Incesto: até quando?



Incesto: até quando?

Laura Affonso da Costa Levy[1]

Os homens primitivos, na época em que lutavam para sair da animalidade, ou não tinham nenhuma noção de família, ou, quando muito, conheciam uma forma genuinamente primitiva.

A tolerância recíproca entre os machos e a ausência de ciúmes constituiu a primeira condição para que se pudesse formar grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformação do animal em homem. E, com efeito, o matrimônio por grupos é àquele no qual a História nos mostra como forma mais antiga e primitiva da família. Forma essa em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres pertencem-se mutuamente, deixando bem pouca margem para o ciúme.

Época em que as relações eram vividas sem entraves, ou seja, não existiam os limites proibitivos vigentes hoje. Já vimos cair a barreira do ciúme. Se algo pode ser estabelecido irrefutavelmente, foi que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu tardiamente entre as relações do homem.

O mesmo acontecia com a idéia de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e mulher, como também em muitos povos, por longos anos, se permaneceu lícito o comércio sexual entre pais e filhos, como relatam os antigos gregos e romanos a respeito dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos.

Bancroft (As Raças Nativas dos Estados da Costa do Pacífico na América do Norte[2], 1875, tomo I) testemunha a existência dessas relações entre os kadiakos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os tinnehs da América do Norte.

Antes da invenção do incesto (porque é uma invenção e das mais valiosas), o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais repugnante que entre outras pessoas de gerações diferentes, coisa que ocorreu nos países mais beatos, sem produzir grande horror.

Se despojarmos as formas de famílias mais primitivas, chegaremos a uma forma de relações carnais que só pode ser chamada de promiscuidade sexual, no sentido de que ainda não existiam as restrições mais tarde impostas pelo costume.

Na primeira etapa da família os grupos conjugais classificavam-se por gerações; todos os avôs e avós, nos limites da família, são marido e mulher entre si. Nessa forma de família, os ascendentes, os pais e filhos, são os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer) dos matrimônios. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus, são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua.[3]

O passo para o progresso das relações constituiu em excluir os irmãos das relações sexuais recíprocas. Esse progresso foi infinitamente importante e difícil, dada a maior igualdade nas idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos, a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como regra geral e, acabando pela proibição do matrimônio até entre irmãos colaterais.

É a partir dessa evolução das relações familiares que chegamos aos dias de hoje com o pensamento tão diferente daquele visto na Antigüidade.

Todavia, apesar de hoje repudiado pela sociedade, o incesto não é considerado crime no direito brasileiro. Se a vítima é menor de 14 anos, tal delito é considerado estupro presumido ou atentado violento ao pudor, cuja pena é de 9 a 15 anos. Por incidência da Lei dos Crimes Hediondos, a pena pode ser majorada da metade, até o limite de 30 anos.

No entanto, se as práticas sexuais forem contra maiores de 14 anos e a vítima for mulher e virgem, o delito é o de posse sexual mediante fraude (CP, art. 215), e a pena é de 2 a 6 anos. Se a vitima é do sexo masculino, trata-se de atentado ao pudor mediante fraude (CP, art. 216), a pena é de 1 a 2 anos.

Como é considerado crime de pequeno potencial ofensivo, encontra-se sob a égide da lei dos Juizados Especiais. Assim, possível a transação ou a condenação resumir-se a entrega de cestas básicas.

Contribui ainda mais para agravar a situação o fato de que está envolto em um manto de silêncio. Praticado dentro do lar, mantem-se escondido, como algo sobre o qual ninguém possa ou deva falar.

Essa certa tolerância social para com o deleito cujas seqüelas marcam de forma definitiva a vida das vítimas tem justificativas não só históricas, mas também culturais.

A existência de um vínculo de convívio, a superioridade do homem, quer por sua maior força física, quer por sai sua autoridade (seguindo o modelo de família patriarcal adotado pelo país), somado à cumplicidade da mulher e a fragilidade emocional da vítima, são os ingredientes que levam a um pacto de silêncio difícil de se romper.

O art. 227 da Constituição Federal atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com absoluta prioridade, proteção integral a crianças e adolescentes. É necessário dar comprimento a esse comando. Se não é desempenhado pela família, precisa essa responsabilidade ser assumida por todos nós, que idealizamos a família como um elo de afetividade.

Temos que tomar partido e responsabilizarmos-nos pela busca de uma sociedade mais transparente e honesta. É nosso dever contribuir para fazer cessar a prática desse delito tão monstruoso e, ainda, tão mascarado.




Autor: Laura Affonso Costa Levy


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