reflexão ética quanto na dimensão argumentativa.Procurando então contribuir um pouco para alguma compensação destes eventuais defeitos, intervim num fórum promovido pela revista virtual Ciência Hoje – Ciência, Tecnologia e Empreendedorismo (www.cienciahoje.pt) com um texto que visava precisamente enquadrar a questão da IVG na reflexão ética contemporânea, realçando ao mesmo tempo a organização lógica de quaisquer argumentos.

Por certo o efeito terá sido... praticamente nenhum.Em todo o caso penso que essa intervenção constitui uma introdução possível tanto à ética aplicada quanto à lógica informal que deve condicionar qualquer argumentação.

Comecei por introduzir a análise de dois argumentos para cada uma das duas respostas possíveis sobre a des/penalização da IVG.Apontei depois alguns requisitos para respostas intermédias.Em seguida exemplifiquei raciocínios que me parecem inválidos.E por fim apresentei a minha insuficiente (!) posição nessa questão.Como neste momento o que está em causa não é a intervenção pública de cada cidadão, mas tão somente a decisão íntima de cada pessoa sobre uma gravidez indesejada, penso que a minha opinião é o que menos interessará à leitora ou leitor.O que importa é apoiar o seu juízo crítico nesta matéria.Retirei pois aquele último ponto da minha intervenção na Ciência Hoje[1], e substitui-o por um posfácio com uma pequena reflexão sobre a dificuldade que penso que enfrentamos na maior parte dos problemas éticos (ainda que nem seja bem o caso da IVG).

1.1.Não-consequencialismo – "Não à IVG":

Extinguir vida humana é fundamentalmente errado [Premissa 1].

Um embrião é vida humana [P 2].

Logo, extinguir a vida dum embrião é um erro fundamental [Conclusão intermédia],

A lei deve penalizar o desrespeito pelos valores fundamentais [P 3].

Logo, a IVG deve ser legalmente penalizada [C. final].

Análise:

Primeira etapa[2] – Deixando o adjectivo "humana" para o próximo argumento, o que fundamenta aqui P 1?Esta premissa tem que ser constituída como conclusão de outro ramo argumentativo – ex. Deus revelou o Mandamento: Não matarás (seres humanos); Logo...Neste caso a questão é a de garantia de uma revelação divina, e da fidelidade da sua transmissão secular.Se as remetemos para a fé então de facto escolhemos não ponderar a questão da IVG, pretendendo antes, ao tomar partido numa legislação sobre o assunto, que se imponha essa fé pela força da espada judicial (a diferença dos talibã é que a sua espada não era apenas judicial).Outros argumentos poderão garantir P 1, deixo-os ao cuidado da leitora.

Segunda etapa – Supondo que há valores fundamentais, P 3 parece-me aceitável.Entretanto terá como consequência uma igual proibição da pena de morte, da eutanásia, porventura até da autodefesa.Qualquer atenuante que se encontre, por exemplo para a chamada "guerra justa", é de considerar se não encontrará aqui correspondência.

Geral – Este argumento exemplifica a ética não-consequencialista: postula certos valores – no caso, o da preservação da vida humana – como válidos em si mesmos, isto é, independentemente das consequências da sua aplicação.Muitos outros argumentos deste género podem ser propostos.Mas, para todos eles, como se garantem os valores ditos fundamentais?

1.2.Não-consequencialismo – "Sim à IVG":

O que caracteriza o ser humano é o livre arbítrio, a nossa dignidade encontra-se na responsabilidade que daí decorre [Premissa 1].

A gravidez é um processo de uma mulher maior, e assim responsável, e de um embrião ainda sem sinais de vida mental como a que realiza a escolha [P 2].

Logo, nesse processo a maior dignidade encontra-se no livre arbítrio da mulher [Conclusão intermédia].

Entre dois bens escolhe-se o maior, ou entre dois males o menor [P 3].

Logo, é errado penalizar o livre arbítrio a favor da vida sem mente [C. final].

Análise:

A C. int. reconhece uma maior importância da mulher a partir da valorização da liberdade e da consciência crítica.Urge então um ramo argumentativo que conclua nesse sentido em P 1, estabelecendo o livre arbítrio como o valor a que toda uma ética, não-consequencialista, se conformará em seguida.Por exemplo: i) algo identifica-se por aquilo que tem de diferente do resto; ii) os primatas geneticamente mais próximos de nós fazem por sobreviver, manifestam emoções, manifestam aprendizagens segundo raciocínios simples,... mas não desenvolvem uma consciência que escolhe o que apresentar a si própria, enquanto os homens desenvolvem-na; logo, iii) os homens identificam-se por essa escolha reflexiva, e assim pela experiência da liberdade; iv) nos primeiros meses as crianças não denotam consciência de si; logo, v) esses seres vivos não são já "humanos" – Como não o serão os deficientes mentais, os doentes com arteriosclerose, porventura todos aqueles afinal que recusam a discussão lógica dos argumentos e escolhem respostas emocionais directas (!),...

Em paralelo aos defensores da proibição da IVG que no entanto defendam também a pena de morte,... os presentes arguentes ou bem que garantem a unicidade da IVG – isto é, a sua não comparabilidade – ou bem que se estarão preparando para avançar até onde nem os nazis foram.

2.1.Consequencialismo – "Não à IVG":

O desperdício de recursos é um obstáculo à nossa qualidade de vida [P 1].

Cada ser humano gastaria muitos recursos a defender-se se o homicídio não fosse penalizado [P 2].

Logo, teremos pior qualidade de vida se o homicídio não for penalizado [C. interm.].

Um ente é humano quando apresenta o genótipo (características genéticas de uma espécie) dito "humano" [P 3].

O embrião apresenta o genótipo humano [P 4].

Aceitar o homicídio num caso, que nem é o de autodefesa, enfraqueceria a proibição nos restantes casos [P 5].

Logo, não penalizar a IVG dificulta o progresso social [C. final].

Análise:

Primeira etapa – Em suma, a vida é pior em quaisquer far west.

Segunda etapaP 3 responde à pergunta pelo que distingue os seres humanos, tentando não levantar o problema de quando se começa a ser "humano" – de forma a evitar consequências indesejadas em argumentações sobre o infanticídio, etc.Importa desenvolver um ramo argumentativo que sustente essa resposta.Todavia falta argumentar pela relevância desta definição de "homem" para a anterior condenação do homicídio: é que os embriões não constituem perigo para os adultos, logo estes não precisam de prescindir da possibilidade de os matar em troca de uma garantia de segurança...

Geral – O valor da "qualidade de vida" condicionada por tais recursos é apenas postulado, o que importa é o obstáculo que o desperdício destes últimos se lhe constitui.Ou seja, presume-se que as escolhas éticas são boas ou más consoante os respectivos resultados próximos (os fins justificam os meios).É assim um argumento consequencialista.Mais uma vez, muitos outros argumentos poderão ser propostos, mas para qualquer um há que justificar a ética consequencialista.

2.2.Consequencialismo – "Sim à IVG":

O facto é que haverá muitas mulheres a realizar a IVG em péssimas condições, para mero benefício financeiro de umas quantas abortadeiras, médicos... que vendem esse serviço [P 1];

A única forma de minimizar o problema é a despenalização da IVG [P 2];

Logo, esta prática deve ser despenalizada [C].

Análise:

Creio que a palavra chave de qualquer ética consequencialista é "problema" – como aparece em P 2.Essa palavra designa um obstáculo entre diversos elementos, sendo a sua resolução a consequência que valida, ou não, as escolhas feitas perante tal problema.Para o resolver é necessário começar por discriminar os referidos elementos.Ora, além da mulher e da sua condição, há aí também a vida que se pretende extinguir.Esta pretensão tem que ser justificada (sem recurso a qualquer valor fundamental, como o da liberdade em A – P 1, próprios apenas de éticas não consequencialistas).Por exemplo pela introdução de um ramo argumentativo do género: i) a economia é um factor importante da resolução de problemas; ii) a vida da mulher, sendo esta autónoma, é mais económica à sociedade do que a do embrião; logo iii) entre uma vida e outra antes a da mulher.Mas as premissas deste ramo, obviamente, têm que ser por sua vez argumentadas.

3. Requisitos para argumentos intermédios.

Como aconteceu no último referendo, frequentemente a questão não é a da des/penalização tout court da IVG, mas a das condições em que alguma pena é possível.Julgo que as argumentações que fazem a resposta final depender das semanas de gestação, e/ou das condições do feto, e/ou das causas da gravidez, etc., se reconduzem a formas como as que exemplifiquei acima.Limitar-me-ei por isso a indicar alguns requisitos seus.

Na base de uma argumentação que constitua a ética em geral como não-consequencialista, uma vez estabelecidos os valores fundamentais será necessário:

i)decompor o processo de gestação de tal modo que aquele valor seja satisfeito apenas a partir de algum momento – ex. as faculdades do livre arbítrio implicam órgãos que se formam a partir de x tempo de gestação –, ou em certas condições, etc.;

ii)explicitar, na anterior decomposição, os sinais da satisfação do valor ou das condições – ex. certa actividade cerebral, a formação de certos órgãos...;

iii)em ordem a montar um processo da respectiva verificação – ex. imagiologia cerebral,...Supondo essas premissas, sempre que se verificar uma quarta constituída por uns resultados destes processos que, por exemplo, indiquem não estarem formados os tais órgãos, conclui-se que a IVG é legítima nesse caso.

Na base de uma ética consequencialista, será necessário:

i)reconhecer os sinais de ocorrência do problema – ex. o número de entradas em urgências hospitalares de mulheres com lesões habituais em IVG's feitas em más condições; e

ii)determinar em conformidade o período, as condições... em que a IVG assistida nos hospitais públicos se constituirá como a menos má solução do problema geral.

Todos esses passos têm que ser argumentados.

4.Argumentos falaciosos:

"Falácias" são raciocínios irrelevantes – cujas premissas não se referem ao que está em causa na conclusão – ou inválidos – cujas formas não garantem a verdade da conclusão mesmo que as premissas sejam verdadeiras.Creio ser útil alertar para a forma de eventuais argumentos falaciosos.Esboçarei um exemplo de cada uma de seis conhecidas classes de falácias, deixando ao leitor a compreensão geral.

4.1.Falácia de relevância:

Se despenalizarmos a IVG as clínicas espanholas virão para cá ganhar ainda mais dinheiro do que já ganham com as mulheres portuguesas [Premissa 1].

Devemos defender a nossa economia [P 2].

Logo, temos que manter a actual penalização [Conclusão].

            Análise: É a internacionalização da economia que principalmente está em causa na questão da IVG?...Se isto não for pacífico aos arguentes, quem assim o pretenda não pode deixá-lo implícito, terá que explicitar um argumento que conclua isso.

4.2.Falácia de raciocínio circular – assume o que quer provar:

A escolha de abortar cabe exclusivamente à mulher grávida [P].

Logo, ninguém além de cada mulher pode interferir na interrupção de uma sua gravidez [C].

            Análise: Na presente forma, C é apenas uma explicitação de P, não infere algo que não tivesse sido aí logo afirmado – todavia este raciocínio poderá deixar de ser falacioso se P for constituída como conclusão de uma etapa que a garanta sem referências à sociedade.

4.3.Falácia semântica – linguagem ambígua:

Interromper ou abortar um processo de vida faz pena [P].

Logo, sendo a pena própria à IVG, esta não deve ser despenalizada [C].

Análise: A palavra "pena" é usada com sentidos diferentes em P e em C: respectivamente, como emoção, e como sanção legal.Da primeira ser própria a algo não decorre que a segunda não lhe possa ser retirada.

4.4.Falácia indutiva – probabilidade menor do que a pretendida:

Há uma probabilidade de nascer um génio de cada vez que se gera uma criança [P 1].

O génio é a coroa da humanidade, deve ser sempre protegido [P 2].

Logo, a interrupção voluntária da gravidez não pode ser aceite [C].

Análise: (Além da discussão sobre P 2...) a probabilidade apontada em P 1 é suficientemente elevada para ter aqui algum significado?

4.5.Falácia formal – reconhecem-se dez regras básicas de inferência, à violação de cada uma corresponde uma "falácia formal".Exemplificarei apenas a violação da regra Modus ponens – dada uma implicação, se se afirmar o antecedente conclui-se o consequente – pois é bastante frequente em pseudo-argumentações.

Se não aceitamos a IVG também não aceitamos a pena de morte [P 1];

Não aceitamos a pena de morte [P 2];

Logo, não aceitamos a IVG [C].

Análise: Pode-se não aceitar a pena de morte (P 2) – afirmando o consequente em P 1 – por outras razões além das que levam a não aceitar a IVG – ex. pelo risco de erro judicial.Assim talvez se aceite a IVG ainda que se não aceite a pena de morte.

4.6.Falácia por falsidade de premissa:

Quem tem consciência pode sempre emendar-se de quaisquer erros eventuais [P 1].

Logo, não se deve matar quem tem consciência [C intermédia].

O embrião apresenta já consciência [P 2].

Logo, matá-lo é errado [C final].

Análise: Mesmo que a imagiologia cerebral revele no embrião actividade neuronal em zonas que se activam nas pessoas nascidas cujos comportamentos denotam consciência, argumentar apenas nesta base que haverá ali consciência parece-me outro exemplo de violação da Modus ponens (afirmação do consequente).

Posfácio: a teoria e a dificuldade ética

            Na Grécia Clássica contava-se que um velho entrou nas bancadas do estádio olímpico, e começou a percorrê-las à procura de um lugar.Debalde, todas as secções estavam cheias pelos espectadores vindos de cada uma das cidades-Estado.Até que o homem se acercou da secção dos espartanos, e de imediato todos estes se puseram de pé oferecendo-lhe o lugar.Todos os gregos sabem o que fazer, dizia-se, mas apenas os espartanos o fazem.

Esta história antiga ilustra bem o locus normal da dificuldade ética ou prática, e a sua diferença em relação ao da dificuldade teórica ou cognitiva. Exploremos formalmente a lógica que atrás usámos introdutória e informalmente, tentemos fundamentar a filiação da ética na metafísica, a opção perdurantista em detrimento da endurantista,… pelo menos pela minha parte confesso que encontro aí dificuldade logo na orientação dos processos, na selecção dos recursos para cada passo, etc.Essa é a dificuldade teórica.Ao contrário, na maior parte das vezes a orientação devida às nossas acções, os recursos que lhes devemos consignar, estão suficientemente patentes.Difícil é corresponder-lhes – dou um exemplo pessoal: não tenho qualquer dúvida séria de que a preguiça é uma deficiência, e no entanto a minha vida tem sido uma luta constante contra ela, creio que com mais derrotas que vitórias.Melhor esteve a minha mulher a deixar de fumar, e mesmo assim com recaídas, adiamentos…

São reconhecidos casos de dificuldade simultaneamente ética e teórica – o aborto é um exemplo, outros são o da eutanásia, guerra justa, pena de morte,…Mas o que será devido nas situações em que nos encontramos na maior parte do tempo, de um lado, e até os princípios éticos gerais que postulamos, do outro, tudo isso nos é razoavelmente pacífico.Assim se explicará a convergência ética que tem animado os sincretismos civilizacionais, ecumenismos religiosos,… na procura de códigos universais.Estes últimos nunca foram logrados, pois os postulados secundários ou os critérios de aplicação dos princípios têm-se sempre revelado inconciliáveis.Em todo o caso as tendências éticas são-nos normalmente intuitivas.Levá-las a cabo é que é depois o diabo.Daí o dito: faz o que eu digo, não faças o que eu faço.

A ética não é para as Mónicas ou as pessoas sensíveis de Sophya de Mello Bryner Andresen, não é para os que José Régio percebeu lhes correr nas veias o sangue velho dos avós



[1] Argumentei a favor da não despenalização da IVG, mas na condição de ser judicialmente possível não condenar todas as mulheres e homens que participam do aborto por não encontrarem condições para assumir uma criança, ao menos enquanto a Segurança Social não disponibilizar condições dignas e fáceis de acompanhamento dessas gravidezes, e de acolhimento das crianças assim nascidas.

[2]As "etapas" são discriminadas segundo as conclusões intermédias.


Autor: Miguel S. Albergaria


Artigos Relacionados


A Perspectiva Construtivista De Ensino

SolidÃo...

Pensamenteando...

Chamamento Intencional

Moradores Do Tempo

AnimÁlia Urbana

Nordeste Que JÁ Morreu